segunda-feira, 24 de abril de 2023

Os radtrads são obcecados pela “societas perfecta”

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

Uma reflexão sobre manuais de história da Igreja que são editados para legitimar o ‘cristianismo bélico e glorioso’


Evitar o anacronismo é o mantra de todo historiador. E quando o assunto é história da Igreja, a atenção para não pender para esse tipo de abordagem precisa ser redobrada, já que estamos lidando com o fenômeno religioso. Porém, assumir o compromisso de não julgar o passado com categorias do presente não significa anular ou diminuir os crimes cometidos em séculos anteriores. O passado precisa ser conhecido e estudado, de modo que esses erros não sejam repetidos no presente.

Os últimos três papas, através de gestos e discursos, fizeram questão de enfatizar isso. João Paulo II, ao pedir perdão pela violência impetrada em nome de Deus por muitos homens da Igreja; Bento XVI, ao reconhecer que foi ‘providencial’, num dado momento, a Igreja ter se apartado do poder temporal; e Francisco, relendo a colonização da América, pediu perdão pelos abusos da instituição contra os povos originários. Ou seja, o papado contemporâneo olha para essa história como um percurso feito de luzes e sombras, de anjos e de demônios.

Positivismo histórico dos radtrads

Os adeptos do positivismo histórico, do século 19, viam o passado como um celeiro de mitos nacionais. Historia magistrae vitae? Sim. Mas só era mestra de vida na medida em que condecorava as personalidades ‘civilizadoras’, os heróis do Estado (muitas vezes, forçadamente fabricados pelos propagadores da ideologia dominante).

E muitos grupos sectários da atualidade têm se debruçado sobre o passado cristão pelas lentes do positivismo histórico. Há quem romantize a trajetória de Constantino, de Pepino, o jovem, de Carlos Magno e dos cavaleiros medievais. A ideia é acumular informações ‘gloriosas’ sobre a História da Igreja, não situá-la dentro de um contexto social, político ou cultural.

Os manuais de história da Igreja do século 19, que estão sendo republicados por muitas editoras controladas por esses nichos, estão repletos desses floreios. Não que tais atores não devam ser investigados e mencionados. O problema está em ressuscitá-los na pretensão de reconstruir uma ‘Idade de Ouro’ que sequer existiu.

Há quem se recorde da famigerada visão de Constantino, mas não cita os membros da família que ele executou após sua ‘conversão’. Há quem superestime as cruzadas como símbolo do triunfo, mas ignora o momento em que os cavaleiros se aliaram aos muçulmanos e o episódio em que os venezianos invadiram Constantinopla, em 1204, e profanaram a Basílica de Santa Sofia. E eu poderia citar tantos outros exemplos.

A maioria desses livros, principalmente aqueles que foram publicados antes da década de 1930, via a historiografia como um instrumento capaz de reproduzir uma narração precisa dos fatos, que era pautada somente pelos documentos oficiais. Ou seja, a história não era tratada como um processo repleto de nuances e pontos de vista, mas como uma grande crônica repleta de heróis, cujos feitos foram eternizados pela fonte escrita.

Cálculo político e erudição estéril

Sustentar uma visão anacrônica nem sempre é tão inofensivo quanto parece. O estrago, inclusive, às vezes acontece a longo prazo. Hitler se apoiou na trajetória de Lutero para criar uma religião política e nacionalista segundo os parâmetros do catecismo nazista : o ‘cristianismo positivo’. Mussolini evocou Constantino, o primeiro imperador cristão da história, para legitimar seu imperialismo. O ditador italiano, que era um anticlerical convicto, mudou o discurso e passou a tratar o catolicismo como parte integrante da cultura do país para atrair o apoio das autoridades eclesiásticas.

Em âmbito católico, os simpatizantes da erudição estéril e anacrônica isolam a história da instituição em 500 anos. O Concílio de Trento, que no século 16 padronizou o rito latino, é visto como a tradução mais perfeita da tradição, como se ela se resumisse a uma lista de rubricas e normas. Nada mais.

Nenhum concílio esgotou as possibilidades da fé católica

Só que a Tradição, para o catolicismo, escrita em T maiúsculo, se baseia principalmente no ensinamento de Jesus transmitido aos apóstolos, e não por acaso é chamada de Depositum Fidei, não de Ritus Romani. Portanto, a visão reducionista deles contradiz a própria doutrina. Dizer que um único concílio ecumênico foi capaz de interpretar o catolicismo na sua plenitude é destoar desse princípio, já que essa confissão cristã acredita na sucessão apostólica. E se o Concílio Vaticano II, constituído por um colégio de bispos, tomou certas decisões, que mais à frente foram revistas e chanceladas pelo próprio papa, deve ser seguido como todos os outros.

Não por acaso, as resistências em relação ao papa Francisco começaram justamente entre os tridentinos da internet, que inclusive têm uma visão completamente distorcida em relação ao conceito de reforma da Igreja Católica. Para eles, muito ligados ao espírito de Trento, reformar é impor ‘um modelo’, e ter um pontífice — e um concílio, no caso — que foca na renovação de seus membros, não nos acessórios, que muitas vezes ofuscam a essência da vida cristã, é demais para a cabeça deles.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://rafaelmariae.medium.com/os-radtrads-s%C3%A3o-obcecados-pela-societas-perfecta-a8ce3f121fb3

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