Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
Presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
‘Esta
pergunta - ‘Tendes algo de comer?’ - veio do coração do Mestre Jesus,
ressuscitado, o vencedor da morte. Era uma manhã na praia, conforme narra o
evangelista João. Os pescadores, discípulos de Jesus, ouviram o questionamento
e, desolados, responderam que nada tinham. Então o Mestre indicou : ‘Lançai a
rede à direita do barco e achareis’. Eles obedeceram e não conseguiram puxá-la,
por causa da grande quantidade de peixes. Neste momento, os discípulos
reconheceram o milagre, também aquele que o promovera : é o Senhor! Um mistério
que remete à aprendizagem da nova e definitiva lição, formulada pelo apóstolo
Paulo, na Carta aos Romanos. Paulo sublinha que Cristo Ressuscitado dos mortos
não morre mais, a morte já não tem poder sobre Ele. Pois Aquele que morreu,
morreu para o pecado uma vez por todas, mas Aquele que vive é para Deus que
vive.
O
discipulado no seguimento de Jesus Ressuscitado toca a vida no seu núcleo de
sustentação : Cristo, referência
insubstituível e inigualável, é fonte da lógica que deve presidir toda a
existência. Ter algo para comer é imprescindível para viver. O alimento
definitivo vem pela iluminação alcançada na oferta redentora que Cristo faz de
si, na ceia pascal, consumada no alto da cruz, pela oblação que faz de Seu
corpo e sangue. Os discípulos compreendem e são desafiados a reger-se pela
competência de responder à interrogação do Mestre Jesus : a partir de
Cristo, o ser humano encontra seu verdadeiro alimento, aquele que conduz à
vida. Longe desse alimento, o caminho da humanidade será orientado por
dinâmicas destrutivas : ressentimentos e mágoas que sufocam a fraternidade,
deixam espíritos conturbados, impondo uma cegueira nas pessoas que passam a
enxergar apenas nos limites dos próprios juízos e escolhas, aprisionadas em
interesses pequenos, pouco nobres. Com isso, deixa-se de reconhecer a
presença de Deus na própria vida. Uma perda grave, que leva a adoecimentos.
‘Tendes
algo de comer?’ É uma interrogação com força de advertência, explicitando os
limites humanos. Remete à importância determinante de escutar os clamores
dos outros, especialmente daqueles que não têm algo para comer - são milhares e
milhões pelo mundo afora. A escuta dos clamores daqueles que sofrem,
particularmente de quem enfrenta a fome, à luz da pergunta formulada por Jesus,
conduz à lógica da generosidade e da partilha - remédio para as inimizades e
mágoas forjadas por limitações humanas e espirituais : a incapacidade
para perdoar e alargar o coração e hospedar o amor. O amor é o único
agente de reconciliação e de recomposição da fraternidade universal.
A
pergunta do Mestre remete ao flagelo da fome – uma ameaça à dignidade humana.
Sabe-se que uma carência prolongada de alimentação provoca debilidades graves,
instaura apatias, impõe a perda do sentido social. Compreende-se a urgência da
escuta da pergunta do Mestre e a importante celeridade para respondê-la com um ‘sim’.
São urgentes os envolvimentos organizacionais da sociedade e a adoção de
políticas públicas capazes de vencer a fome. Uma vitória que depende também da
efetivação de um novo estilo de vida - compromisso de todos - distante dos
hábitos que levam ao esgotamento do meio ambiente. Reverter os cenários
abomináveis de desolação e de abandono provocados pela fome significa também
contribuir para superar situações que destroem as famílias, levam violência aos
lares, às cidades e ao campo. A carência alimentar gera, ainda, adoecimentos
físicos e psíquicos.
Acolher
a pergunta que brotou do coração de Cristo Ressuscitado, voz dos famintos e
excluídos, é o primeiro passo para reverter a aporofobia tão disseminada na
sociedade. É desolador constatar que muitos cultivam aversão e desprezo em
relação aos pobres, hostilizando ainda as iniciativas que buscam oferecer
dignidade a quem sofre. A interpelante interrogação feita por Jesus aos seus
discípulos desafia todos os cidadãos, especialmente os cristãos. Deve inspirar
sensatez e humanismo, para que sejam alcançadas novas respostas, mais eficazes
no enfrentamento de muitos flagelos sociais, particularmente no combate à fome.
Aqueles que exemplarmente trabalham pela cura dessa chaga social podem ser
inspiração, convencendo cada vez mais pessoas a também se unirem para amparar
quem não tem o que comer.
A
partir de Cristo, é urgente forrar corações com o tecido da compaixão, capaz de
inspirar uma nova ordem social livre do flagelo da fome. Especialmente os
cristãos devem ter sempre presente a advertência de São João Crisóstomo que,
por volta do século quarto da era cristã, disse : ‘Muitos cristãos saem
da Igreja e contemplam fileiras de pobres, e passam longe, sem se comover, como
se vissem colunas e não corpos humanos. Apertam o passo como se vissem estátuas
em lugar de homens que respiram. E, depois de tamanha desumanidade, se atrevem
a levantar as mãos aos céus e pedir a Deus misericórdia e perdão pelos seus
pecados’. A voz de Jesus seja escutada como clamor dos pobres e
famintos : ‘Tendes algo de comer?’’
Fonte : *Artigo na íntegra
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