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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Martas e Marias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Jesús Ruiz Molina,

Bispo auxiliar de Bangassou, RCA

 

‘Betânia foi para Jesus um lugar de repouso, um oásis onde podia recarregar as suas baterias humanas e espirituais. A casa de Lázaro e das suas irmãs, Marta e Maria, tinha sabor a lar, a amizade profunda, a lugar de repouso para o coração. O que teria sido de Jesus e dos seus discípulos se Marta não se tivesse dado ao trabalho de os acolher, de lhes dar uma boa refeição e de lhes proporcionar um lugar de repouso? Onde se teria expandido o coração de Jesus se Maria não tivesse sabido escutar e acolher os segredos do Mestre? E aquele amigo Lázaro, que Jesus tanto amava. Marta e Maria, duas faces de uma mesma realidade, nem sempre fácil de combinar. Marta, a dona de casa que soube extrair de Jesus palavras de vida eterna : «Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá.» Maria, que aos pés do Mestre aprende os segredos escondidos no seu coração : «Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.»

Estas reflexões sobre a vida de Jesus vêm-me à mente enquanto escrevo no meu diário tudo o que estou a viver com o povo centro-africano da diocese de Mbaiki, que me foi confiada como bispo. Talvez eu esteja enganado, mas tenho a sensação de que, desde há algum tempo, nós, na Igreja, estamos a inclinar a balança para o lado de Maria em detrimento de Marta. O fato de o Papa Francisco ter ido viver para a Casa de Santa Marta é um símbolo que pode equilibrar a realidade do discípulo que tem de nadar entre duas águas, a ação e a contemplação, duas asas da mesma ave. Não se trata de escolher uma em detrimento da outra, as duas juntas permitem-nos voar para as alturas do Reino. 

Ação e contemplação

Este difícil equilíbrio deve existir também na vida religiosa e missionária. Nos últimos tempos fui confrontado com uma situação que gera um conflito entre as duas asas da vida do discípulo. Na diocese há 40 religiosas pertencentes a uma dezena de congregações, entre as quais há apenas cinco Martas com as quais posso contar incondicionalmente para qualquer missão. As outras não são necessariamente Marias. Estas cinco Martas de que falo são mulheres preparadas, ativas, prontas a enfrentar novos desafios, a romper com os moldes, a misturar-se com os pigmeus Aka, a curar os doentes que ninguém se atreve a tocar, a enveredar por caminhos até então inexplorados por uma religiosa, a viver uma liderança feminina na Igreja... Mas o que descubro é que o fato de agirem como Martas, mulheres do Evangelho ao serviço da diocese, as coloca em sério conflito com as suas congregações. Várias superioras provinciais vieram queixar-se : que as irmãs estão sempre fora da comunidade, que viajam demasiado, que dormem nas aldeias com as pessoas, que abandonam a comunidade da qual são por vezes superioras, que dão prioridade aos compromissos diocesanos em detrimento dos congregacionais. A situação está a fazer sofrer três delas.

Nalguns casos, o conflito é latente com as suas congregações e leva-as a acentuar a sua identidade e pertença a uma Igreja diocesana, mas, outras vezes, o conflito cheira-me a ciúme escondido, como se houvesse infidelidade à congregação quando há grande doação à pastoral diocesana. E digo a mim mesmo : se o carisma da congregação não está ao serviço da Igreja particular, então corre-se o risco de «sectarismo». Como é difícil o equilíbrio entre esta Marta e esta Maria que cada instituição, cada congregação, cada discípulo, traz dentro de si! Durante séculos, a Igreja idealizou Maria e encerrou as freiras nos conventos, sem se dar conta de que Marta é indispensável para as coisas de Jesus.

Sofro quando vejo o conflito das cinco religiosas com as suas congregações, que as censuram pelo seu afastamento. Procuro não me meter nos assuntos internos, mas como é difícil para mim quando o que está em causa é um estilo de missão, um estilo de Igreja. Sofro porque pressinto as ameaças que pesam sobre algumas delas e que as destinarão a outra comunidade. Uma das superioras disse-me que tinha feito um ultimato a uma delas. Eu disse-lhe : «Sei que estás em vantagem, mas também te peço que revejas o teu carisma de fundação. Tenho a certeza de que a vossa fundadora foi uma mulher que abriu novos caminhos, que ultrapassou muitas fronteiras eclesiais e sociais. Ah, e por favor digam às vossas superioras em Roma que o bispo está muito grato pela vossa preciosa presença na diocese e, especialmente, pela irmã N.» Que equilíbrio difícil!

Mais tarde, falando com uma das Marias, conhecendo a espada de Dâmocles que paira sobre o seu destino, pedi-lhe que não rompesse com a sua congregação, que construísse pontes, que tentasse exercer a asa das Marias que a sua congregação lhe reclama. Eu não gostaria de a perder.

Ação e contemplação, Marta e Maria. Uma sem a outra não gera a vida de Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/1294/martas-e-marias/

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Artesãos de misericórdia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Irmão Darlei Zanon


A Igreja Católica não é uma ONG ou uma associação de voluntariado, isso já enfatizou o Papa em diversas ocasiões. No entanto, a Igreja é fonte de caridade e dentre as suas ações há muito espaço – e necessidade – do trabalho voluntário. Exatamente isso é o que enfatiza o Papa Francisco no seu vídeo do mês de dezembro, no qual pede orações pelos voluntários e pelas organizações de voluntariado. Mais especificamente, Francisco convida-nos a rezar ‘para que as organizações de voluntariado e promoção humana encontrem pessoas desejosas de empenhar-se pelo bem comum e procurem caminhos sempre novos de colaboração a nível internacional.’

Num mundo sempre mais individualista e marcado pela cultura do descarte, é interessante refletir sobre o significado e a importância do voluntariado, dentro e fora da Igreja. Voluntário é aquele que age por vontade própria, que se compromete com um trabalho ou assume a responsabilidade de uma tarefa sem ter a obrigação de o fazer, que realiza alguma ação movido pelo desejo sincero de fazer o bem, sem esperar nada em troca, sem pretender nenhum pagamento pelo trabalho exercido. Alguém que quer colaborar com a construção de um mundo melhor, agindo por empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa.

Ser voluntário nos enche de alegria. E vai muito além, pois nos abre à justiça social, ao amor ao próximo, ao desenvolvimento humano, ao crescimento pessoal e comunitário. Exatamente isso é o que destaca o Papa Francisco no seu vídeo do mês : ‘o mundo precisa de voluntários comprometidos com o bem comum’. Precisa de pessoas que se comprometam com o outro, com a comunidade, que estejam dispostos a ‘multiplicar a esperança’.

Para ilustrar a importância do voluntariado, o Sumo Pontífice utiliza uma expressão muito bonita e cheia de significado : a imagem do artesão, tantas vezes já utilizadas por Francisco, junto ao conceito de misericórdia, sentimento ou virtude ao qual dedicou inclusive um ano jubilar (2016). Francisco afirma que ‘ser voluntário é ser artesãos de misericórdia : com as mãos, com os olhos, com o ouvido atento, com a proximidade’.

Artesão é aquele pequeno produtor que exercita a sua arte com paciência, cansaço, cuidado e constância, mas também com grande maestria. Produz objetos cuja realização exige uma particular capacidade técnica e um específico gosto estético. O artesão é um profissional no seu campo, mas é também um artista, criativo, inovador, minucioso. Empenha-se e envolve-se profundamente na sua criação, vê a sua obra como uma extensão da sua pessoa. O artesão dá vida, ‘põe a mão na massa’ diríamos popularmente.

O conceito de artesão exprime bem a visão e a metodologia de trabalho a serem concretizadas para alcançar a misericórdia e a comunhão. É um trabalho feito de pequenos e grandes gestos, a cada dia, em cada situação, colocando atenção a cada pequeno detalhe, como fizeram Jesus e os seus discípulos. Ser artesão significa, como indicou o Papa Francisco em outra ocasião, «praticar a paciência, o diálogo, o perdão, a fraternidade» (Angelus, 19 de fevereiro de 2017).

A imagem do ‘artesão’ é utilizada pelo Papa com frequência. Poderíamos recordar, por exemplo, de quando incentivou os participantes no Concerto Beneficente ‘Avrai’, realizado na Sala Paulo VI em 2016, a serem ‘artesãos de misericórdia a cada dia’; ou quando nos falou dos ‘artesãos de justiça e de paz’, na mensagem para a LIII Jornada mundial da Paz (1° de janeiro de 2020); de ‘artesãos de fraternidade’, na mensagem na Praça do Campidoglio, Roma (26 de março de 2019); ou então dos ‘artesãos de hospitalidade’, durante a cerimônia de boas-vindas na Tailândia (21 de novembro de 2019); e ainda de ‘artesãos de paz’, no Angelus de 1° de janeiro de 2019. Comum a todos esses discursos, inclusive à imagem do voluntário como um ‘artesão de misericórdia’, está a certeza de que a atividade artesanal requer trabalho exigente e contínuo, e pode dar resultados esplêndidos, gerando verdadeiras obras de arte.

A misericórdia que somos convidados a construir artesanalmente através do voluntariado se torna sinal potente do amor de Deus no mundo e por isso um testemunho forte de comunhão, de fraternidade e de alegria do Evangelho. Tema provocador para refletir e rezar especialmente durante o Advento, enquanto esperamos alegres e ansiosos pela encarnação do Filho de Deus, expressão maior do seu amor e misericórdia.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-12/artesaos-misericordia-papa.html

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Bíblia: ação e gratidão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE

 

‘Setembro, mês da Bíblia : ‘Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça’ (2 Tim 3, 16). Ela não é uma coleção de verdades abstratas, mas, sim, a revelação de uma realidade concreta, daquilo que Deus realizou na realidade histórica de seu povo, nas reflexões das criaturas humanas, as quais contaram com a graça e o dom, ao mergulharem nas atividades, distinguindo-se inusitadamente dos demais escritos, no seu caráter sagrado e na sua inspiração e revelação divina.

No mês da Palavra de Deus, a gratidão que Deus aceita e acolhe é a que vem do coração humilde, um coração convicto de que só o Senhor suscita ‘o querer e o fazer’, segundo o apóstolo Paulo. Nada mais lhe é agradável do que agradecer a Deus pelos grandes benefícios, que é o mesmo que implorar o cumprimento de sua ação salvífica, na ternura e na misericórdia divina, num Deus que, no Filho, quer reconciliar o mundo consigo.

O mês de setembro, o da Bíblia, tem como foco despertar nossa consciência do Deus infinito e do mistério de amor, que quer de seus seguidores um sólido redescobrimento de sua presença, à medida que as pessoas são inseridas no mundo e comprometidas com seu projeto de amor, levadas adiante pelo Filho de Deus, Jesus de Nazaré. Por isso mesmo é que Deus quer, através do Livro Sagrado, enriquecer, com seu duradouro amor, as criaturas que Ele criou, convencendo-as da morada permanente.

Infundido e persuadido pelo Espírito de Deus, de tal modo, somos convidados a acreditar numa missão árdua e elevada, com excessos de precedentes – fruto do indizível mistério da palavra de Deus –, e na eficácia inexprimível da oração, sinal evidente a nos ensinar, num olhar confiante para o céu, vendo as estrelas, a lua, compreendendo, na graça desse mesmo Deus, a beleza infinita a atrair as pessoas, sendo preciosa a criatura humana, entre todas, embora a menor – abaixo dos anjos –, mas que recebeu o poder e o vigor divino de tudo dominar (cf. Sl 8).

Inspirados e animados pelo Livro Sagrado, que saibamos olhar o mundo, num sincero desejo de fermentá-lo e transformá-lo, apresentando-lhe sinais de esperança e solidariedade, seguros daquilo que é mais elevado e cristalino, de que Deus leva em conta nosso esforço, bem como o testemunho coerente e a interior disposição de lutar e gostar de viver. Assim seja!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1536674/2021/09/biblia-acao-e-gratidao/

terça-feira, 11 de maio de 2021

Vocação : exigência e ação

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC

(Laïcs missionnaires Comboniens)

 

‘Quando tentamos fazer uma retrospecção sobre a nossa vida, umas vezes, deparamos com um passado triste e cheio de frustrações; outras vezes, parece que as coisas não são assim tão assombrosas e até conseguimos recordar pessoas e acontecimentos que nos fizeram felizes, sonhar e ter uma esperança maior em relação ao futuro. No fundo, o nosso modo de olhar o passado vai variando de acordo com o que estamos a viver no presente. De qualquer modo, uns mais, outros menos, todos já experimentámos, ora recordar palavras ou ações que nos derrubaram, ora recordar outras que nos deram conforto e alento. Até chega a acontecer, em sentido inverso, que por vezes, alguém, recordando o passado, nos diz : «Aquilo que me disseste naquela altura mudou tudo.» Nesses momentos, vemos bem do modo como o que dizemos ou fazemos pode alterar e interferir na vida dos que nos rodeiam, por mais banais que possam parecer, à primeira vista, os nossos gestos e/ou palavras.

Faço lembrar estas situações para que possamos ir mais longe na nossa reflexão sobre o discernimento e vivência vocacional. Neste caminho – como em qualquer outro que trilhemos (mesmo que seja o caminho da fuga do discernimento da vocação!) – as nossas pequenas e grandes decisões são importantes e determinantes, tanto para nós (em relação ao futuro que estamos a construir e ao presente que estamos a viver), como para os outros (que lêem no que fazemos/dizemos/escolhemos uma mensagem que pode, ora destruir, ora edificar, as suas próprias vidas). Digo isto porque, muitas vezes, estamos tão absorvidos pelas nossas preocupações e indecisões que somos incapazes de ver para lá do próprio umbigo : «não faço isto, porque é difícil para mim», «não posso ir por ali senão já estou a ver a minha vida a andar para trás», ... e assim sucessivamente, num emaranhado de eus que por vezes nos fazem esquecer que não somos o centro do mundo. Não obstante estas dificuldades, acontece também que comecemos a «mentir» para nós mesmos : «eu até fazia isto, mas os meus amigos não iam entender», «eu até fazia aquilo, mas a minha família ia sofrer muito.». Enfim, um emaranhado de desculpas que usamos para nós próprios, procurando fugir de nós mesmos e das exigências da vocação (aquela que, dentro de nós, sabemos que é a única que nos fará felizes e onde nos sentiremos plenamente realizados).

As exigências da vocação

Não há caminhos fáceis nem decisões 100 por cento simples : ao escolhermos, estamos sempre a optar por não seguir outras estradas. Isso não é mau! Antes nos permite escolher o melhor! As exigências do Amor são muitas. Quantas vezes uma mãe não estará completamente estourada e, ainda assim, fiel à sua vocação, chega a casa e prepara a festa de aniversário do seu filho, ou fica acordada toda a noite junto à cama do filho doente? Ninguém lhe diga que deve sentar-se ou deitar-se e cuidar de si! As exigências do Amor são maiores e as únicas que dão plenitude à sua existência.

O mesmo acontece com a vocação (seja ela qual for). As exigências estão sempre lá, desde o primeiro questionamento vocacional, durante todo o processo de discernimento e ao longo de toda a vida. Não sendo um caminho fácil de percorrer, este é um percurso que não pode ser vivido individualmente; antes, exige um acompanhamento que nos permita, tanto descobrir o que somos e queremos ser, como fazer face a todas as dificuldades (e até às nossas próprias desculpas e desejos de fuga para o caminho mais fácil!). A verdade da vocação não se esconde unicamente dentro de nós. Como alerta o Papa Francisco, «o ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir a ação de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas» (cf. encíclica Laudato Si’, n.º 233).

O desejo de uma vida plena, para tornar-se realidade, tem de ousar vencer os medos e as inseguranças, assim como tem de, com humildade, aceitar que o «nós» é mais forte que o «eu». Como diz o ditado: «Quem quer chegar depressa vai sozinho, mas quem quer chegar mais longe vai acompanhado!» A vocação impele-nos sempre a chegar mais longe, a chegar onde não ousaríamos pensar ou sequer imaginar (cf. Ef 3,17-21). A vocação, não apenas amplia os horizontes e sentido da existência humana, como também implica e nos dá ferramentas (acompanhamento humano) para não desvanecer face às dificuldades ou acabar por fazer um caminho (de destruição) inverso àquele que sonhávamos.

A ação que conta!

Sabemos que, na nossa vida, todas as nossas ações contam : tanto para nós como para os outros. Mas, será que contam todas por igual? Diz-nos o papa que são as nossas ações que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus» (Laudato Si’, n.º 131). Contudo, importará perceber que nem sempre se trata de uma questão de adquirir determinados comportamentos. Existem, de fato, alguns comportamentos que temos de aprender e adoptar, mas a nossa ação é algo bem maior do que um conjunto de comportamentos aprendidos!

Por exemplo, se pensarmos na questão ecológica, podemos aprender um bom comportamento e cumpri-lo (quase sempre) : separar o lixo para fazer reciclagem. Contudo, enquanto esse comportamento não se tornar ação, isto é, enquanto não se tornar uma parte integrante daquilo que somos, haverá sempre a possibilidade de relaxarmos este comportamento e nem sempre o fazermos. Assim, se surgisse um momento em que não seria, de todo, possível separar o lixo : se tivermos um comportamento adquirido, iremos (quando muito!) lamentar por não o podermos fazer; mas, se este comportamento se tiver tornado em ação, iremos verdadeiramente sofrer (juntamente com o planeta) com esta situação, como se uma parte de nós estivesse a ser agredida (partilhando da mesma agressão a que a Natureza, neste caso, ficaria sujeita).

A plenitude da nossa vida reger-se-á sempre pelas nossas ações e não pelos nossos comportamentos. Ora, se a nossa ação é pautada pelo vício e pelo egoísmo, a que plenitude chegaremos, senão à da própria destruição? Se pensarmos na vocação, poderemos, eventualmente, pensar : «que devo fazer para começar um real acompanhamento vocacional?» e, à luz deste pensamento, adotar um comportamento concreto (mesmo que não estejamos totalmente convencidos de que é necessário fazê-lo!) : falar com alguém que, talvez, possa vir a acompanhar-nos no processo de discernimento. Ora, nada disto está errado e, muito provavelmente, até será assim que as coisas poderão iniciar-se. No entanto, se vivermos o acompanhamento vocacional unicamente numa linha comportamental – porque dizem que tem de ser – facilmente iremos desistir, zangar-nos e considerar que tudo não passa de uma grande perda de tempo. Ao contrário, se nos permitirmos, pouco a pouco, assimilar este comportamento, não como algo que «devemos fazer» ou como algo que nos é, de alguma maneira, imposto, passaremos a viver essa dimensão vocacional como uma realidade que também integra aquilo que somos. Aí, já não se tratará de um comportamento, mas de uma ação que realizamos. É todo o nosso ser que vive o acompanhamento vocacional e não apenas o nosso intelecto e/ou as nossas emoções.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/519/vocacao-exigencia-e-accao/

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Características de ação dos movimentos fundamentalistas religiosos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Um dos grandes fenômenos que vemos em nossa contemporaneidade é o crescimento do fundamentalismo religioso. Isso não quer dizer que seja algo do tempo presente e que surgiu somente agora. Muito pelo contrário, ao longo de toda a história sempre houve movimentos que reivindicavam para si o conhecimento pleno da vontade divina para a sociedade. Contudo, uma pergunta que sempre se faz é : afinal, por que em pleno século 21 tais movimentos que se mostram extremamente limitadores ainda crescem? O que leva diversas pessoas aderirem a esses movimentos? Essas perguntas não são tolas e devem, sim, fazer-nos pensar sobre tais posturas. Neste pequeno artigo gostaria de elencar quatro características que considero basilares para a compreensão dos modos de ação dos movimentos fundamentalistas de matriz religiosa, tentando, de alguma forma, responder a essas perguntas.

A primeira característica dos fundamentalistas religiosos é a acusação de que a sociedade perdeu a moralidade, o que faz com que ela esteja corrompida. A moralidade é um dos grandes motores dos fundamentalismos religiosos. Esse discurso é baseado geralmente em algum texto considerado sagrado e de origem divina. Dessa forma, a desobediência a essas normas escritas gera a depravação da sociedade e, consequentemente, fomenta os problemas morais. O discurso da perda da moralidade traz junto de si tanto o discurso catastrófico de que alguma coisa acontecerá à sociedade caso não volte aos eixos, quanto a afirmação de que a ira divina alcançará os imorais, fazendo com que toda sociedade pague o preço dessa desobediência.

Esses discursos, gerando o medo, vendem também a possibilidade de segurança, uma segunda característica marcante do fundamentalismo religioso. A busca de segurança faz parte da vida de todo ser humano e tudo que a ameaça gera sensação ruim, fazendo-nos buscar algum porto seguro no qual não correremos risco. Diante da suposta catástrofe vindoura, os movimentos religiosos fundamentalistas oferecem justamente tal porto, que se daria a partir da obediência ao texto ou leis sagrados. A partir dos mesmos textos, dizem que toda pessoa que obedece à lei divina tem a segurança de que o mal anunciado não a alcançará, podendo repousar em paz porque merece tal conforto por seguir as ordens divinas.

Tais escrituras, porém, são tomadas em sua literalidade, o que nos remete à terceira característica desses movimentos. O texto bíblico, talvez, seja o mais emblemático para compreendermos como isso se dá. Os movimentos cristãos fundamentalistas, em sua maioria, tomam a Bíblia de modo literal e acreditam que tudo que está escrito nela é algo dito ipsis literis por Deus. Assim, se a Bíblia diz não, é não; se diz sim, é sim. Não há muito o que se conversar. Esse tipo de leitura, além de tirar o texto do seu contexto, serve de pretexto para toda e qualquer atrocidade que queira fazer em nome de Deus, algo que a Idade Média mostra muito bem.

Uma vez que tudo isso está posto, fica fácil compreendermos uma quarta característica : a clara definição dos amigos e dos inimigos da divindade. A pessoa obediente é amiga e a desobediente é inimiga. Essa definição, que se dá por parte das lideranças de tais movimentos, visto que se consideram conhecedores e aplicadores das ‘verdades’ contidas na literalidade do texto, é responsável pela imposição da ordem necessária desejada pela divindade, o que retorna à primeira característica que mencionamos.

Em uma sociedade em que se percebe a perda de alguns marcos tradicionais, na qual tudo corre o risco de se reduzir a mero jogo de linguagem, na qual tudo está desconstruído e quase já não se encontra algo a ser chamado de verdadeiro, ético, ou universal, é comum que pessoas se sintam inseguras e carentes de respostas diante do mal que acontece no mundo. Elas são dadas de modo muito claro pelos movimentos fundamentalistas : há algo a ser seguido, pronto e definido e toda pessoa que o faz encontra segurança. Esse tipo de discurso, sem dúvida, é extremamente tentador, sendo, a meu ver, um dos motivos pelos quais tais movimentos fundamentalistas crescem em nosso mundo. Claramente, não podemos esquecer os fatores econômicos e sociais que fomentam tais movimentos, mas este texto ficaria muito grande se abordássemos essa questão neste momento.

Sem querer esgotar o tema, considero importante tentar compreender esses passos num momento em que movimentos religiosos fundamentalistas crescem ao redor do mundo e se infiltram nos lugares de poder em diversas sociedades. Estar atento a isso e denunciar tais atitudes se mostram como tarefas teológicas da qual todo teólogo e toda teóloga não deve se furtar de fazê-lo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1480891/2020/11/caracteristicas-de-acao-dos-movimentos-fundamentalistas-religiosos/

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Os grandes benefícios de se sentir perdido

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  

*Artigo do Padre Michael Rennier,

sacerdote católico ordenado através da Provisão Pastoral para ex-clérigos episcopais que foi criado pelo Papa São João Paulo II

 

‘Às vezes, eu me perco de propósito. Em uma corrida, viro em uma rua aleatória porque quero ver como são as casas naquele bairro intrigante, ou talvez haja um parque escondido na esquina ou uma vista diferente do rio. Dessa forma, ao me sentir perdido, encontrei lugares que não consigo encontrar de novo – delicadas fontes urbanas de cobre com crostas verdes por décadas ao sol, riachos salpicados de peixes prateados entrando e saindo da sombra, um cemitério antigo, coberto de grama, da civilização pré-colombiana que viveu nas margens do rio Mississippi há mil anos. São experiências únicas que me ocorrem espontaneamente. Tudo o que tenho a fazer é vagar.

Lembro-me de quando aceitei minha primeira designação para pastorear uma igreja. Eu recentemente havia me formado no seminário. E um pequeno grupo de pessoas me pediu para ir a Cape Cod para ajudá-los a iniciar uma nova paróquia anglicana. Assim, aceitar a posição foi um salto de fé e, para dizer a verdade, eu estava mais perdido do que esperava. Não tinha ideia de como construir uma igreja. Então, felizmente, concordei em me perder no imenso desafio de servir a uma comunidade cristã desde os primeiros momentos de seu nascimento.

Amadurecimento

Minha vontade de me perder de diferentes maneiras ao longo dos anos rendeu frutos. Primeiramente, aprendi muito com meus paroquianos e amadureci como pastor. Então passei a pensar nesses paroquianos como minha família. E juntos nossa comunidade experimental prosperou. Na verdade, como não tinha ideia do que estava fazendo, não tinha preconceitos sobre como exatamente se faz para fazer uma igreja prosperar. Então formamos uma comunidade unida e tentamos todos os tipos de coisas. Enfim, se eu tivesse chegado lá com tudo rigorosamente planejado, toda a experiência teria sido muito menos frutífera.

Da mesma forma, nunca poderia planejar descobrir as partes esquecidas e escondidas da cidade onde moro, porque não tinha ideia de que existiam. A vontade de se perder é o único caminho.

Sentir-se perdido nem sempre é muito divertido. Literalmente falando, nada é pior do que estar em um carro – perdido – enquanto a pessoa ao lado grita que você errou. Metaforicamente, estar perdido como um estado de espírito é estressante. É aquela sensação desagradável de não saber o que fazer a seguir, de não ver um caminho produtivo adiante, de sentir-se inseguro sobre para onde a vida está indo.

Acontece com todos nós em algum ponto ou outro. Pode-se estar preso em uma carreira insatisfatória, mas sem saber qual seria o melhor caminho. Pode-se saber que há uma vocação específica em sua vida, mas você se vê incapaz de localizá-la. Quando a próxima etapa é incerta, perdemos o equilíbrio. Enfim, isso se torna uma grande fonte de estresse e insatisfação.

Oportunidade de crescimento ao se sentir perdido

Tudo depende de como reagimos ao estarmos perdidos. O poeta Rainer Maria Rilke, em uma carta a um jovem poeta que estava perdido sobre o que escrever e o que fazer, escreve : ‘Seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar as próprias questões como se fossem quartos trancados ou livros escritos em uma língua muito estrangeira. Viva as perguntas agora. Talvez então você irá, gradualmente, sem perceber, viver uma longa jornada até a resposta.

A paciência durante os momentos de sensação de estar perdido, de acordo com Rilke, é a chave para coisas novas e surpreendentes. Estar aberto à experiência é vital. A abertura não torna a experiência mais fácil. Embora eu me lembre com carinho de ter trabalhado com aquela igreja nova, também me lembro de momentos intensos de estresse e frustração. Mas se formos pacientes e estivermos de mente aberta, a experiência de estarmos perdidos eventualmente nos levará a transformação.

Correr riscos

Na verdade, não sabemos o que podemos nos tornar até que o tornemos. Então, se nunca estivermos dispostos a correr riscos, nunca iremos experimentar qualquer crescimento pessoal. De que outra forma podemos expandir nossos horizontes, a menos que estejamos dispostos a ir além de nossos limites habituais para um território desconhecido?

Nesse sentido, trata-se de um ato de equilíbrio. Acima de tudo, não estou dizendo para ser imprudente. Mas isso não deve nos impedir de ser aventureiros. E, claro, sentir-se perdido costuma ser uma condição que a vida nos impõe contra nossa vontade. O que realmente importa é como enfrentamos o desafio.

Quando olhamos para trás em nossas vidas, podemos ver como os acontecimentos inesperados, mesmo os momentos muito difíceis, os momentos em que estávamos ansiosos e preocupados, inseguros quanto ao nosso futuro, foram os catalisadores de períodos de enorme crescimento. Então, eu digo, de vez em quando vire à direita, onde normalmente você vira à esquerda. Abra uma nova porta. Vá em frente e se perca.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2020/10/19/os-grandes-beneficios-de-se-sentir-perdido/


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Como a Igreja age politicamente?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

O legado dos cinco primeiros anos de Francisco, o papa 'que desceu ...

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Não é raro ver as pessoas questionarem os rumos tomados pela diplomacia vaticana diante de determinadas situações. Em temos de Francisco, o secretário de estado é o cardeal Pietro Parolin, que já pode ser considerado um dos maiores estrategistas pontifícios da era contemporânea, na opinião de especialistas. Um diplomata experiente que carrega na bagagem uma longa experiência em terras estrangeiras, inclusive com passagem pela América Latina.

Atualmente, são 183 países com os quais, oficialmente, Santa Sé estabelece diálogo. Por isso é importante entender os pormenores das relações entre a Igreja e os estados, bem como a natureza do organismo que coordena essas relações. Só assim, seremos mais honestos em nossas análises, sem cair naquela interpretação pífia de que a Igreja ‘deva quebrar regras’ sem se importar com os conflitos diplomáticos que possam surgir.

É muito fácil questionar sobre o acordo recente entre Santa Sé e a China ou pedir que a instituição seja mais combativa em relação à crise da Venezuela. Difícil é tentar compreender os motivos que levam a instituição ora a silenciar ora a manifestar-se sobre determinadas questões.

Sem adentrar em temas específicas neste artigo, os quais exigem um texto dedicado a eles - como no caso da China - precisamos compreender que a Santa Sé, como representante da Igreja Católica, é um sujeito soberano de direito internacional. E a única organização religiosa dotada de um estado soberano. Portanto, a Santa Sé, considerando o seu grau de representatividade, ‘faz política’ - no melhor sentido da palavra -, não politicagem, o que é completamente diferente. 

Durante a eleição de um pontífice, o voto vai para o candidato que mais corresponda aos anseios da instituição, e se adeque, naquele momento específico, às suas necessidades. Portantoconsiderar que um conclave se submeta às exigências de um establishment, e não esteja condicionado aos parâmetros pré-estabelecidos pela própria instituição, não condiz, sequer, com a própria missão do papado.

Os sumos pontífices de transição são eleitos para atuarem com uma certa continuidade em relação ao governo de seus antecessores, sobretudo quando os cardeais sentem que não é a hora de realizar mudanças bruscas (Basta lembrar da transição entre João Paulo II e Bento XVI). Já os pontífices mais jovens são escolhidos para levar uma certa ‘vitalidade’ às estruturas. Outros papas levam a tiara para lidar com situações mais específicas, que exijam uma certa ‘perspicácia diplomática’, como foi o caso de João XXIII, o papa que promoveu o diálogo em plena Guerra Fria.

Francisco se enquadra neste último caso. Um papa considerado ‘outsider’ em relação a determinados padrões, mas escolhido para desempenhar um papel que o distingue dos demais : devolver a credibilidade à Igreja, abalada pelos escândalos que marcaram os últimos anos de pontificado de Bento XVI. E não só : para satisfazer os desejos de mudança em relação à própria estrutura da cúria romana, que herda aquele espírito de ‘corte renascentista’ que os pontífices contemporâneos pós-conciliares tentaram combater, sem sucesso.

Como explica a historiadora Rita Almeida de Carvalho, em artigo publicado pela revista científica História e Relações Internacionais, ‘o papado hoje, poder neutro sem quaisquer aspirações de natureza temporal, é totalmente independente e livre de todos os laços humanos que o constrangem e obrigam’.

Em outras palavras, a Igreja pensa em si e na sua soberania, de modo que ela se destaque no cenário internacional, e assim garanta a sua liberdade de culto e de atuação em todos os territórios. Não há interesses econômicos, militares ou comerciais em jogo, mas o desejo de salvaguardar a liberdade de 1 bilhão de membros e se tornar um instrumento de mediação e um promotor da dignidade humana, sobretudo em situações de conflito.

Se a Igreja considera que a política, enquanto agente promotor da dignidade humana, não cumpre o seu papel, em muitas ocasiões ela se pronuncia, mesmo que demore a fazê-lo. Papa Francisco, não por acaso, pede insistentemente, sobretudo neste período, um cessar-fogo global, citando, inclusive a situação na Síria. O país, arrasado pela guerra, encontra-se em ruínas por causa disputa entre americanos e russos. A Igreja compra a briga de pessoas, não de partidos. O que é diferente.

Ainda de acordo com a estudiosa, ‘a Igreja Católica procura assim contribuir para a criação de uma nova ordem social, baseada na lei divina e nos ensinamentos cristãos contidos no Evangelho. A diplomacia papal é um instrumento desta pretensão, faz parte da organização transnacional da Igreja concebida para exercer influência’.

O bispo Silvano Tommasi, que foi observador permanente da Santa Sé junto à ONU até 2016, explica que a Igreja Católica ‘trabalha com as nações para que a força da lei prevaleça sobre a lei da força. E o papa, nesse sentido, atua como agente pacificador e conciliador : características assumidas mais concretamente pelo pontífice romano a partir do último grande concílio ecumênico da década de 60. Como disse João Paulo II, em 1998, ‘a sua missão diplomática era ajudar os indivíduos a cumprirem ο seu destino em paz e harmonia, com vista ao bem comum e ao desenvolvimento integral dos indivíduo’.

Por isso a diplomacia pontifícia é considerada sui generis, ou seja, é diferente de todas as outras no tocante aos próprios objetivos que a motivam. Sua soberania moral se exerce sobre pessoas, não sobre territórios. É por isso que quando o papa visita um país estrangeiro, o faz a convite da Igreja local, não das autoridades civis.

Cobrar de Papa Francisco ou de qualquer outro pontífice pronunciamentos incisivos diante de situações delicadas é desconsiderar o peso dessa estrutura que o precede. Há quem critique as ‘omissões papais’ sem sequer conhecer o status quo do Vaticano junto à comunidade internacional. Quer queira, quer não, a Igreja é amparada por um estado que oferece garantias não só à sua subsistência, mas à subsistência de toda a cristandade.

Em tempos de tanto obscurantismo intelectual, nada melhor que nos lembrarmos que estamos diante de uma instituição milenar, a qual precisa ser estudada com afinco para poder ser compreendida. Só assim, nos livraremos das investidas ideológicas que ameaçam sua missão e atrapalham suas investidas diplomáticas em vista da harmonia e do bem comum.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1462833/2020/07/como-a-igreja-age-politicamente/


domingo, 29 de setembro de 2019

Será que realmente cremos que o Espírito age onde quer?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Aprender e abrir-se ao discernimento da ação do Espírito no meio cristão e entre outras religiões é uma tarefa para o teólogo de hoje.
Aprender e abrir-se ao discernimento da ação do Espírito no meio cristão e entre outras religiões é uma tarefa para o teólogo de hoje.

*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


‘Dentre as pessoas da Trindade, talvez a mais difícil sobre quem se falar seja o Espírito Santo. Isso porque, de todas as três, talvez seja aquela com quem tenhamos menos familiaridade imagética. Pensar o Pai e o Filho é mais fácil pois já temos em mente o que é paternidade, maternidade e filiação. Esses papeis já são claros e fazem parte do nosso dia a dia. Todo mundo é filho ou filha de alguém e, consequentemente, tem um pai e uma mãe que lhes são progenitores.

Quando entra a questão do Espírito, comumente esse lastro é perdido e as imagens que se têm começam a ficar somente no campo do fantasioso. É comum pensá-lo como um vulto branco que fica perambulando pelo mundo ou, ainda, como um fantasma, a la filmes hollywoodianos, o que dificulta muito quando se deseja compreender quem seja essa pessoa para o cristianismo.

Ao longo da história, também foram diversas as formas de se falar a respeito do Espírito, numa tentativa de tornar claro para a comunidade cristã quem ele seria. Desde pensá-lo como o Amor – que une o Amante (Pai) e o Amado (Filho) na teoria agostiniana – até as formas que ressaltam mais seu caráter de pessoa trinitária – com suas atribuições na santificação, regeneração e justificação, tal como nas diversas teologias protestantes – é ponto pacífico a consciência de que tudo que se fala a seu respeito só pode ser dito a partir da experiência de fé que dele se faz. Portanto, é impossível qualquer definição que dê conta do Espírito ou que possa circunscrever seu poder de ação.

O Evangelho de João deixa isso mais claro ao dizer que o guiado pelo Espírito é como o vento, que não se sabe de onde vem nem para onde vai (Jo 3,8). Da mesma forma, dá uma característica que se torna de suma importância para se falar dele hoje, a saber, que o Espirito sopra onde quer. Assim, sua ação não deve ser pensada somente dentro de um escopo bem determinado e, muito menos, dentro de hermetismos doutrinais.

Durante muito tempo no movimento cristão, e em muitos movimentos ainda hoje, pensa-se o Espírito como algo restrito à doutrina ou a um lugar específico, como se ele somente agisse quando determinadas normas fossem obedecidas. De  maneira ainda mais exacerbada, chega-se a considerar que sua ação só é possível dentro do meio eclesiástico cristão. Qualquer agir que não conte com aval eclesiástico não poderia ser considerado seu. Nesse sentido, é comum que uma parcela significativa do cristianismo fundamentalista ainda tente controlar e colocar limites para a ação do Espírito e controlar onde e como Ele deveria proceder, ligando-o somente às questões hierárquicas da vida da Igreja.

Uma vez sendo esse o pensamento, embora triste, não é de espantar a existência de movimentos fundamentalistas – católicos ou protestantes – que ainda briguem entre si, afirmando que o Espírito não age em uma comunidade diferente da considerada ‘verdadeira igreja’. Com isso, ao invés de discernirem que a divisão não é obra do Espírito, acreditam que estão lutando em sua causa.

O mesmo acontece quando os cristãos, não só os fundamentalistas, pensam sobre esse agir em outras religiões.  Sua dificuldade está em considerar que o Espírito não é de sua exclusividade. Discernir a ação dele nas outras religiões ainda continua um grande tabu. Certamente, o cristianismo atual, no que se refere a esta questão, ainda está como Nicodemos, que pergunta sem entender a colocação de Jesus : ‘Como pode ser isso?’ (Jo 3,9).

Assim, uma tarefa importante se apresenta aos teólogos que pensam o diálogo ecumênico e interreligioso contemporâneo : aprender e abrir-se ao discernimento da ação do Espírito no meio cristão e entre outras religiões. A partir daí, caberá buscar entender melhor quem é essa pessoa da Trindade, no intuito de ensinar e compreender, juntamente com o povo, que ele age onde quer. Seus traços de amor e de vida precisam ser identificados onde quer que os cristãos se apresentem, sendo esses os critérios para se tatear onde o Espírito de Deus estaria ou não.


Fonte :

domingo, 6 de março de 2016

O preço da cultura

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


Os progressos atuais da humanidade são incontestáveis em vários campos do saber e da cultura.


As crises que pesam sobre os ombros da sociedade, sacrificando os cidadãos, precisam ser enfrentadas, mas não de modo qualquer. Sua superação exige a permanente consideração do tecido da cultura, substrato que alicerça a determinação na busca de soluções, na elaboração de respostas e na configuração de um modo cidadão de ser que empurre o conjunto da sociedade na direção da justiça almejada, da paz sonhada e dos equilíbrios políticos sociais.

Quando comprometida a qualidade do tecido da cultura, o caminho é percorrido em areia movediça, com surpresas desinteressantes e com pouquíssima resiliência para se alcançar metas com força de efetivar novos cenários. Não basta, por isso mesmo, que o esforço de dar nova dinâmica à economia, com a superação dos seus descompassos em desempregos, desigualdades, corrupção e indiferenças, se faça pela via dos números. Por critérios frios na definição das taxas de juros, da lucratividade ou fortalecimento egoísta de setores.

O Papa Francisco, nesse horizonte, reforça a importância dessa compreensão com uma advertência pertinente. Na Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, no capítulo segundo, sobre a crise do compromisso comunitário, sublinha a responsabilidade de cada cidadão. É preciso que cada pessoa, particularmente os formadores de opinião, construtores da sociedade, intelectuais e religiosos, assuma o compromisso de indicar soluções eficazes para as crises e os problemas. E mais, adverte a todos pelo desencadeamento dos processos de desumanização que podem se tornar irreversíveis, dentre eles, o da violência que permeia todos os âmbitos de nossa vida em sociedade.

Nesse contexto, vale refletir com profundidade sobre as várias faces dessa violência, desde a doméstica, com estatísticas absurdas de agressões a mulheres, crianças e idosos, silenciada na privacidade dos lares, às sofridas pelos cidadãos e que atentam contra a inteireza da dignidade humana, até aquelas perpetradas com inteligência doentia nos atos de terrorismo, na corrupção e pelas grandes organizações criminosas.

Os progressos atuais da humanidade são incontestáveis em vários campos do saber tecnológico e da cultura, mas ainda não são capazes de fazer frente a essa triste realidade. São igualmente desafiadoras a exclusão social e a pequenez na estatura cidadã, que precisa urgentemente alavancar processos de mudanças e operacionalizar ações que tenham força para transformar a realidade que hospeda a cidadania no conjunto da sociedade contemporânea.

Vale-nos reportar ainda ao Papa Francisco, na citada exortação apostólica, quando constata o desvanecimento da alegria de viver, em consequência do recrudescimento da violência e da falta de respeito, patentes especialmente na imensa desigualdade social. Prova da incompetência de governantes e de segmentos variados da sociedade, na efetivação das mudanças capazes de reconfigurar os humilhantes cenários que atingem frontalmente a cidadania.

Os saltos velozes, qualitativos e quantitativos, verificados no progresso científico e nas inovações tecnológicas, nos diferentes âmbitos da natureza e da vida precisam contar com a qualidade do tecido da cultura, do qual cada cidadão é portador. Esse tecido cultural, como substrato no caráter e na compreensão do mundo, é determinante para que tenha impacto em cada cidadão de modo a formar os sentidos comunitário e social que deem rumos novos e soluções às crises.

A exemplaridade da cultura mineira, que se desdobra em muitas, convence e explicita o quanto a qualidade do tecido cultural alavanca possibilidades enormes de progresso, pelos valores em tradição, patrimônio, religiosidade, e até na culinária e nas dinâmicas familiares. Patrimônio que exige tratamento adequado por parte de todos, particularmente de seus líderes. Não se pode pensar que o conjunto de uma sociedade regional ou local se desenvolva e aposte em outros crescimentos, esperando que os recursos ‘caiam do céu’. Ou ainda, que os investimentos venham de fora, criando relação de submissão a novas formas de poder, muitas vezes anônimo.

A culturaé um capital da mais alta relevância no desenvolvimento e nas transformações urgidas pe la realidade. Uma sociedade, como a mineira, precisa debruçar-se mais sobre os seus segmentos, da história às expressões variadas, da geografia aos seus monumentos e ao jeito de ser do povo, para contabilizar os preços dessa rica cultura. Em razão, especialmente, das necessidades de desenvolvimento, de soluções dos problemas urgentes e do desenho de novos cenários é indispensável que nosso tecido cultural tenha mais investimento em educação, consciência social e político-cultural. É preciso ir além das lamentações, das constatações e da falta de força nas ações.

O tecido da cultura existente pode ser o ‘pé de apoio’ para se dar um salto adiante e não enjaular-se na mediocridade de alguns governantes, líderes religiosos, intelectuais. Mergulhados e afogados na burocracia, não apostam em processos e projetos, não valorizam a oportunidade de estar e de ser parte dessa cultura chamada sociedade mineira. Assim, paga-se o preço de não avançar e de habituar-se a estilos acanhados demais, vivendo na pobreza, apesar de fazermos parte de uma história de grandes riquezas e sermos detentores de um patrimônio singular em sua relevância.

A cultura expressa nos hábitos, na consciência histórica e política, na valorização ‘quase bairrista’ do nosso patrimônio com sua inteligente utilização e cuidado, é a alavanca para mudar e fazer crescer, com força maior do que os royalties e certos ‘dinheiros’, redimindo, assim, dirigentes, lideranças - cidadãos todos - da mediocridade. É hora de buscar novos rumos e respostas.’


Fonte :
* Artigo na íntegra