*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)
Reflexão sobre o matrimônio e a família na ‘Gaudium
et Spes’ e no hoje
‘Dedico esta meditação a uma reflexão espiritual sobre
a Gaudium et Spes, constituição
pastoral sobre a Igreja no mundo. Dos vários problemas da sociedade abordados
neste texto conciliar – cultura, economia, justiça social, paz –, o mais atual
e problemático é o do matrimônio e família. A ele a Igreja dedicou os dois
últimos sínodos dos bispos. A maioria de nós aqui presentes não vive diretamente
esse estado de vida, mas todos temos de conhecer os seus problemas para
compreender e ajudar a grande maioria do povo de Deus que vive no matrimônio,
especialmente agora que ele está no centro de ataques e ameaças de todas as
partes.
A Gaudium et Spes trata a fundo da família no início da segunda parte
(núm. 46-53). Não há necessidade de citar as suas declarações, que refletem a
doutrina católica tradicional que todos nós conhecemos, além do novo destaque
dado ao amor mútuo entre os cônjuges, abertamente reconhecido como um bem do
matrimônio, também este primário, junto com a procriação.
Sobre o matrimônio e a
família, a Gaudium et Spes, de acordo
com o seu bem conhecido procedimento, destaca antes de tudo as conquistas
positivas do mundo moderno (‘as alegrias
e as esperanças’), e, em segundo lugar, os problemas e os perigos (‘as tristeza e as angústias’). Eu
proponho seguir o mesmo método, tendo em conta, no entanto, as mudanças
dramáticas que ocorreram neste campo ao longo do meio século transcorrido desde
então. Evocarei rapidamente o desígnio de Deus sobre matrimônio e família,
porque é sempre dele que nós, crentes, devemos partir, para em seguida ver o
que a revelação bíblica pode trazer para a solução dos problemas atuais.
Deliberadamente me abstenho de tocar alguns problemas particulares discutidos
no sínodo dos bispos, sobre os quais só o Papa tem agora o direito de ainda
dizer alguma palavra.
Matrimônio e família no projeto divino e no Evangelho de Cristo
O livro do Gênesis tem
dois relatos diferentes da criação do primeiro casal humano, que remontam a
duas tradições diferentes : a javista (século X a.C.) e a mais recente (século
VI a.C.), chamada de ‘sacerdotal’. Na
tradição sacerdotal (Gênesis 1, 26-28), o homem e a mulher são criados
simultaneamente, não um do outro; há uma relação entre ser homem e mulher e ser
à imagem de Deus : ‘Deus criou o homem à
sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou’. O fim
primário da união entre o homem e a mulher é visto no serem fecundos e encherem
a terra.
Na tradição javista, que
é a mais antigo (Gn 2, 18-25), a mulher vem do homem; a criação dos dois sexos
é vista como um remédio para a solidão (‘Não é bom que o homem esteja só; vou
lhe dar uma ajuda que lhe seja semelhante’); mais que o fator da procriação,
acentua-se o fator unitivo (‘o homem se
unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne’); cada um é livre diante
da própria sexualidade e da sexualidade do outro : ‘ambos estavam nus, o homem
e sua mulher, mas não se envergonhavam’.
A explicação mais
convincente do porquê desta ‘invenção’
divina da distinção dos sexos eu encontrei não num exegeta, mas em um poeta,
Paul Claudel :
‘O homem é um ser orgulhoso; não havia outra maneira de fazê-lo
compreender o próximo senão fazê-lo vir da sua carne; não havia outra maneira
de fazê-lo entender a dependência e a necessidade se não mediante a lei sobre
ele deste ser diferente [a mulher], devida ao simples fato de que esse ser
existe’ [1].
Abrir-se ao outro sexo é
o primeiro passo para se abrir ao outro que é o próximo, até o Outro com letra
maiúscula que é Deus. O matrimônio nasce sob o signo da humildade; é
reconhecimento de dependência e, portanto, da própria condição de criatura.
Enamorar-se de uma mulher ou de um homem é fazer o ato mais radical de humildade.
É tornar-se mendicante e dizer ao outro : ‘Eu
não basto para mim mesmo; eu preciso do teu ser’. Se, como pensava
Schleiermacher, a essência da religião consiste no ‘sentimento de dependência’ (Abhaengigheitsgefühl) perante Deus,
então podemos dizer que a sexualidade humana é a primeira escola da religião.
Até aqui, o projeto de
Deus. Não é explicável o resto da própria Bíblia, no entanto, se, junto com o
relato da criação, não se leva em conta ainda o da queda, em especial o que é
dito à mulher : ‘Multiplicarei as tuas
dores; na dor darás à luz os filhos. Ao teu marido se voltará o teu instinto,
mas ele te dominará’ (Gn 3,16). O predomínio do homem sobre a mulher faz
parte do pecado do homem, não do projeto de Deus; com aquelas palavras, Deus o
prenuncia, não o aprova.
A Bíblia é um livro
divino-humano não só porque tem como autores Deus e o homem, mas também porque
descreve, misturadas entre si, a fidelidade de Deus e a infidelidade do homem.
Isto é particularmente evidente quando se compara o projeto de Deus sobre o
matrimônio e a família com a sua aplicação prática na história do povo
escolhido. Para ficar no livro do Gênesis, o filho de Caim, Lameque, já viola a
lei da monogamia tomando duas esposas. Noé, com a sua família, se mostra uma
exceção em meio à corrupção geral do seu tempo. Os mesmos patriarcas Abraão e
Jacó têm filhos com mais de uma mulher. Moisés autoriza a prática do divórcio;
Davi e Salomão mantêm um verdadeiro harém de mulheres.
Mais do que nas
transgressões práticas específicas, o afastamento do ideal inicial é visível na
concepção de fundo que se tem do matrimônio em Israel. O principal
obscurecimento se refere a dois pilares. O primeiro é que o matrimônio, de fim,
se torna meio. O Antigo Testamento, como um todo, considera o matrimônio como
uma estrutura de autoridade patriarcal, destinada principalmente à perpetuação
do clã. Neste sentido, devem ser entendidas as instituições do levirato (Dt 25,
5-10), do concubinato (Gn 16) e da poligamia provisória. O ideal de uma
comunhão de vida entre o homem e a mulher, fundada em uma relação pessoal e
recíproca, não é esquecido, mas passa a segundo plano em relação ao bem da
prole. O segundo grande obscurecimento se refere à condição da mulher : de
companheira do homem, dotada de igual dignidade, ela aparece cada vez mais
subordinada ao homem e em função do homem.
Um papel importante em
manter vivo o projeto inicial de Deus sobre o matrimônio é desempenhado pelos
profetas, em especial Oseias, Isaías, Jeremias e o Cântico dos Cânticos.
Assumindo a união do homem e da mulher como símbolo da aliança entre Deus e seu
povo, eles recolocavam em primeiro plano os valores do amor mútuo, da
fidelidade e da indissolubilidade que caracterizam a atitude de Deus para com
Israel.
Jesus, que veio ‘recapitular’ a história humana,
recapitula também o matrimônio.
‘Alguns fariseus se aproximaram então para testá-lo e lhe perguntaram :
É lícito a um homem repudiar a sua mulher por qualquer motivo? E ele respondeu :
Não lestes que o Criador desde o princípio os fez homem e mulher (Gn 1, 27) e
disse : Por esta razão, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua
mulher e os dois serão uma só carne? (Gn 2, 24). Eles não são mais dois, e sim
uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe’ (Mt 19,3-6).
Os adversários se situam
no âmbito estreito da casuística de escola (se é lícito repudiar a mulher por
qualquer motivo ou se é preciso um motivo específico e sério). Jesus responde
desde o início a partir da raiz do problema. Em sua citação, Jesus se refere
aos dois relatos da instituição do matrimônio, toma elementos de um e do outro,
mas destaca especialmente o aspecto da comunhão das pessoas.
O que se segue no texto,
sobre o problema do divórcio, também vai nessa direção; reafirma a fidelidade e
a indissolubilidade do vínculo matrimonial acima do próprio bem da prole, que,
no passado, fora usado para justificar poligamia, levirato e divórcio :
‘Eles objetaram : Por que então Moisés ordenou dar-lhe carta de repúdio
e mandá-la embora? Jesus lhes respondeu : Por causa da dureza do vosso coração
Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas no princípio não foi assim.
Por isso vos digo que qualquer um que repudia a sua mulher, exceto em caso de
concubinato, e se casa com outra comete adultério’ (Mt 19, 7-9).
O texto paralelo de
Marcos mostra que, mesmo em caso de divórcio, o homem e a mulher se colocam, de
acordo com Jesus, em rigoroso pé de igualdade : ‘Quem repudia a sua mulher e se casa com outra comete adultério contra
ela; e se ela repudia o marido e se casa com outro, comete adultério’ (Mc
10, 11-12).
Com as palavras ‘O que Deus uniu, o homem não separe’,
Jesus afirma que há uma intervenção direta de Deus em toda união matrimonial. A
elevação do matrimônio a ‘sacramento’,
isto é, a sinal de uma ação de Deus, não se alicerça, portanto, unicamente no
frágil argumento da presença de Jesus nas bodas de Caná e no texto da carta aos
Efésios que fala do matrimônio como de um reflexo da união entre Cristo e a
Igreja (cf. Ef 5, 32); começa, implicitamente, com o Jesus terreno e faz parte
da sua religação das coisas com o início. João Paulo II define o matrimônio
como o ‘sacramento mais antigo’ [2].
O que o ensinamento bíblico nos diz hoje
Esta é, em resumo, a
doutrina da Bíblia, mas não podemos deter-nos nela. ‘A Escritura – dizia São Gregório Magno – cresce com quem a lê’ (cum
legentibus crescit) [3]; revela
novas implicações à medida que novas perguntas são feitas. E, hoje, as novas
perguntas, ou provocações, sobre matrimônio e família são muitas.
Estamos diante de uma
contestação aparentemente global do projeto bíblico sobre sexualidade,
matrimônio e família. Como comportar-se em face deste fenômeno inquietante? O
concílio abriu um método novo que é de diálogo, não de confronto com o mundo;
um método que não exclui a autocrítica. Devemos, penso eu, aplicar este método
também à discussão dos problemas do matrimônio e da família. Aplicar este
método de diálogo significa tentar ver se, mesmo no fundo das contestações mais
radicais, não há uma instância positiva a ser acolhida.
A crítica ao modelo
tradicional de matrimônio e família que levou às hodiernas e inaceitáveis
propostas de desconstrucionismo começou com o iluminismo e o romantismo. Com
intenções diversas, esses dois movimentos se expressaram contra o matrimônio
tradicional visto exclusivamente nos seus ‘fins’
objetivos : a prole, a sociedade, a Igreja, e não o suficiente em si mesmo, no
seu valor subjetivo e interpessoal. Tudo se exigia dos futuros cônjuges exceto
que se amassem e se escolhessem livremente entre si. Ainda hoje, em muitas
partes do mundo, há casais que se conhecem e se veem pela primeira vez no dia
das núpcias. A tal modelo, o iluminismo opôs o matrimônio como pacto entre os
cônjuges e o romantismo como comunhão de amor entre os esposos.
Mas esta crítica não vai
contra a Bíblia, e sim a favor do seu sentido original! O concílio Vaticano II
recebeu esta instância quando reconheceu como bem igualmente primário do
matrimônio o amor e ajuda mútuos entre os cônjuges. São João Paulo II, na linha
da Gaudium et Spes, em uma das suas
catequeses das quartas-feiras, disse :
‘O corpo humano, com o seu sexo, e a sua masculinidade e feminilidade
(…) é não apenas fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem
natural, mas inclui, desde o início, o atributo esponsal, isto é, de expressar
o amor : aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom e, através desse dom,
cumpre o próprio sentido do seu ser e existir’ [4].
Em sua encíclica ‘Deus Caritas Est’, o papa Bento XVI foi
além, escrevendo coisas profundas e novas sobre o eros no matrimônio e até nas
relações entre Deus e o homem. ‘Esta
estreita ligação entre eros e matrimônio na Bíblia quase não tem paralelos na
literatura’, escreveu ele [5].
Um dos maiores erros que cometemos para com Deus é transformar tudo o que diz
respeito ao amor e à sexualidade em uma área saturada de malícia, onde Deus não
deve entrar. Como se satanás, e não Deus, fosse o criador dos sexos e o
especialista no amor.
Nós, crentes – e muitos
não crentes – estamos longe de aceitar as consequências que alguns tiram hoje
destas premissas : por exemplo, que bastaria qualquer tipo de eros para
constituir um matrimônio, inclusive o de pessoas do mesmo sexo; mas essa nossa
discordância assume outra força e credibilidade quando unida ao reconhecimento
da bondade de fundo da instância, e também a uma sadia autocrítica.
Não podemos silenciar a
contribuição que os cristãos deram à formação dessa visão puramente objetivista
do matrimônio contra a qual a cultura ocidental moderna se lançou com
veemência. A autoridade de Agostinho, reforçada neste ponto por Tomás de
Aquino, tinha acabado jogando uma luz negativa na união carnal dos cônjuges,
considerada o meio de transmissão do pecado original e não isenta, em si mesma,
de pecado ‘ao menos venial’. De
acordo com o doutor de Hipona, cônjuges deveriam realizar o ato conjugal ‘com pesar’ (cum dolore) e só porque não havia outra maneira de dar cidadãos ao
Estado e membros à Igreja [6].
Outra instância moderna
que podemos tornar nossa própria é a da igual dignidade da mulher no
matrimônio. Essa igualdade, como vimos, está no cerne do projeto originário de
Deus e do pensamento de Cristo, mas foi muitas vezes desatendida ao longo dos
séculos. A palavra de Deus a Eva, ‘Ao
homem se voltará o teu desejo e ele te dominará’, teve cumprimento trágico
na história.
Nos representantes da
chamada ‘revolução dos gêneros’, esta
instância levou a propostas insanas, como a de abolir a distinção dos sexos e
substituí-la pela mais elástica e subjetiva distinção de ‘gêneros’ (masculino, feminino, variável), ou a de libertar as
mulheres da ‘escravidão da maternidade’,
prevendo outros meios, inventados pelo homem, para o nascimento dos filhos. Nos
últimos tempos há uma sucessão de notícias de que homens em breve poderão ficar
grávidos e dará à luz um filho. ‘Adão dá
Eva à luz’, escreve-se sorrindo, quando seria de se chorar. Os antigos
teriam definido tudo isso com um termo :hybris,
a arrogância do homem diante de Deus.
É justamente a escolha do
diálogo e da autocrítica o que nos dá o direito de denunciar estes projetos
como ‘desumanos’, ou seja, contrários
não só à vontade de Deus, mas também ao bem da humanidade. Traduzidos na
prática em larga escala, eles poderiam levar a quedas humanas e sociais
imprevisíveis. Nossa única esperança é que o bom senso das pessoas, junto com o
‘desejo’ natural do sexo oposto e com
o instinto de maternidade e paternidade que Deus inscreveu na natureza humana,
resista a essas tentativas de substituir Deus, ditadas mais por tardios
sentimentos de culpa do homem do que por genuíno respeito e amor à mulher.
Um ideal a ser redescoberto
Não menos importante que
a tarefa de defender o ideal bíblico do matrimônio e da família é a tarefa de
redescobri-lo e vivê-lo plenamente como cristãos, a fim de repropô-lo ao mundo
mais com fatos do que com palavras. Os primeiros cristãos, com seus costumes,
mudaram as leis do Estado sobre a família; nós não podemos pensar em fazer o
oposto, ou seja, em mudar os costumes das pessoas com as leis do Estado, ainda
que, como cidadãos, tenhamos o dever de ajudar o Estado a fazer leis justas.
Depois de Cristo, nós
lemos corretamente o relato da criação do homem e da mulher à luz da revelação
da Trindade. A esta luz, a frase ‘Deus
criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou’
revela finalmente o seu significado, enigmático e incerto antes de Cristo. Que
relação pode haver entre ser ‘à imagem de
Deus’ e ser ‘homem e mulher’? O
Deus da Bíblia não tem conotações sexuais, não é nem homem nem mulher.
A semelhança consiste
nisto. Deus é amor e o amor exige comunhão, intercâmbio interpessoal; exige um ‘eu’ e um ‘tu’. Não há amor que não seja amor de alguém; onde só há um
sujeito, não pode haver amor, mas egoísmo ou narcisismo. Onde Deus é concebido
como Lei ou Poder Absoluto não há necessidade de uma pluralidade de pessoas (o
poder pode ser exercido sozinho). O Deus revelado por Jesus Cristo, sendo amor,
é único, mas não solitário; é uno e trino. Coexistem nele unidade e distinção :
unidade de natureza, de querer, da intenção, e distinção de características e
de pessoas.
Duas pessoas que se amam
– e o caso do homem e da mulher no matrimônio é o mais forte – reproduzem algo
do que acontece na Trindade. Lá, duas pessoas – o Pai e o Filho – se amam e ‘sopram’ o Espírito que é o amor que os
funde. Houve quem chamasse o Espírito Santo de ‘Nós divino’, ou seja, não a ‘terceira
pessoa da Trindade’, mas a primeira pessoa plural [7]. Precisamente nisto é que o casal humano é imagem de Deus.
Marido e mulher são, de fato, uma só carne, um só coração, uma só alma, ainda
que na diversidade de sexo e de personalidade. No casal se reconciliam entre si
a unidade e a diversidade.
A esta luz, descobre-se o
profundo significado da mensagem dos profetas sobre o matrimônio humano : que
ele é um símbolo e reflexo de outro amor, o de Deus pelo seu povo. Isto não
significava sobrecarregar de significado místico uma realidade puramente
mundana. Não é apenas fazer simbolismo; é, antes, revelar a verdadeira face e o
escopo último da criação do ser humano como homem e mulher.
Qual é a causa da
incompletude deixada pela união sexual, dentro e fora do matrimônio? Por que
esta dinâmica recai sempre sobre si própria e por que esta promessa de infinito
e eterno é sempre frustrada? Para esta desilusão se tenta um remédio que, no
entanto, só faz aumentá-la. Em vez de mudar a qualidade do ato, se aumenta a
sua quantidade, passando-se de um parceiro a outro. Chega-se assim à destruição
do dom de Deus que é a sexualidade, destruição em andamento na cultura e na
sociedade de hoje.
Queremos de vez, como
cristãos, procurar uma explicação para esta devastadora disfunção? A explicação
é que a união sexual não é vivida do jeito e com a intenção querida por Deus.
Este escopo era que, através do êxtase e da fusão de amor, o homem e a mulher
se elevassem acima do desejo e tivessem certa pregustação do infinito; que se
lembrassem de onde vieram e para onde eram direcionados.
O pecado, a começar pelo
de Adão e Eva bíblicos, atravessou este projeto; ‘profanou’ aquele gesto, ou seja, o destituiu do seu significado
religioso. Fez dele um gesto que é fim de si mesmo, conclusão em si mesmo e,
portanto, ‘insatisfatório’. O símbolo
foi separado da realidade simbolizada, privado de seu dinamismo intrínseco e,
portanto, mutilado. Nunca como neste caso se experimenta a verdade do dito de
Agostinho : ‘Fizeste-nos para ti, ó Deus,
e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti’. Não fomos
criados, de fato, para viver num eterno relacionamento de casal, mas para viver
num eterno relacionamento com Deus, com o Absoluto. Mesmo o Fausto de Goethe o
descobre ao fim do seu longo vagar; repensando em seu amor por Margarida, ele
exclama no final do poema : ‘Tudo o que
passa é só uma parábola. Só aqui [no céu] o inatingível se torna realidade’.
No testemunho de alguns
casais que fizeram a experiência renovadora do Espírito Santo e vivem a vida
cristã carismaticamente, encontra-se algo do significado original do ato
conjugal. Não é de admirar que seja assim. O matrimônio é o sacramento do dom
recíproco que os esposos fazem de si mesmos um ao outro, e o Espírito Santo é,
na Trindade, o ‘dom’, ou melhor, o ‘doar-se’ recíproco do Pai e do Filho,
não um ato passageiro, mas um estado permanente. Onde chega o Espírito Santo,
nasce, ou renasce, a capacidade de fazer-se dom. É assim que opera a ‘graça de estado’ no matrimônio.
Casados e consagrados na Igreja
Embora nós, consagrados,
não vivamos a realidade do matrimônio, como eu disse anteriormente, nós temos
de conhecê-la para ajudar os que a vivem. Adiciono outra razão : precisamos
conhecê-la para ser, nós também, ajudados por eles! Falando de matrimônio e
virgindade, o Apóstolo diz : ‘Cada um tem
o próprio dom (chárisma) de Deus, uns de uma forma, outros de outra’ (1 Cor
7, 7); ou seja : o casado tem seu carisma e o que não se casa ‘por causa do Senhor’ tem o dele.
O carisma – diz o mesmo
Apóstolo – é ‘uma manifestação particular
do Espírito para o bem comum’ (1 Cor 12, 7). Aplicado à relação entre
casados e consagrados na Igreja, isto significa que o celibato e a virgindade
também são para os casados e que o matrimônio também é para os consagrados, ou
seja, para o seu bem. Esta é a natureza intrínseca do carisma, aparentemente
contraditória : algo de ‘particular’
(‘uma manifestação particular do Espírito’),
mas que serve a todos (‘para o bem comum’).
Na comunidade cristã,
consagrados e casados podem ‘edificar’
uns aos outros. As pessoas casadas são chamadas, pelos consagrados, ao primado
de Deus e daquilo que não passa; são introduzidos no amor à Palavra de Deus que
eles podem melhor aprofundar e ‘compartilhar’
com os leigos. Mas as pessoas consagradas também aprendem algo das casadas.
Aprendem a generosidade, a abnegação, o serviço à vida e, muitas vezes, certa ‘humanidade’ que vem do duro contato com
as realidades da existência.
Falo por experiência
própria. Eu pertenço a uma ordem religiosa em que, até alguns anos atrás, nos
levantávamos à noite para recitar o ofício ‘matutino’,
que durava cerca de uma hora. Houve então o grande ponto de viragem na vida
religiosa, resultante do concílio. Parecia que o ritmo da vida moderna – o
estudo para os jovens e o ministério apostólico para os sacerdotes – não
permitia mais aquele levantar-se noturno que interrompia o sono, e, pouco a
pouco, ele foi abandonado, a não ser em alguns lugares de formação.
Quando, mais tarde, o
Senhor me deu a conhecer de perto, em meu ministério, várias famílias jovens,
descobri algo que salutarmente me sacudiu. Aqueles jovens papais e mamães
tinham de se levantar não uma, e sim duas, três ou mais vezes por noite para
dar de comer, dar remédios, embalar o bebê se ele chorasse, cuidar dele se
estivesse com febre. E, de manhã, um dos dois, ou ambos, na hora de sempre,
tinham de correr para o trabalho depois de levar a criança para a casa dos avós
ou para a creche. Havia um relógio-ponto para ser batido, fizesse bom ou mau
tempo, com saúde ou sem ela.
Então eu me disse : se
não corrermos para nos consertar, corremos grave perigo! O nosso modo de vida,
se não for regido pela observância autêntica da Regra e por certo rigor de
horários e hábitos, periga se tornar uma vida mansa e nos levar à dureza do
coração. O que os bons pais são capazes de fazer pelos filhos carnais, o grau
de esquecimento de si mesmos a que são capazes de chegar para cuidar da saúde
deles, dos seus estudos e da sua felicidade, deve ser a medida do que nós
devemos fazer pelos nossos filhos e irmãos espirituais. Temos o exemplo do
apóstolo Paulo, que dizia querer ‘consumir-se’
pelos seus filhos de Corinto (cf. 2 Cor 12, 15).
Que o Espírito Santo,
doador dos carismas, ajudar a todos nós, casados ou consagrados, a colocar em
prática a exortação do apóstolo Pedro :
‘Viva cada um segundo o dom recebido, colocando-o a serviço dos outros,
como bons administradores da multiforme graça de Deus (…), para que em tudo
seja Deus glorificado por meio de Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o
poder pelos séculos dos séculos. Amém!’ (1 Pd 4, 10-11).’
Fonte :
*Artigo na íntegra
------------------------
[1] P. Claudel, Le soulier de satin,
a.III. sc.8 (ed. La Pléiade, II, Paris 1956, pág. 804).
[2] João
Paulo II, Homem e mulher os criou. Catequeses sobre o amor humano,
Roma 1985, pág. 365.
[3] Gregorio
Magno, Moralia in Job, 20, 1, 1.
[4] João
Paulo II, audiência de 16 de janeiro de 1980 (Insegnamenti di Giovanni Paolo
II, Libreria Editrice Vaticana 1980, pág. 148).
[5] Bento
XVI, Deus caritas est, 11.
[6] Cf.
Santo Agostinho, Discursos, 51, 25 (PL 38, 348).
[7] Cf. H. Mühlen , Der Heilige Geist als Person.
Ich – Du – Wir, Münster in W., 1963.'
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