terça-feira, 23 de setembro de 2014

Missionários na China : Como pedras escondidas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

   *Artigo de Padre José Rebelo,
Missionário Comboniano


O que torna difícil a missão na China?

Bem, há muitas missões na China. Foi particularmente difícil nos primeiros anos por causa do problema da língua. Além disso, as energias investidas no nosso trabalho pastoral não foram proporcionais aos resultados que estávamos a obter. Por outro lado, estávamos num contexto onde havia um certo número de católicos e liberdade política e religiosa [em Taiwan, nota do editor]. Estávamos numa comunidade e numa paróquia, de alguma forma, protegidos e ocupados a fazer coisas, mesmo que os resultados fossem muito poucos. Trabalhávamos da maneira tradicional missionária – no contexto de uma paróquia em que fomos inseridos. Olhando para trás para essa experiência, reconheço que foi um desafio, mas menor do que o que enfrentamos agora [na China continental, nota do editor].

A maneira como estamos a fazer a missão agora na China é diferente, por várias razões. Vivemos num lugar e trabalhamos noutro, faltando um sentimento de pertença. Como estamos a trabalhar na formação, precisamos de muito tempo para preparar os materiais. O tempo nunca é suficiente. Então, vamos a um lugar no continente e ficamos lá por curtos períodos de tempo, dois ou três dias, uma semana, para um retiro anual ou até duas semanas para um curso bíblico. Tentamos integrar-nos com as pessoas, mas passado esse tempo com eles, podemos não voltar a vê-las. Temos essa sensação de ser pedras escondidas. Nós não somos protagonistas! O que me deu um sentido de humildade e de rendição à vontade de Deus. No fim, a única coisa que nos mantém nesse tipo de trabalho é a confiança que temos em Deus. Nós fazemos este trabalho especial por causa de Deus ou para Deus.


É uma obra de fé!

Assim é. Os resultados são escassos. Por exemplo, agora estou prestes a ir para o continente e a ter pelo menos cinco diferentes actividades de formação : orientar dois retiros de três dias e realizar encontros de formação com os seminaristas e as crianças. Acabados os cursos, vamo-nos embora e ficamos sem saber o impacto que houve. Quando semeamos, também gostamos de colher. Não o podemos fazer, é difícil fazê-lo. É por isso que este trabalho requer uma espiritualidade forte, uma força interior que permita que se continue com serenidade, convencido de que esta é a obra de Deus. Confiamos em Deus e vamos em frente, mesmo que mal possamos ver os resultados. Estamos numa situação muito especial : estamos a servir a Igreja na China. Este é o tipo de trabalho missionário que fazemos. É emocionante e desafiador. Posso dizer que, até agora, estou muito feliz.


As pessoas dão valor ao trabalho que faz?

A Igreja na China está a enfrentar a cruz. O missionário que quer ir para a China tem de viver e experimentar as mesmas condições que as pessoas. Ele não domina o que está a acontecer. Primeiro, ele pode planear apenas para os meses imediatos. Então, mesmo que planeie as suas actividades, não sabe o que vai acontecer. A polícia pode detê-los a qualquer momento. Este trabalho é clandestino tanto para a Igreja legal como para a comunidade subterrânea. Não é permitido, é ilegal. Então, isso põe-nos numa situação de tensão que não é fácil de suportar.


A língua e a cultura são obstáculos para o seu trabalho no sentido de impedi-lo de partilhar os conteúdos e as experiências que desejou?

Pode impedir-nos de expressar completamente as experiências religiosas que queremos transmitir. No entanto, a língua não pode ser vista como um obstáculo para a missão. O que passamos no início, ao aprendermos a língua pacientemente, é apenas uma amostra do que vai acontecer depois. É um tipo de treino. O estudo da língua não é uma preparação para a evangelização, é o momento mais genuíno para o missionário expressar o amor às pessoas que ele estará a servir mesmo que ainda desconhecidas para ele. Ele investe todas as suas energias e capacidades num povo que não conhece ainda. Portanto, considero a língua não como um obstáculo mas como um verdadeiro compromisso missionário : ela põe-nos no ambiente certo para as coisas que estão para vir.


O que o faz sentir-se humilde!?

O modelo é a humildade de Jesus, como aparece na carta aos Filipenses (2, 5-11). O hino proclama que Jesus, apesar de ser Deus, ‘esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo, e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz’. A humildade de pôr-se ao serviço das pessoas, confiando em Deus, é muito necessária. Na África, onde trabalhei alguns anos, eu era o protagonista. Na Ásia, isso não acontece muito. As pessoas podem gostar de nós e apreciar o que dizemos e fazemos, mas, depois de alguns dias, temos de começar de novo, mais tarde, noutro lugar. Devemos ter a atitude de João Baptista – que Ele cresça e nós possamos diminuir. Não nos devemos tornar um obstáculo para que as pessoas venham a Cristo, que por vezes pode acontecer. Este é o trabalho de um missionário.


Esse trabalho na China pode ser feito por qualquer pessoa?

Provavelmente não. Nem toda a gente gosta deste tipo de missão – entrar e sair e gastar muito tempo a preparar-se para os cursos. Há pessoas que gostam de uma vida mais estável, por exemplo, num ambiente paroquial. O tipo de trabalho que estamos a fazer na China continental põe-nos numa situação muito, muito irregular. Certamente, sem uma vida de oração é difícil aceitar as cruzes que vêm por aí e fazem parte do todo que é este tipo de vida missionária. A China tem uma Igreja local pobre. Colaborar com ela, dando alguma da formação de que ela mais precisa, é um privilégio.


Podemos dizer que este é um trabalho provisório?

O trabalho provisório é uma das características do trabalho missionário desde o início do Cristianismo. São Paulo é um bom exemplo : viajava e estabelecia as primeiras comunidades sem estar por muito tempo num só lugar. O papel dos missionários é ajudar no nascimento da Igreja, confiá-la à população local e seguir em frente. Quando os missionários comemoram o 75.º ou o 100.º aniversário de uma comunidade na África ou na América Latina, sinto-me envergonhado! Parece que estão a comemorar o seu próprio fracasso em estabelecer a Igreja local e transmiti-la às pessoas.


Está aqui há muitos anos. Quando veio pela primeira vez, não estava a pensar que a China ia abrir-se mais rapidamente do que está a acontecer?

Com certeza! Às vezes, vem-me à mente : o que seria a situação na China se houvesse liberdade de religião? Mas sou realista e nunca trabalho segundo a abordagem do ‘se’. Atenho-me muito à realidade. Temos também de admitir que houve melhorias nos últimos vinte anos. Isso significa que a Igreja está a crescer com altos e baixos por causa das circunstâncias. Há sinais positivos, por exemplo, no campo da formação. Vinte anos atrás, eu estava a chegar à China e as regras e abordagens do Concílio Vaticano II estavam a começar a ser postas em prática. Hoje em dia, há boas comunidades cristãs na China. Há bons grupos missionários e alguns leigos que vão para outros lugares partilhar o seu zelo missionário. Há um grande grupo de irmãs que foram estudar no estrangeiro e vão voltar para as suas congregações e dioceses e elas estão a ir bem. Há muitos padres que foram para o estrangeiro para estudar e voltaram, e são boas pessoas de recurso. Como as vocações diminuem, os leigos estão a crescer em espírito missionário.



Os problemas não o preocupam mais do que deviam?

Os problemas sempre existiram e digo sempre o seguinte : se a Igreja na China, durante a Revolução Cultural, foi capaz de encontrar o seu caminho, sobreviver e sair com muito entusiasmo, a situação por que estamos a passar não tem nada que se compare com esse momento. A Igreja na China está acostumada a carregar a cruz e, por isso, é justo que também os missionários se envolvam e assumam os desafios da Igreja. Nós também devemos levar a cruz com esperança.


Os cristãos na China estão esperançados no futuro?

A China é grande e as coisas mudam de um lugar para outro. Após sessenta anos, os cristãos de ambas as comunidades (clandestina e pública) sabem como sobreviver no quadro político – como puxar o fio o suficiente, mas sem o partir. Há experiências muito interessantes de paróquias renovadas. Uma preocupação é o êxodo rural para as áreas urbanas. Essa é uma das coisas que a Igreja ainda não tratou. Os jovens estão a deixar as áreas rurais e a irem para as principais cidades para estudar. Nas áreas rurais, a Igreja é activa, hoje em dia, podem até mesmo tocar os sinos. Então, toda a gente sabe quando tem de ir à missa ou à oração. Na cidade, a situação é muito diferente e, lentamente, esta geração mais jovem, se não é bem-vinda aos lugares onde está ou se as paróquias urbanas não encontram o caminho para entrar em contacto com ela, podemos estar à beira de perder toda uma geração. Para mim, esta é uma das principais preocupações para a Igreja na China. Tenho assistido a muitos simpósios, mas não ouvi falar de uma tentativa de resolver este problema.


Há experiências missionárias?

No outro dia, entrei em contacto com um grupo missionário em Hebei animado por um padre que é uma pessoa muito zelosa e entusiasmada, com uma mente missionária. Foram-se deslocando constantemente, indo para as cidades e áreas rurais. Disseram-me : ‘Nós somos a Dagong de Deus.’ (Dagong são os migrantes que vão para outros lugares à procura de emprego e de dinheiro.) ‘Fazemos este tipo de migração para Deus, para partilhar a Palavra de Deus!’ Isso é algo que vai mudar a situação do Cristianismo na China, porque, tradicionalmente, o Cristianismo foi estabelecido em áreas rurais, mas agora está a mudar destas para as áreas urbanas. Quem cuida dessa massa toda de pessoas que fluem de um lugar para outro? Esta é uma das principais preocupações! Na verdade, algumas das actividades que organizamos ocorrem quando esses migrantes estão em casa, que é no Verão ou durante o Ano Novo chinês. Estas são as épocas em que os alunos recebem outros jovens e pessoas que estão a trabalhar noutras províncias.


Foi o fundador de Fenxiang. Como aconteceu isso?

Foi em 1998. Percebi que tinha de ter algo do tipo, porque pertencia a uma congregação missionária que trabalha na Ásia, o continente mais populoso, onde poucos são cristãos, e por causa da situação particular da China, cuja Igreja foi passando o mistério pascal, a paixão, morte e ressurreição de Cristo. Começámos a pensar no assunto e, desde o início, vi que a formação era a questão crucial. Em seguida, houve a necessidade de promoção humana. Outra questão que considerei muito importante foi a forma de partilhar o nosso espírito missionário com a Igreja local. Estes foram os três pilares que inspiraram a nossa presença na China.

Durante os últimos anos, estes têm vindo a desenvolver-se. Vendo os desafios e as circunstâncias, algumas mudanças foram feitas na modalidade e na forma como fazemos as coisas, mas ainda mantemos esses três princípios : formação, promoção humana e visão missionária. No início, estávamos mais preocupados com a promoção humana e patrocinávamos muitos projectos de desenvolvimento. Ainda estamos envolvidos com a promoção humana, a lidar com os mais marginalizados : ajudamos os órfãos e damos bolsas de estudo a crianças muito pobres, apoiamos as famílias afectadas pela sida e pagamos os cursos de formação das pessoas que cuidam delas. Mas agora estamos a concentrar-nos cada vez mais na formação e na animação missionária. Se há algo sensível na China, é essa dimensão missionária. É o oposto do que o Governo da China gostaria de ouvir. Uma vez que nos sentimos agora mais à vontade ​​com a língua e conhecemos as pessoas, ministramos cursos. Muitas paróquias e muitas dioceses pedem-nos essa ajuda. Como fazer o trabalho missionário num país com 1 bilhão e 300 milhões de pessoas e uma minoria de cristãos? Como abordar os não cristãos? E darmos-lhes algumas ferramentas para os ajudar a viver como cristãos (espiritualidade missionária, estudo da Bíblia e assim por diante).


Já alguma vez se envolveu com os leprosos?

Sim! Trabalhei de perto com eles há alguns anos. Nessa altura, patrocinámos bolsas de estudo para crianças cujos pais viviam em aldeias de leprosos.


A lepra ainda é um grande estigma social?

Durante os últimos anos, não tive muito contacto com eles. No entanto, permanece como uma espécie de tabu na China e noutros lugares. As pessoas receiam-na como se fosse uma doença contagiosa. O Governo nega que haja lepra e considera que é uma doença de pele. A Igreja está muito envolvida com eles, especialmente as Irmãs, que estão a fazer algo que o Governo é incapaz de fazer. Uma das razões para a Igreja emergir na sociedade é justamente por isso : apoia aqueles que são ‘ninguém’ : leprosos, órfãos, deficientes, doentes de sida. Muitas estruturas diocesanas, sobretudo através das Irmãs, lidam com essas situações. As pessoas vêm para conhecer a Igreja, através dessas iniciativas. É uma ‘Igreja samaritana’. A Igreja fez a opção pelos marginalizados, mostrando-o de muitas maneiras diferentes. Isso é algo que temos de aplaudir. Nós apoiamos estas iniciativas a favor das pessoas excluídas.


Será que uma congregação missionária tem alguma coisa a ganhar com este tipo de serviço?

Eu acho que uma congregação missionária não pode deixar de estar presente na China. É uma das fronteiras da missão na qual não somos protagonistas, não podemos controlar as coisas de qualquer maneira possível, onde temos muito poucas satisfações e experimentamos a cruz. Estes são os traços genuínos para nos ajudarem a viver profundamente a nossa espiritualidade missionária. Aqui estamos humilhados, e acho que isso é único e tem de ser trazido para toda a congregação. Talvez esta missão não seja para todos, mas dá-nos a perspectiva correcta para fazer missão, e o missionário, do ponto de vista espiritual, encaixa-se perfeitamente no contexto chinês. Mas deve haver um maior investimento das congregações, especialmente em pessoal.’


Fonte   :
* Artigo na íntegra de http ://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFZklyFkVpOmoieemW


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