*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
‘...Gostaria de meditar sobre um Salmo com fortes implicações
cristológicas, que sobressai continuamente nas narrações da Paixão de Jesus,
com a sua dúplice dimensão de humilhação e glória, de morte e vida. É o Salmo 22 segundo a tradição judaica, 21 segundo a tradição greco-latina, uma
oração intensa e comovedora, de uma densidade humana e de uma riqueza teológica
que fazem dele um dos Salmos mais recitados e estudados de todo o Saltério.
Trata-se de uma longa composição poética, e meditaremos de modo particular
sobre a sua primeira parte, centrada na lamentação, para aprofundar algumas
dimensões significativas da oração de súplica a Deus.
Este
Salmo apresenta a figura de um inocente perseguido e circundado de adversários
que desejam a sua morte; e ele recorre a Deus numa lamentação dolorosa que, na
certeza da fé, se abre misteriosamente ao louvor. Na sua oração, a realidade
angustiante do presente e a memória consoladora do passado alternam-se, numa
difícil tomada de consciência acerca da sua situação desesperada que, no
entanto, não quer renunciar à esperança. O seu clamor inicial é um apelo
dirigido a um Deus que parece distante, que não responde e parece tê-lo
abandonado :
‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
As palavras do meu clamor não são por Vós ouvidas.
Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis;
imploro durante a noite, sem conseguir sossegar’ (vv. 2-3).
Deus
cala-se, e este silêncio dilacera a alma do orante, que chama incessantemente,
mas sem encontrar uma resposta. Os dias e as noites sucedem-se, numa busca
incansável de uma palavra, de uma ajuda que não chega; Deus parece tão
distante, tão esquecido, tão ausente! A oração pede escuta e resposta, solicita
um contacto, procura uma relação que possa conferir conforto e salvação. Mas se
Deus não responde, o grito de ajuda perde-se no vazio e a solidão torna-se
insustentável. E no entanto o orante do nosso Salmo, no seu brado, chama três
vezes o Senhor ‘meu’ Deus, num
extremo gesto de confiança e de fé. Não obstante qualquer aparência, o Salmista
não pode acreditar que o vínculo com o Senhor se tenha interrompido totalmente;
e enquanto pergunta o porquê do presumível abandono incompreensível, afirma que
o ‘seu’ Deus não o pode abandonar.
Como
se sabe, o clamor inicial do Salmo, ‘Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’, é citado pelos Evangelhos de
Mateus e de Marcos como o grito lançado por Jesus agonizante na Cruz (cf. Mt
27, 46; Mc 15, 34). Ele manifesta toda a desolação do Messias, Filho de Deus,
que enfrenta o drama da morte, uma realidade totalmente oposta ao Senhor da
vida. Abandonado por quase todos os seus, atraiçoado e renegado pelos
discípulos, circundado por quantos o insultam, Jesus encontra-se sob o peso
esmagador de uma missão que deve passar pela humilhação e o aniquilamento. Por
isso, clama ao Pai, e o seu sofrimento assume as palavras dolorosas do Salmo.
Mas o seu grito não é desesperado, como o do Salmista, que na sua súplica
percorre um caminho atormentado, mas que no final acaba numa perspectiva de
louvor, na confiança da vitória divina. E dado que no uso hebraico citar o
início de um Salmo implicava uma referência ao poema inteiro, a prece
dilacerante de Jesus, embora mantenha a sua carga de sofrimento indizível,
abre-se à certeza da glória. ‘Não tinha o
Messias de sofrer estas coisas para entrar na sua glória?’, dirá o
Ressuscitado aos discípulos de Emaús (Lc 24, 26). Na sua paixão, em obediência
ao Pai, o Senhor Jesus atravessa o abandono e a morte para alcançar a vida e
para a doar a todos os fiéis.
A este
brado inicial de súplica, no nosso Salmo
22, segue-se num contraste doloroso a recordação do passado :
‘Em
Vós confiaram os nossos pais,
confiaram,
e Vós os livrastes;
a vós
clamaram e foram salvos;
confiaram
em Vós e não foram confundidos’ (vv. 5-6).
Aquele
Deus que hoje ao Salmista parece tão distante é, no entanto, o Senhor
misericordioso que Israel sempre experimentou na sua história. O povo ao qual o
orante pertence foi objecto do amor de Deus, e pode dar testemunho da sua
fidelidade. A começar pelos Patriarcas, e depois no Egito e durante a longa
peregrinação pelo deserto, na permanência na terra prometida em contacto com
populações agressivas e inimigas, até ao obscurecimento do exílio, toda a
história bíblica foi uma história de clamores de ajuda da parte do povo e de
respostas salvíficas da parte de Deus. E o Salmista faz referência à fé
inabalável dos seus Pais, que ‘confiaram’
— esta palavra é repetida três vezes — sem jamais permanecer confundidos.
Agora, no entanto, parece que esta série de invocações confiantes e de
respostas divinas se interrompeu; a situação do Salmista parece desmentir toda
a história da salvação, tornando ainda mais dolorosa a realidade presente.
Mas
Deus não pode desmentir-se, e eis então que a oração volta a descrever a
situação penosa do orante, para induzir o Senhor a ter piedade e a intervir,
como sempre tinha feito no passado. O Salmista define-se ‘um verme, não um homem, o opróbrio de todos e a abjecção da plebe’
(v. 7), é escarnecido, zombado (cf. v. 8) e ferido precisamente na fé : ‘Confiou no Senhor, que Ele o livre, que o
salve, se o ama’ (v. 9), dizem. Sob os golpes ultrajantes da ironia e do
desprezo, parece quase que o perseguido perde as suas conotações humanas, como
o Servo sofredor delineado no Livro de Isaías (cf. Is 52, 14; 53, 2b-3). E como
o justo oprimido, do Livro da Sabedoria (cf. 2, 12-20), ou como Jesus no
Calvário (cf. Mt 27, 39-43), o Salmista vê posta em dúvida a própria relação
com o seu Senhor, na evidência cruel e sarcástica daquilo que o faz sofrer : o
silêncio de Deus, a sua aparente ausência. E no entanto, Deus esteve presente
na existência do orante com uma proximidade e uma ternura inquestionáveis. O
Salmista recorda-o ao Senhor : ‘Na
verdade, Vós me tirastes do ventre materno, confiastes-me aos seios de minha
mãe. Pertenço-vos desde o ventre materno’ (vv. 10-11a). O Senhor é o Deus
da vida, que faz nascer e acolher o recém-nascido, e cuida dele com carinho
paterno. E se antes recordara a fidelidade de Deus na história do povo, agora o
orante volta a evocar a própria história pessoal de relação com o Senhor,
remontando ao momento particularmente significativo do início da sua vida. E ali,
não obstante a desolação do presente, o Salmista reconhece uma proximidade e um
amor divinos tão radicais que agora pode exclamar, numa confissão cheia de fé e
geradora de esperança : ‘Desde o seio de
minha mãe, Vós sois o meu Deus’ (v. 11b).
Agora,
a lamentação torna-se uma súplica intensa : ‘Não vos afasteis de mim, porque estou atribulado; não há quem me ajude’
(v. 12). A única proximidade que o Salmista sente e que o amedronta é a dos
seus inimigos. Portanto, é necessário que Deus se aproxime e que o socorra,
porque os inimigos circundam e rodeiam o orante, e são como touros poderosos,
como leões que abrem as fauces para rugir e despedaçar (cf. vv. 13-14). A
angústia altera a percepção do perigo, aumentando-o. Os adversários parecem
invencíveis, tornaram-se animais ferozes e extremamente perigosos, enquanto o
Salmista é como um pequeno verme, impotente, sem qualquer defesa. Mas estas
imagens utilizadas no Salmo servem também para dizer que quando o homem se
torna brutal e agride o irmão, algo de animalesco prevalece sobre ele, que
parece perder qualquer semblante humano; a violência tem sempre em si algo de
bestial, e só a intervenção salvífica de Deus pode restituir o homem à sua
humanidade. Agora, para o Salmista, objecto de uma agressão tão feroz, parece
que não existe mais salvação, e a morte começa a tomar posse dele : ‘Sou como água que se derrama, todos os meus
ossos se desconjuntam [...] A minha garganta secou-se como barro cozido; a
minha língua pegou-se ao meu paladar [...] repartem entre si as minhas vestes,
e lançam sorte sobre a minha túnica’ (vv. 15.16.19). Com imagens
dramáticas, que voltamos a encontrar nas narrações da Paixão de Cristo,
descreve-se a decomposição do corpo do condenado, o calor insuportável que
atormenta o moribundo e que encontra eco no pedido de Jesus : ‘Tenho sede’ (cf. Jo 19, 28), para chegar
ao gesto definitivo dos algozes que, como os soldados aos pés da Cruz, repartem
entre si as vestes da vítima, já considerada morta (cf. Mt 27, 35; Mc 15, 24;
Lc 23, 34; Jo 19, 23-24).
Eis
então, imperioso, novamente o pedido de socorro : ‘Mas Vós, Senhor, não vos afasteis de mim; sois o meu auxílio,
apressai-vos a ajudar-me [...] Salvai-me!’ (vv. 20.22a). Trata-se de um
grito que descerra os céus, porque proclama uma fé, uma certeza que vai mais
além de toda a dúvida, de toda a escuridão e de toda a desolação. E a
lamentação transforma-se, deixando espaço ao louvor no acolhimento da salvação
: ‘Vós respondestes-me. Então, anunciarei
o vosso Nome aos meus irmãos, e louvar-vos-ei no meio da assembleia’ (vv.
22c-23). Assim, o Salmo abre-se à ação de graças, ao grande hino final que
abrange todo o povo, os fiéis do Senhor, a assembleia litúrgica e as gerações
vindouras (cf. vv. 24-32). O Senhor acorreu em ajuda, salvou o pobre e mostrou
o seu rosto de misericórdia. Morte e vida cruzaram-se num mistério inseparável,
e a vida triunfou; o Deus da salvação manifestou-se como Senhor incontestado,
que todos os confins da terra celebrarão e diante do qual todas as famílias dos
povos se prostrarão. É a vitória da fé, que pode transformar a morte em dom da
vida, o abismo da dor em fonte de esperança.
Caríssimos
irmãos e irmãs, este Salmo levou-nos ao Gólgota, aos pés da Cruz de Jesus, para
reviver a sua paixão e compartilhar a alegria fecunda da Ressurreição. Portanto, deixemo-nos
invadir pela luz do mistério pascal, mesmo na aparente ausência de Deus, também
no silêncio de Deus e, como os discípulos de Emaús, aprendamos a discernir a
verdadeira realidade, para além das aparências, reconhecendo o caminho da
exaltação precisamente na humilhação, e a plena manifestação da vida na morte,
na cruz. Assim, depositando toda a nossa confiança e a nossa esperança em Deus
Pai, em cada angústia também nós O poderemos suplicar com fé, e o nosso grito
de ajuda transformar-se-á em cântico de louvor.’
Fonte :
*
Artigo na íntegra de
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2011/documents/hf_ben-xvi_aud_20110914_po.html
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