*Artigo de Carlos Reis, jornalista
‘Pobreza, marginalização e desagregação
familiar desestabilizam o tecido social, e o peso destas situações recai sobre
as crianças, justamente as que deveriam receber maior protecção e amparo.
Trinta milhões de crianças em África vivem na rua, de um total de 120 milhões
no mundo inteiro, revela a UNICEF, que alerta para os maus tratos a que estão
sujeitas, nomeadamente ‘a violência
sexual, física, psicológica e a negligência, que assumem proporções alarmantes’,
aponta Yves Kassoka, especialista de protecção do fundo das Nações Unidas para
a infância.
Numerosas causas
A presença das crianças na rua deve-se
a numerosas causas, como serem ‘confiadas’
a tutores, aos maus tratos e violência doméstica, conflitos armados, mudanças
climáticas, desentendimentos no seio do casal, separação dos pais, à pobreza e
a consequência das doenças sexualmente transmissíveis. Todas estas causas têm
forçado mais e mais crianças a deixar as suas casas para viver e trabalhar nas
ruas, expostas à violência e à exploração.
Por ocasião do Dia da Criança Africana,
que se celebra em Junho, a UNICEF apelou aos governos para que reforcem os
sistemas de apoio que fornecem as bases para um ambiente mais protector nas
famílias e nas comunidades para manter as crianças seguras e fortalecer as
capacidades familiares, por meio da oferta de cuidados de saúde e sociais
básicos, além da promoção da educação. ‘Estas
crianças já foram privadas da protecção dos seus lares e estão sujeitas a
riscos ainda maiores na rua’, afirma Anthony Lake, director executivo da
UNICEF.
Na África Subsariana, cerca de 50
milhões de crianças perderam um ou ambos os pais, quase 15 milhões dos quais
por causa da infecção por HIV. Alguns destes menores são forçados a crescer por
conta própria, com limitado ou nenhum apoio de tutores adultos. Muitas vezes,
em casos de novo casamento após a morte ou divórcio, os filhos do primeiro
casamento não são bem-vindos e às vezes são maltratados e insultados pelo novo
parceiro. As crianças com deficiências são frequentemente escondidas pela
família nos primeiros anos e depois abandonadas à rua.
Nunca bem-vindas
As crianças que trabalham e vivem nas
ruas das cidades africanas são apenas a face visível de violações em grande
escala dos direitos humanos dos menores. ‘Isso
é consequência de factores socioeconómicos, tais como a pobreza, explosão demográfica,
migração rural-urbana, crises políticas, bem como de problemas interpessoais,
tais como violência e rejeição em famílias desestruturadas’, observa Agnès
Ouattara, presidente do ACERWC, comité africano de especialistas sobre os
direitos e bem-estar da criança. Esses desafios reforçam a necessidade de
fortalecer o papel das famílias e comunidades na promoção e protecção da saúde
das crianças. Como consequência, os governos, com o apoio de parceiros,
precisam investir em recursos adequados nas comunidades rurais desfavorecidas
para reduzir as disparidades entre regiões e escalões de rendimentos, bem como
enfrentar a discriminação baseada no género, idade e etnia.
‘Nos
últimos anos, vários países africanos conseguiram ganhos importantes na
construção de uma estrutura de direitos da criança e do adolescente. Muitos
Estados introduziram mecanismos de protecção social, incluindo as
transferências de rendimentos, que desempenham um papel fundamental no apoio às
famílias vulneráveis e evitam que crianças saiam das suas casas para trabalhar’,
comprova o escritório regional da UNICEF para África.
O sociólogo senegalês Djiby Diakhaté
atribui o fenómeno das crianças de rua à própria ‘metamorfose da sociedade’, explicando que ‘passámos de uma sociedade tradicional no seio da qual a criança ocupava
o centro da comunidade para uma sociedade moderna e materialista onde ela é
cada vez mais marginalizada’. As consequências na vida destas crianças são
a vulnerabilidade a todas as formas de exploração e de maus tratos, perseguição,
detenção pelas autoridades, delinquência, utilização e tráfico de droga,
mendicidade, roubo e agressões armadas, entre outras. Rosalie Diop, socióloga
senegalesa autora do livro Survivre à la Pauvreté et à l’Exclusion, refere que
as crianças ‘adoptam essas atitudes para
se adaptar ao contexto de crise’. As crianças de rua aprendem a cuidar de
si mesmas e a escolher os mercados ao ar livre como a sua casa, fazendo
pequenos trabalhos, mendigando, roubando e aí dormindo escondidas entre toldos
fechados. Crescem sem aprender a ler e escrever e sentem-se rejeitadas. Quase
nunca são bem-vindas.
Monstros infernais
O aspecto mais preocupante do flagelo
das crianças de rua é que ‘a maior parte
dos governos e a sociedade civil em geral tende a ignorá-lo. Chega-se mesmo a
perseguir essas crianças como delinquentes porque sujam a imagem das cidades’,
aponta a revista Mundo Negro. ‘As imagens
desses grupos é fortemente influenciada pela imprensa, que muitas vezes
apresentam esses jovens como monstros infernais, delinquentes contra os quais
se pode agir de maneira violenta’, denuncia a publicação dos Missionários
Combonianos.
O fenómeno urbano das ‘crianças bruxas’ afecta as crianças de
rua, com as acusações violentas a virem das famílias e igrejas carismáticas ou
pentecostais. ‘A perseguição de ‘crianças
bruxas’ tem-se tornado um fenómeno lucrativo para muitos pastores-profetas
cujas acções complementam as dos curandeiros tradicionais’, denuncia a UNICEF.
Em África, crianças vagueiam pelas ruas
da maioria das cidades. Elas estão por toda parte e organizam-se em quadrilhas
para sobreviver nas ruas. ‘A maioria tem
família, e até mesmo casa para retornar à noite. Estão na rua por falta de
escolas ou qualquer coisa melhor para fazer. Alguns motivos levam-nas à rua,
como serem órfãos da aids ou fugirem de situações negativas que enfrentam em
casa. A vida de rua tem atracções como a liberdade e o compromisso para com
sócios. Mas também há violência, perigo e abuso’, observa a MIAF, missão
para o interior de África.
As crianças e adolescentes de rua são
consideradas uma ameaça e são frequentemente reunidas e detidas pela polícia
quando há eventos internacionais ou visitas de Estado nas cidades. ‘Estas crianças dormem na rua, mesmo quando
chove’, denuncia o director da missão cristã Every Child Ministries.
Durante o dia, escondem a esteira, um tapete ou cartão canelado, com que se
protegem contra o frio e chão úmido. São também objecto de ataques sexuais, por
parte de adultos que sabem que não haverá acusações contra os seus actos. As
meninas na rua são uma presa fácil para qualquer homem que lhes ofereça um
dólar ou uma boa refeição. Acabam por se voltar para a prostituição, contrair
aids e ser mães de crianças que não têm pai nem casa e que são obrigados a
caminhar pelas ruas com as suas mães. Algumas são já a terceira ou quarta
geração nas ruas. Usadas e abusadas, jamais serão respeitadas ou valorizadas.
Destinos de rua
‘Passava fome’
Mary, 17 anos, Acra (Gana)
A antiga estação de comboios de Acra,
capital do Gana, é lar de mendigos, deficientes, drogados e pequenos
vigaristas. Mary, de 17 anos, morou na estação três anos, desde que deixou a
casa dos pais em Ashanti. Deixou a família por desentendimentos com os pais
sobre quem devia assumir a custódia dela e dos quatro irmãos. Em 2009,
engravidou e passou a ser agredida pelo namorado. ‘Passava fome’, lembra. Com a ajuda da Street Child Africa, recebeu
abrigo e cuidados de saúde. Agora, com o filho na creche da organização, faz
doces para vender, enquanto aprende costura.
‘Vou ficar na rua o tempo todo’
Peter, 16 anos, Jinja (Uganda)
Órfão desde os 13 anos, Peter vive
sozinho numa tenda improvisada nas ruas de Jinja, no Uganda. Para sobreviver,
transporta pesados sacos de carvão vegetal no porto da cidade. Sozinho no
mundo, tem um trabalho físico duro e mal pago. Ainda assim, consegue ganhar o
suficiente para pagar as despesas na escola que frequenta. Agora, depois de
ficar ferido nas costas devido às cargas pesadas, está incapaz de trabalhar e
impossibilitado de pagar as mensalidades escolares. ‘Vou ficar na rua o tempo todo’, lamenta Peter, perante a falta de
opções de sobrevivência.
‘Sobrevivia na rua’
Milika, 16 anos, Kitwe (Zâmbia)
Quando Milika nasceu, a sua mãe tinha
apenas 16 anos. O pai morreu quando ela tinha seis meses de idade. A vida
tornou-se ainda mais difícil para a família e Milika ficou encarregada de
cuidar da sua avó cega, o que a obrigou a mendigar. Quando a avó morre, passa a
‘sobreviver na rua’. Só um ano
depois, conseguiu ingressar no centro residencial Cibusa House, onde começou a
estudar. Recentemente, voltou à casa de família em Kitwe e sonha em continuar
os estudos até se formar como advogada.
Pequenas e numerosas
ETIÓPIA
– Maioria das crianças de rua trabalham
duas a três horas por dia nas ruas. Oito por cento das crianças de rua
trabalham na rua apenas aos fins-de-semana.
– A idade média das crianças de rua é
de 10,7 anos.
– ONG estimam em 600 mil crianças de
rua no país (100 mil na capital, Adis-Abeba).
EGIPTO
– ONG calculam cerca de um milhão de
crianças de rua no país (a maioria no Cairo e Alexandria).
– A UNODCCP aponta como causas o abuso
em casa ou no trabalho (82 por cento) e a negligência (62 por cento).
– A maioria das crianças abandona a
escola (70 por cento) ou nunca foram à escola (30 por cento).
QUÉNIA
– Mais de 300 mil vivem e trabalham nas
ruas do país (60 mil na capital Nairobi).
NIGÉRIA
– Maioria das crianças de rua
estigmatizadas como ‘bruxas’ por
pastores e pais.
GANA
– Mais de 21 mil crianças de rua na
capital Accra (6000 bebés).
ÁFRICA DO SUL
– 12 mil crianças de rua no país (idade
média de 13/14 anos).
RUANDA
– 35 por cento das crianças de rua são
sexualmente activas.
– 93 por cento das meninas de rua são
forçadas a relações sexuais.
SUDÃO
– Abandonados 110 bebés todos os meses
na capital Cartum (metade morre dentro de horas).
CONGO
– 50 por cento das crianças de rua na
capital Brazzaville são órfãos.
ZÂMBIA
– 22 por cento das crianças de rua da
capital, Lusaca, perderam ambos os pais (26 por cento o pai e 10 por cento a
mãe)’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http
://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFlVAAyEEkkLbGNRAM
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