*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
‘1.
Vida
Pode-se
dizer que João de Antioquia, chamado Crisóstomo, isto é ‘Boca de ouro’, ainda hoje está vivo devido à sua eloquência e
também às suas obras. Um copista anónimo deixou escrito que elas ‘atravessam toda a terra como relâmpagos
buliçosos’. Os seus escritos permitem também a nós, como aos fiéis do seu
tempo, que foram repetidamente privados dele por causa dos seus exílios, de
viver com os seus livros, apesar da sua ausência. Foi quanto ele próprio
sugeriu do exílio numa sua carta (cf. A
Olimpiade, Carta 8, 45).
Nascido
por volta de 349 em Antioquia da Síria (hoje Antakaya, no sul da Turquia), ali
desempenhou o ministério presbiteral durante onze anos, até 397, quando,
nomeado Bispo de Constantinopla, exerceu na capital do Império o ministério
episcopal antes dos dois exílios, que foram um a pouco tempo do outro, entre
403 e 407...
Tendo
ficado órfão de pai em tenra idade, viveu com a mãe, Antusa, que lhe transmitiu
uma requintada sensibilidade humana e uma profunda fé cristã. Tendo frequentado
os estudos primários e superiores, coroados pelos cursos de filosofia e
retórica, teve como mestre Libânio, pagão, o mais célebre mestre de retórica da
época. Na sua escola, João tornou-se o maior orador da antiguidade grega
tardia. Baptizado em 368 e formado na vida eclesiástica pelo Bispo Melézio, foi
por ele instituído leitor em 371. Este acontecimento marcou a entrada oficial
de Crisóstomo no cursus eclesiástico.
Frequentou, de 367 a 372, o asceterio,
uma espécie de seminário de Antioquia, juntamente com um grupo de jovens,
alguns dos quais se tornaram depois Bispos, sob a guia do famoso exegeta
Diodoro de Tarso, que iniciou João na exegese histórico-literária,
característica da tradição antioquena.
Retirou-se
depois durante quatro anos entre os eremitas no vizinho monte Silpio.
Prosseguiu aquele retiro por outros dois anos, que viveu sozinho numa gruta sob
a orientação de um ‘idoso’. Naquele
período dedicou-se totalmente à meditação ‘das
leis de Cristo’, dos Evangelhos e especialmente das Cartas de Paulo. Tendo
adoecido, encontrou-se impossibilitado de se curar sozinho, e por isso teve que
regressar à comunidade cristã de Antioquia (cf. Palladio, Vita 5). O Senhor, explica o biógrafo, interveio com a enfermidade no momento justo para permitir
que João seguisse a sua verdadeira vocação. De facto, escreverá ele mesmo que,
colocado na alternativa de escolher entre as adversidades do governo da Igreja
e a tranquilidade da vida monástica, teria preferido mil vezes o serviço
pastoral (cf. Sul sacerdocio, 6, 7) : precisamente para isto Crisóstomo se
sentia chamado. E realiza-se aqui a mudança decisiva da sua história
vocacional: pastor de almas a tempo inteiro! A intimidade com a Palavra de
Deus, cultivada durante os anos da eremitério, tinha amadurecido nele a
urgência irresistível de pregar o Evangelho, de doar aos outros o que tinha
recebido nos anos da meditação. O ideal missionário lançou-o assim, alma de
fogo, no cuidado pastoral.
Entre
378 e 379 regressou à cidade. Diácono em 381 e presbítero em 386, tornou-se
célebre pregador nas igrejas da sua cidade. Pronunciou homilias contra os
arianos, seguidas pelas comemorativas dos mártires antioquenos e por outras
sobre as principais festas litúrgicas : trata-se de um grande ensinamento da fé
em Cristo, também à luz dos seus Santos. O ano de 387 foi ‘o ano heróico’ de João, o da chamada ‘revolta das estátuas’. O povo derrubou as estátuas imperiais, em
sinal de protesto contra o aumento das taxas. Naqueles dias de Quaresma e de
angústia por causa das punições infligidas por parte do imperador, ele
pronunciou as suas 22 vibrantes homilias sobre as estátuas, finalizadas à
penitência e à conversão. Seguiu-se o período da serena actividade pastoral
(387-397).
Crisóstomo
coloca-se entre os Padres mais fecundos : dele chegaram até nós 17 tratados,
mais de 700 homilias autênticas, os comentários a Mateus e a Paulo (Cartas aos
Romanos, aos Coríntios, aos Efésios e aos Hebreus), e 241 cartas. Não foi um
teólogo especulativo. Mas transmitiu a doutrina tradicional e segura da Igreja
numa época de controvérsias teológicas suscitadas sobretudo pelo arianismo,
isto é, pela negação da divindade de Cristo. Portanto, ele é uma testemunha
confiável do desenvolvimento dogmático alcançado pela Igreja nos séculos IV-V. A
sua é uma teologia requintadamente pastoral, na qual é constante a preocupação
da coerência entre o pensamento expresso pela palavra e a vivência existencial.
É este, em particular, o fio condutor das maravilhosas catequeses, com as quais
preparava os catecúmenos para receber o Baptismo.
Próximo
da morte, escreveu que o valor do homem consiste no ‘conhecimento exacto da verdadeira doutrina e na rectidão da vida’
(Carta do exílio). As duas coisas, conhecimento da verdade e rectidão na vida,
caminham juntas : o conhecimento deve traduzir-se em vida. Cada uma das suas
intervenções tinha sempre por finalidade desenvolver nos fiéis o exercício da
inteligência, da verdadeira razão, para compreender e traduzir em prática as
exigências morais e espirituais da fé.
João Crisóstomo preocupa-se por acompanhar com os seus escritos o desenvolvimento
integral da pessoa, nas dimensões física, intelectual e religiosa. As várias
fases do crescimento são comparadas a outros tantos mares de um oceano imenso :
‘O primeiro destes mares é a infância’
(Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). De facto ‘precisamente nesta primeira idade se manifestam as inclinações para o
vício e para a virtude’. Por isso a lei de Deus deve ser desde o início
impressa na alma ‘como numa tábua de cera’
(Homilia 3, 1 sobre o Evangelho de João) : de facto esta é a idade mais
importante. Devemos ter presente como é fundamental que nesta primeira fase da
vida entrem realmente no homem as grandes orientações que dão perspectiva justa
à existência. Por isso Crisóstomo recomenda : ‘Precavei as crianças desde a mais tenra idade com armas espirituais, e
ensinai-lhes a persignar a fronte com a mão’ (Homilia 12, 7 sobre a
primeira Carta aos Coríntios). Vêm depois a adolescência e a juventude : ‘à infância segue-se o mar da adolescência,
onde os ventos sopram violentos..., porque cresce em nós... a concupiscência’
(Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). Por fim, chegam o noivado e o
matrimónio : ‘À juventude segue-se a
idade da pessoa madura, na qual chegam os compromissos de família : é o tempo
de procurar esposa’ (ibid.). Do matrimónio, ele recorda as finalidades,
enriquecendo-as com a referência à virtude da temperança de uma rica trama de
relações personalizadas. Os esposos bem preparados impedem o caminho do
divórcio : tudo se desenvolve com alegria e podem-se educar os filhos para a
virtude. Depois, quando nasce o primeiro filho, ele é ‘como uma ponte; os três tornam-se uma só carne, porque o filho une as
duas partes’ (Homilia 12, 5 sobre a Carta aos Colossences), e os três
constituem ‘uma família, pequena Igreja’
(Homilia 20, 6 sobre a Carta aos Efésios).
A
pregação de Crisóstomo realizava-se habitualmente durante a liturgia, ‘lugar’ no qual a comunidade se constrói
com a Palavra e com a Eucaristia. Nela, a assembléia reunida expressa a única
Igreja (Homilia 8, 7 sobre a Carta aos Romanos), a mesma palavra dirige-se em qualquer
lugar a todos (Homilia 24, 2 sobre a primeira Carta aos Coríntios), e a
comunhão eucarística torna-se sinal eficaz de unidade (Homilia 32, 7 sobre o
Evangelho de Mateus). O seu projecto pastoral estava inserido na vida da
Igreja, na qual os fiéis leigos com o Baptismo assumem o ofício sacerdotal,
real e profético. Ele diz ao fiel leigo : ‘Também
a ti o Baptismo torna rei, sacerdote e profeta’ (Homilia 3, 5 sobre a
segunda Carta aos Coríntios). Provém daqui o dever fundamental da missão,
porque cada um de certa forma é responsável da salvação dos outros : ‘Este é o princípio da nossa vida social...
não nos interessarmos apenas de nós!’ (Homilia 9, 2 sobre o Génesis). Tudo
isto se desenvolve entre dois pólos : a grande Igreja e a ‘pequena Igreja’, a família, em relação recíproca.
Como
podeis ver, queridos irmãos e irmãs, esta lição de Crisóstomo sobre a presença
autenticamente cristã dos fiéis na família e na sociedade, permanece ainda hoje
actual como nunca. Rezemos ao Senhor para que nos torne dóceis aos ensinamentos
deste grande Mestre da fé.
2. Pensamento
...Depois do período passado em
Antioquia, em 397 ele foi nomeado Bispo de Constantinopla, a capital do Império
romano do Oriente. Desde o início, João projectou a reforma da sua Igreja: a
austeridade do palácio episcopal devia servir de exemplo para todo o clero,
viúvas, monges, palacianos e ricos.
Infelizmente,
muitos destes, atingidos pelos seus juízos, afastaram-se dele. Solícito pelos
pobres, João foi chamado também ‘Esmoler’.
De facto, como administrador atento ele conseguiu criar instituições
caritativas muito apreciadas. O seu arrojo nos vários âmbitos fez com que ele
se tornasse para alguns um rival perigoso. Ele, contudo, como verdadeiro
Pastor, tratava todos de modo cordial e paterno. Sobretudo, destinava
considerações sempre ternas às mulheres e cuidados especiais ao matrimonio e à
família. Convidava os fiéis a participar na vida litúrgica, por ele tornada
esplendorosa e atraente com genial criatividade.
Não
obstante o coração generoso, não teve uma vida tranquila. Pastor da capital do
Império, viu-se com frequência envolvido em questões e intrigas políticas,
devido aos seus contínuos relacionamentos com as autoridades e as instituições
civis. Depois, a nível eclesiástico, foi acusado de ter superado os confins da
própria jurisdição, e tornou-se assim alvo de fáceis acusações. Outro pretexto
contra ele foi a presença de alguns monges egípcios, excomungados pelo
patriarca Teófilo de Alexandria, que se refugiaram em Constantinopla. Uma acesa
polêmica foi depois originada pelas críticas feitas por Crisóstomo à imperatriz
Eudóxia e às suas palacianas, que reagiram desacreditando-o e insultando-o.
Chegou-se assim à sua deposição, no sínodo organizado pelo mesmo patriarca
Teófilo em 403, com a consequente condenação ao primeiro breve exílio. Depois
do seu regresso, a hostilidade suscitada contra ele desde o protesto contra as
festas em honra da imperatriz que o Bispo considerava como festas pagãs,
suntuosas, e a expulsão dos presbíteros encarregados dos Baptismos na Vigília
pascal de 404, marcaram o início da perseguição de Crisóstomo e dos seus
seguidores, os chamados ‘Joanitas’.
Então, João denunciou os factos ao Bispo de Roma, Inocêncio I. Mas já
era demasiado tarde. No ano de 406 teve de novo que se refugiar no exílio,
desta vez em Cucusa, na Arménia. O Papa estava convencido da sua inocência, mas
não tinha o poder de o ajudar. Um Concílio, querido por Roma para uma
pacificação entre as duas partes do Império e entre as suas Igrejas, não pôde
ser realizado. O deslocamento extenuante de Cucusa para Pytius, meta nunca
alcançada, devia impedir as visitas dos fiéis e interromper a resistência do
exilado extenuado : a condenação ao
exílio foi uma verdadeira condenação à morte! São comovedoras as numerosas
cartas do exílio, nas quais João manifesta as suas preocupações pastorais com
tonalidades de participação e de sofrimento pelas perseguições contra os seus.
A marcha rumo à morte terminou em Comano, no Ponto. Aqui, João moribundo, foi
levado para a capela do mártir São Basilisco, onde rendeu a alma a Deus e foi
sepultado, mártir ao lado do mártir (Palladio, Vita 119). Era o dia 14 de
Setembro de 407, festa da Exaltação da Santa Cruz. A reabilitação teve lugar em
438 com Teodósio II. As relíquias do santo Bispo, colocadas na igreja dos
Apóstolos em Constantinopla, foram depois trasladadas em 1204 para Roma, para a
primitiva Basílica constantiniana, e agora jazem na capela do Coro dos Cónegos
da Basílica de São Pedro. A 24 de Agosto de 2004, uma considerável parte delas
foi doada pelo Papa João Paulo II ao Patriarca Bartolomeu I de Constantinopla.
A memória litúrgica do santo celebra-se a 13 de Setembro. João XXIII
proclamou-o padroeiro do Concílio Vaticano II.
Foi
dito acerca de João Crisóstomo que, quando foi colocado no trono da Nova Roma,
isto é, Constantinopla, Deus mostrou nele um segundo Paulo, um doutor do
Universo. Na realidade, em Crisóstomo há uma unidade substancial de pensamento
e de acção tanto em Antioquia como em Constantinopla. Mudam só o papel e as
situações. Meditando sobre as oito obras realizadas por Deus no suceder-se dos
seis dias no comentário do Génesis, Crisóstomo deseja reconduzir os fiéis da
criação ao criador : ‘É um grande bem’, diz, ‘conhecer o que é a criatura e o que é o
Criador’.
Mostra-nos
a beleza da criação e a transparência de Deus na sua criação, a qual se torna
assim quase que uma ‘escada’ para
subir a Deus, para o conhecer. Mas a este primeiro passo acrescenta-se um
segundo : este Deus criador é também o Deus da condescendência (synkatabasis).
Nós somos débeis na ‘subida’, os
nossos olhos são débeis. E assim Deus torna-se o Deus da condescendência, que
envia ao homem pecador e estrangeiro uma carta, a Sagrada Escritura, de modo
que criação e Sagrada Escritura completam-se. À luz da Escritura, da carta que
Deus nos deu, podemos decifrar a criação. Deus é chamado ‘pai terno’ (philostorgios) (ibid.), médico das almas (Homilia 40, 3
sobre o Génesis), mãe (ibid.) e amigo afectuoso (Sobre a providência 8, 11-12).
Mas a este segundo passo primeiro a criação como ‘escada’ para Deus e depois a condescendência de Deus através duma
carta que nos deu, a Sagrada Escritura acrescenta-se um terceiro passo. Deus
não só nos transmite uma carta : em
definitiva, desce Ele mesmo, encarna-se, torna-se realmente ‘Deus connosco’, nosso irmão até à morte
na Cruz. E a estes três passos Deus é visível na criação, Deus dá-nos uma sua
carta, Deus desce e torna-se um de nós acrescenta-se no final um quarto passo.
No arco da vida e da acção do cristão, o princípio vital e dinâmico é o
Espírito Santo (Pneuma), que transforma as realidades do mundo. Deus entra na
nossa existência através do Espírito Santo e transforma-nos do interior do nosso
coração.
Nesta
panorâmica, precisamente em Constantinopla João, no comentário continuativo dos
Actos dos Apóstolos, propõe o modelo da Igreja primitiva (Act 4, 32-37) como
modelo para a sociedade, desenvolvendo uma ‘utopia’
social (quase uma ‘cidade ideal’). De
facto, tratava-se de dar uma alma e um rosto cristão à cidade. Por outras
palavras, Crisóstomo compreendeu que não é suficiente dar esmola, ajudar os
pobres sempre que precisem, mas é necessário criar uma nova estrutura, um novo
modelo de sociedade; um modelo baseado na perspectiva do Novo Testamento. É a
nova sociedade que se revela na Igreja nascente. Portanto João Crisóstomo
torna-se assim realmente um dos grandes Padres da Doutrina Social da Igreja : a velha ideia da ‘polis’ grega é substituída por uma nova ideia de cidade inspirada
na fé cristã. Crisóstomo defendia com Paulo (cf. 1 Cor 8, 11) a primazia de
cada cristão, da pessoa como tal, também do escravo e do pobre. O seu projecto
corrige assim a tradicional visão grega da ‘polis’,
da cidade, na qual amplas camadas de população eram excluídas dos direitos de
cidadania, enquanto na cidade cristã todos são irmãos e irmãs com iguais
direitos. A primazia da pessoa é também a consequência do facto que, realmente
partindo dela, se constrói a cidade, enquanto que na ‘polis’ grega a pátria era superior ao indivíduo, o qual estava
totalmente subordinado à cidade no seu conjunto. Assim, com Crisóstomo tem
início a visão de uma sociedade construída pela consciência cristã. E ele
diz-nos que a nossa ‘polis’ é outra, ‘a nossa pátria está no céu’ (Fl 3, 20) e
esta nossa pátria também nesta terra nos torna iguais, irmãos e irmãs, e
obriga-nos à solidariedade.
No
final da sua vida, do exílio nos confins da Arménia, ‘o lugar mais remoto do mundo’, João, voltando à sua primeira
pregação de 386, retomou o tema que lhe era tão querido do plano que Deus
prossegue em relação à humanidade : é um
plano ‘indizível e incompreensível’,
mas certamente guiado por Ele com amor (cf. Sobre a providência 2, 6). É esta a
nossa certeza.
Mesmo
se não podemos decifrar os pormenores da história pessoal e colectiva, sabemos
que o plano de Deus se inspira sempre no seu amor. Assim, apesar dos
sofrimentos, Crisóstomo reafirmava a descoberta de que Deus ama cada um de nós
com um amor infinito, e por isso deseja que todos se salvem. Por seu lado, o
santo Bispo cooperou nesta salvação generosamente, sem se poupar, ao longo de
toda a sua vida. De facto, ele considerava o fim último da sua existência a
glória de Deus, que já agonizante deixou como extremo testamento : ‘Glória
a Deus por tudo!’ (Palladio, Vita 11).’
(19 de setembro de 2007)
(26 de setembro de 2007)
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da
Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.
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