sábado, 30 de julho de 2022

Vocação: encontrar e encontrar-se

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC

(Laïcs missionnaires Comboniens)

 

‘Por estes dias, tenho-me debruçado sobre as palavras do Papa Francisco quando este, na encíclica Fratelli Tutti, fala do modo único de o ser humano se realizar. Nas palavras do papa, «o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ‘a não ser no sincero dom de si mesmo’ aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros : ‘Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro’. Isso explica porque ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que ‘a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte’» (Fratelli Tutti, n.o 87).

A partir da reflexão do papa, parece-me evidente que se está perante dois pontos fundamentais. O primeiro diz respeito à realização pessoal, ao modo como podemos encontrar a verdade que nos habita e experienciar a vivência de uma vida autêntica e verdadeiramente feliz. O segundo ponto essencial que aqui se destaca é a importância da pessoa do outro em todo este processo. Fechar-se em si mesmo nunca é algo que gera vida. Ao contrário, é algo que rompe qualquer possibilidade de viver autenticamente a partir daquilo que cada um é no mais íntimo do seu ser. Consequentemente, o «ser com os outros» e assumir uma responsabilidade para com o sofrimento dos outros é o motor de toda a possibilidade de, não apenas viver de acordo com aquilo que se é, mas também (e sobretudo) viver em constante realização daquilo que se deseja ser.

Neste excerto da encíclica, parece claro que ‘encontrar’ e ‘encontrar-se’ são duas faces de uma mesma moeda, sendo impossível separar uma da outra, ou de ter uma sem a outra. Na vocação, usando esta metáfora da moeda, temos também as duas faces, sendo no assumir de ambas que a vocação é discernida e vivida. Além disso, na vocação encontramos ainda, de modo único e inequívoco, a presença do metal precioso onde as duas faces da moeda se inscrevem. Esse metal é cada pessoa, mas a preciosidade que ele apresenta é dom de Deus. Importa ainda não esquecer que uma moeda dentro do mealheiro de nada serve. Do mesmo modo, a vocação fechada no ‘adiamento’ ou nos ‘caprichos do eu’ jamais servirá para o que quer que seja (não permitirá encontrar nem encontrar-se e, consequentemente, não trará felicidade nem para a própria pessoa nem para os outros).

Encontrar, procurando e encontrando-se

Encontrar algo significa sempre que algo estava perdido ou, quando muito, estava fora da nossa vista/alcance, mas que apenas tomamos plena consciência da sua existência no momento em que o encontramos. A procura e o encontro parecem ser inseparáveis, mesmo quando não temos consciência da existência de algo que, sem termos bem consciência, nos fazia falta. Não é por acaso que, muitas vezes, nos acontece, perante certas coisas/realidades, exclamarmos : «Eh! Era mesmo isto que eu precisava!» De repente, faz-se luz e algo vem ao encontro dos nossos anseios mais profundos (e mesmo inconscientes). De certa maneira, alguém viu o que nós não conseguíamos ver; alguém procurou por nós e deu-nos a possibilidade de encontrar! No caso da vocação, é precisamente este o processo de discernimento : nós procuramos e vamos ao encontro, não de certezas absolutas e definitivas, não de soluções de vida fáceis; mas daqueles que nos ajudarão a procurar dentro de nós mesmos e a encontrar mesmo aquilo que nem imaginávamos. 

Há quem diga que quem procura encontra (o próprio Evangelho faz referência a isso, por exemplo, em Mt 7,7). Esta é uma verdade essencial para não andar à deriva. De fato, permanecer sentado no sofá à espera de que a «vocação chegue e comece a acontecer», está longe de ser uma possibilidade. Viver a vocação desde o primeiro momento (desde o início do discernimento sério e responsável) é sempre sinônimo de desinstalar-se, de ir à procura, de pôr-se a caminho. Se pensarmos bem, esta é a verdade humana desde o início da sua existência. Ficar parado não é opção. A inércia e a apatia não são para os seres vivos, mas para as coisas. Andar ao sabor do vento (de acordo com o que os outros dizem, mais do que pôr-se em marcha para ouvir e dialogar com quem nos pode, de facto, compreender e auxiliar no caminho) é reduzir a vida ao estado vegetativo ou ao estado animal. O ser humano – porque criado à imagem e semelhança de Deus – é chamado a uma felicidade que vai além do fato de existir. Se para os seres vivos, de modo geral, a vocação para sobreviver é a tônica da existência, para o ser humano, a vocação que o define como tal implica mais do que sobreviver – exige viver!

A vida, para ser vivida, requer constantemente uma acão pró-ativa. Lá diz o velho ditado que nada se consegue sem esforço! Pois é, sem ir à procura e sem ir além de «si mesmo», a visão da vida, do mundo e daquilo que nos realiza plenamente torna-se turva a ponto de nos tornar cegos relativamente ao que somos, ao que sonhamos ser e ao mundo do qual fazemos parte.

Viver a vocação : encontros sem encontrões!

As nossas opções e decisões de vida nem sempre agradam a gregos e troianos. Todos parecem ter opiniões sobre o que deveríamos fazer e/ou ser, mas... é a nós que cabe procurar para encontrar e para nos encontrarmos a nós mesmos durante todo esse caminho (nunca terminado!). Estas tensões, que muitas vezes parecem obstaculizar a realização vocacional, são parte integrante do processo de discernimento. Procurar quem nos acompanhe neste processo é fundamental (mas exige sair de casa e de si mesmo). No entanto, a procura não pode circunscrever-se ou terminar com o encontro com aqueles que nos ajudarão a discernir. Ao contrário, tudo é um caminho de encontro, de escuta e de diálogo. Isto significa, como vimos que defende o Papa Francisco, experimentar o valor de viver através de rostos concretos. Estes encontros com os outros, por muito que estes outros tenham uma visão diferente da nossa e pretendam impor a sua vontade para a nossa vida, não podem tornar-se encontrões, momentos de disputa acesa e violenta. Ao contrário, faz parte do caminho e realização vocacional trabalhar para que estes momentos sejam verdadeiros encontros de amor. E, quando assim, sabemos que dialogar com quem amamos, mesmo quando há discordância, nunca é uma luta para ver quem tem razão, mas um caminho para que as partes se ouçam, se compreendam e sejam capazes de manter vivo o amor, mesmo que não se chegue a um entendimento racional de todas as posições. Isto parece uma missão difícil, ou até mesmo impossível, em alguns casos... mais uma razão para que o discernimento vocacional se faça a partir de encontros e atendendo ao caminho que se for trilhando com aqueles que têm por missão ajudar-nos a discernir.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/776/vocacao-encontrar-e-encontrar-se/

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Palavras boas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘O apóstolo Paulo, grande educador e catequista nas primeiras comunidades cristãs, partilha heranças perenes, atualizados ensinamentos para mente e coração dos cristãos, dos homens e mulheres de boa vontade. Paulo disse, na bela e atual carta aos Efésios : ‘De vossa boca não saia nenhuma palavra maliciosa, mas somente palavras boas, capazes de edificar e fazer bem a quem ouve’. Essa recomendação preciosa é remédio que cura o exercício da cidadania em tempos de notícias falsas, emolduradas pelas facilidades e velocidades na circulação de opiniões, juízos e outros enunciados nas redes sociais. As lições de Paulo reforçam que o direito à liberdade de se expressar não desobriga os cristãos de cuidar daquilo que será dito, em qualquer circunstância.

Reconheça-se a responsabilidade sobre o que se expressa, os possíveis impactos provocados por tudo aquilo que se diz. Todos, particularmente os cristãos, são instados a refletir e a discernir bem - antes de emitir juízos, pronunciar palavras, considerando a força determinante da linguagem. A palavra expressa, dentro da liberdade cidadã, tem consequências que não podem ser relativizadas. É capaz de edificar e de destruir, causar confusões e animosidades. O direito de expressão é sagrado, mas as palavras não devem estar contaminadas por sentimentos alinhados às estreitezas humanas, nem por visões parciais, manipuladas. A sociedade é edificada - com avanços na promoção do desenvolvimento integral, na superação de equívocos nos campos da política e da economia, na promoção da igualdade social - com a força de palavras que geram clarividências, indicando soluções na priorização do bem comum.

As palavras tecem o tergiversar que é próprio da política, compõem discursos político-partidários. São essenciais na construção de entendimentos para discernir a respeito de escolhas. As palavras possibilitam a vivência civilizada, o relacionamento entre pessoas e grupos. A instrução do apóstolo Paulo precisa, pois, ser ‘regra de ouro’, especialmente quando se considera este ano eleitoral. Essa ‘regra de ouro’ aplicada e vivenciada poderá reorientar a vida cidadã, contribuindo para a superação de amargos atrasos sociais. Sem o adequado uso das palavras, os atrasos se agravarão, não serão alcançadas soluções para os problemas contemporâneos. A postura adequada, diz o apóstolo, é abandonar a mentira e sempre dizer a verdade. E dizer a verdade não significa se achar no direito de espalhar desaforos, de buscar vitórias ou a própria defesa a partir de discursos que alimentam o ódio, os preconceitos. Trata-se de uma irracionalidade a estratégia de se gerenciar a própria imagem, tentando conquistar credibilidade, a partir da disseminação de inverdades, de difamações sobre os outros.

Especificamente quando se considera a tergiversação própria da política, todos os cidadãos, especialmente os cristãos - por um compromisso de fé -, devem sempre buscar a promoção do bem, combatendo narrativas, e até mesmo providências legislativas, que buscam simplesmente manipular opiniões, por meio de dinâmicas destrutivas. A permanência de mentalidades e procedimentos dentro dessas dinâmicas das manipulações leva a atrasos civilizatórios, ao crescimento da violência, impondo prejuízos a todos, especialmente aos pobres. A sociedade precisa reconhecer que são favoráveis as condições para a abertura de novos ciclos, mas é imprescindível que sejam vencidos apegos pelo poder, por situações que beneficiam apenas oligarquias e, especialmente, sejam assumidas as responsabilidades pelas palavras expressas, para qualificar o relacionamento humano.

Neste horizonte, os cristãos têm obrigação, por princípios e valores ético-morais, de contribuírem determinantemente para que a liberdade de expressão seja exercida sempre de modo adequado. Retoma o apóstolo Paulo, aconselhando : ‘Não se ponha o sol sobre vossa ira, e não deis lugar ao diabo’. O Apóstolo contribui para ser vivida a experiência espiritual e humana de não fazer da própria boca ‘uma caverna’ de palavras maliciosas, mas fonte de palavras que edificam, enraizadas na experiência de uma vida em Deus, pela paixão, morte e ressurreição de Cristo Jesus. Cada um priorize edificar, por gestos e palavras, a própria estatura segundo a estatura de Cristo. Um percurso que pode começar exitosamente ao obedecer a recomendação : ‘De vossa boca não saia nenhuma palavra maliciosa, mas somente palavras boas, capazes de edificar e fazer bem a quem ouve.’’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigo/10067/2022/07/palavras-boas/

terça-feira, 26 de julho de 2022

A amizade como apoio espiritual

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Francisco Thallys Rodrigues


‘‘Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar!’ assim se expressava, em 1974, o cantor Roberto Carlos em uma de suas canções, ouvida até os nossos dias. A música expressava os desejos, sonhos e anseios de toda uma geração. Entretanto, para além do objetivo da própria música, pode-se pensar que esta frase expressa uma realidade cada vez mais presente em nosso meio a partir do uso das redes sociais, pois elas estabelecem conexões rápidas e frequentes que se multiplicam em demasia. É possível ter milhões de seguidores ou até alguns milhares de contatos a depender de qual rede social se utiliza. As questões que emergem desta situação são : qual o impacto deste tipo de relação na tessitura de uma verdadeira amizade? Diante dos problemas e desafios da vida, quem te apoiará? Oferecerá um ombro amigo? Existe mesmo a possibilidade de uma amizade como apoio espiritual?

A palavra amizade tem sido utilizada cada vez com mais frequência para indicar um nível de relações e contatos mais amplos e superficiais. Constata-se o crescimento de relações de amizade mais fragilizadas, efêmeras, marcas pela volatilidade e ausência de profundidade. Isso confirma o diagnóstico de Baumann de que vivemos numa sociedade líquida no qual as relações apresentam-se como frágeis, sem maiores comprometimentos ao longo do tempo. Entre as consequências desta situação, percebe-se a crise na qual estão mergulhados um número sempre maior de pessoas, seja na depressão, na ansiedade ou mesmo na incapacidade de engajamento em causas sociais, religiosas e humanitárias. As amizades esvaziam-se de sentido e perdem importância dentro desta sociedade marcada pelo paradigma da técnica, do sucesso e do domínio do capital. As amizades interessam na medida em que possibilitam ‘ganhos’ para alcançar os objetivos profissionais almejados.

Contudo, quando se olha de modo mais atento para o sentido mais profundo da amizade, nota-se que ela exige profundidade, comprometimento e compaixão. A amizade verdadeira expressa-se na capacidade de amor e cuidado que devem marcar a vida humana. Ela não pode florescer onde não há verdadeira liberdade, pois exige gratuidade na entrega e no amor que a marcam. Supõe partilha da vida em todos os momentos, sejam aqueles que nos alegram com uma conquista, uma vitória, bem como os momentos de dificuldades e de derrotas, tornando-se um ponto de apoio no enfrentamento as tempestades que são próprias da vida. Já diz a sabedoria de Israel ‘Um amigo fiel é uma poderosa proteção : quem o achou, descobriu um tesouro’ (Ecl 6,14).

O desafio de nosso tempo está em estabelecer amizades que perdurem, sejam constantes, mesmo em meio aos desafios e aos problemas que atravessamos. Quando olhamos para as Escrituras, encontramos diferentes homens e mulheres que viveram amizades profundas tornando-se suportes mútuos nas aflições e necessidades. Recordamos aqui a amizade entre Rute e sua sogra Noemi, no qual Rute não a abandona mesmo numa situação desfavorável de ausência de proteção (Rt 1,16). Lembramos da alegria de partilhar o dom da vida e das esperanças para o povo de Israel que marcaram a vida das primas Maria e Isabel (Lc 1,39-47) ou mesmo a presença de Jesus junto as suas amigas as irmãs Marta e Maria quando perdem seu irmão Lázaro (Jo 11,1-46). Não podemos esquecer dos inúmeros amigos e amigas que Paulo cativou durante o seu ministério como missionário itinerante. As cartas revelam o cuidado, apoio e partilha de vida, de e de sofrimento que marcaram estas relações.

Quando se partilha a vida e a fé nenhum caminho se torna longo ou pesado demais pois se aprende a superar os desafios e percalços da vida. Trazemos presente o testemunho de santos e santas que partilharam a vida e a fé numa amizade que nos legou grandes frutos para espiritualidade e vida cristãs como é o caso de São Francisco de Assis e Santa Clara ou mesmo de Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz. A verdadeira amizade pode tornar-se fonte de conversão para a vivência do Evangelho, Marie de Bondy teve papel fundamental na aproximação de São Charles de Foucauld à Igreja. Há casos em que o apoio mútuo alcança a radicalidade do sangue derramado tal como ocorreu com São Oscar Romero e Ignacio Ellacuría, martirizados em El Salvador.

Em tempos de fragilidades nas relações, existe a possibilidade de cultivarmos amizades que perdurem no tempo e no espaço. Amizades que nos tornem mais solidários, fraternos e justos, capazes de tornar o mundo mais humano por meio do evangelho. A amizade permite sonhar juntos, apoiar-se mutuamente, acreditar e viver a boa nova de Jesus. O testemunho alegre e corajoso de um amigo pode não somente ser um passo importante para o despertar da fé, mas um grande suporte nos momentos de dificuldade e aflição’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1584658/2022/07/a-amizade-como-apoio-espiritual/

domingo, 24 de julho de 2022

Alicerçar a vida

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


‘O dom sagrado de viver é também tarefa, regida por lógicas que definem o cotidiano de cada pessoa, a vida comunitária, institucional, familiar e religiosa. As lógicas indispensáveis para alicerçar a vida incluem aquelas que se relacionam aos processos de conscientização social e política. Quando são considerados os ataques à democracia percebe-se que há carência de compreensão sobre o exercício da cidadania. E os estreitamentos de mentalidades precisam de oportunos tratamentos, por processos de formação capazes de construir novos entendimentos, distantes das polarizações que fanatizam, desdobrando-se em violência, criando um clima de insegurança e de medo. Sem lúcidos e qualificados processos de conscientização sociopolítica corre-se o risco de não ser priorizado o bem comum. Dentre as consequências está a falta de atenção a relevantes campos, a exemplo da salvaguarda do meio ambiente, com novas lógicas no tratamento da casa comum, e a superação dos vergonhosos cenários de desigualdade social.

Sem adequados processos de conscientização sociopolítica, corre-se sempre o risco de considerar o dinheiro mais importante em relação aos princípios, às perspectivas humanistas ou às soluções vigorosas para a superação da miséria e da exclusão social. O sentido de cidadania precisa contar com investimentos permanentes e consistentes em processos de conscientização social e política. Na contramão desses investimentos, o que se vê é uma estreita compreensão a respeito da cultura, por não se reconhecer que valores e princípios definem projetos e a própria sociedade. Consequentemente são acentuados, dolorosamente, os preconceitos e as crescentes discriminações que impõem pesos e perdas, até irreparáveis, impossibilitando a contribuição indispensável de cada cidadão nos processos de desenvolvimento integral, que permitem o crescimento de todos.

Há de se prestar atenção ao recrudescimento assombroso de discriminações e preconceitos, revelando a carência de processos educativos que favoreçam o reconhecimento do nobre sentido da convivência humana e da construção da sociedade, sobre os alicerces da fraternidade universal e da igualdade entre as pessoas. Providências urgentes devem ser adotadas para que sejam respeitados os padrões e as dinâmicas que garantam a civilidade. Ante essas necessidades, atenção redobrada deve ser dedicada ao atual contexto eleitoral. A responsabilidade cidadã exige qualificação de discursos eleitorais, especialmente quando são consideradas as facilidades tecnológicas no campo da comunicação. A apropriação de redes sociais como instrumento de desinformação, disseminando notícias falsas para manipular a opinião pública em favor de um determinado projeto político, representa sério risco para a sociedade.

Percebe-se, quando são considerados os muitos problemas no exercício da cidadania, a acentuada carência social de uma formação humana que sustente adequada consciência sociopolítica. Uma realidade preocupante, que pode ser revertida com a vivência da espiritualidade – isto é, a adoção de uma via mística. Uma via longe, muito longe, dos interesses político-eleitorais de certos segmentos e grupos religiosos que simplesmente almejam conquistar adesões a projetos de poder. Investir na espiritualidade é remédio para curar desequilíbrios, alimento para qualificar o sentido da vida e cultivar no coração humano sentimentos que promovam um discurso sapiencial - aquele que promove a verdade e a defesa do bem. A espiritualidade possibilita uma sabedoria capaz de reconhecer a beleza e o sentido de cada pessoa, inclusive aquela com quem se diverge - todos irmãos e irmãs.

A espiritualidade - experiência de crer no transcendente e, de modo coerente com a fé, buscar constantemente o amadurecimento - possibilita superar descompassos, acertar rumos. Assim, oportuno é acolher o que ensina a preciosa narrativa dos chamados ‘Padres do Deserto’ : ‘Um irmão perguntou a um ancião : como poderei encontrar Deus? Será pelos jejuns, trabalhos, vigílias ou obras de misericórdia? O ancião respondeu : em tudo o que dizes... especialmente pela humildade’. É hora de mais humildade, para alicerçar a vida no horizonte da espiritualidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigo/10058/2022/07/alicercar-a-vida/

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Francisco e a formalização do papado emérito

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Bento XVI não foi o primeiro papa da história da Igreja Católica a renunciar, mas abriu um precedente: foi o único a atribuir para si o título de papa emérito. Tanto que, até hoje, muitos canonistas pedem, à medida que a idade do Papa Francisco avança, que a questão seja revista o quanto antes.

O próprio pontífice argentino admitiu, em entrevista à rede de televisão mexicana Televisa Univision, publicada recentemente, que ‘convém delimitar melhor as coisas e explicá-las melhor’, ao se referir à instituição do papado emérito. E ao ser questionado sobre uma eventual renúncia, ressaltou que, caso ela ocorresse, preferiria ser chamado de ‘bispo emérito de Roma’, cogitando, inclusive, transferir-se para a basílica de São João de Latrão, que é a catedral da cidade.

A questão parece simples, mas poderia causar um imbróglio institucional enorme na ausência de uma regulamentação. A presença de dois papas eméritos e um reinante seria, certamente, um cenário difícil de gerir. Basta olharmos para a realidade : os sedevacantistas, que instrumentalizam o pensamento de Bento XVI, chegam a afirmar que seria legítimo Ratzinger ‘reivindicar a retomada do trono’.

Estamos diante de dois modelos eclesiológicos. É fato.

Não tem como dissociar o papa emérito da teologia que reforçou o status quo da igreja de Roma a partir da década de 1970, bem como deixar de considerar que Francisco é o arauto da sinodalidade auspiciada pelo Vaticano II. Se acrescentássemos um terceiro elemento a essa conta, essa tripolarização certamente não seria nada saudável.

Se, hipoteticamente Francisco renunciasse, haveria, sem dúvida, a tentativa de colocar no páreo um papa reformador versus alguém que, talvez, priorizará outras questões em seu pontificado. Cabe ao papa decidir.

Muito embora o sumo pontífice seja um bispo, com a mesma dignidade dos demais membros do colégio episcopal, é um primus inter pares, dotado de um título que o converte em autoridade máxima da Igreja Católica.

Caso a formalização ocorra, o próximo papa que for recorrer ao artigo 332 do Código de Direito Canônico (inciso 2), que prevê o direito à renúncia do ofício de Romano Pontífice, saberá exatamente qual será o seu status pós-demissão. Bispo emérito de Roma? Papa emérito? Um novo título? É justamente isso que, por enquanto, não está especificado em lei.

O sumo pontífice ainda é um monarca que está à frente de um Estado absolutista e teocrático, ainda que a atual configuração do Estado do Vaticano, de 1929, difira do antigo Estado Pontifício, que caiu em 1870.

É por isso que, ao longo dos séculos, a ideia de que o governo papal cessa somente quando o seu soberano morre se consolidou, mantendo-se no imaginário coletivo o conceito do papa-rei. E no regime monárquico, como sabemos, o rei só deixa de ser rei quando morre ou abdica do trono.

Sem contar que, em era moderna, os papados longos de Leão XIII e Pio IX (que governou por 31 anos e ainda promulgou o dogma da infalibilidade), somado à atitude heroica de João Paulo II de continuar exercendo a função mesmo enfermo contribuíram para legitimar, de uma vez por todas, a tendência de associar o papado à invencibilidade.

Porém, apesar de alguns fiéis se sentirem desconfortáveis com a ‘aposentadoria’ de um papa, a Igreja Católica reflete sobre as causas legítimas da renúncia pontifícia desde o século XII.

Giovanni Bassiano, um renomado jurista de Bologna, que viveu naquele período, elencou duas justificativas para a demissão : caso o pontífice resolvesse se dedicar à vida contemplativa ou em caso de doença grave. Bento XVI, portanto, se valeu desses dois requisitos indispensáveis, como bom conhecedor da tradição canônica da instituição.

Gregorio IX, no século XIII, não só concordou com Baziano como chancelou isso em decreto (Liber Extra), acrescentando que o pontífice também poderia renunciar caso incorresse em escândalo, fosse diagnosticado com problemas mentais ou se sentisse incapaz intelectualmente de exercer o cargo.

Papa Celestino V, que renunciou em 1294 após 5 meses de papado, estava a par desse debate, uma vez que antes de formalizar a decisão se consultou com um dos maiores canonistas da época : Benedetto Caetani, que mais à frente o sucederia, assumindo o nome de Bonifácio VIII. Celestino V, além de alegar que era inapto para a função, também manifestou o desejo de voltar à vida monástica.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1584742/2022/07/francisco-e-a-formalizacao-do-papado-emerito/

Um dos paradoxos para a fé cristã

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘É muito comum no meio cristão as ideias de que se faz necessário ‘defender a verdade’ como se ela fosse certo tipo de discurso pronto e que somente as pessoas cristãs estariam de posse dela.

Ao mesmo tempo, constantemente, tem-se o medo de que determinadas ‘forças do mal’ estejam lutando contra essa única verdade (que, para tais pessoas, é justamente a do discurso cristão), sendo necessário, portanto, defender ‘com unhas e dentes’ a fé cristã, mesmo que para isso tenha que se ter atitudes não cristãs.

Com isso em mente, é possível perceber que a pretensão da verdade absoluta e o medo são temas que assombram o cristianismo durante muito tempo e, infelizmente, eles têm voltado com força em nossa sociedade brasileira com o discurso dos ‘cidadãos de bem’, contrários, obrigatoriamente aos ‘cidadãos do mal’.

Os cidadãos de bem, curiosamente, dizem-se como porta-vozes da verdadeira religião, da que possui uma verdade maior do que as outras e, por este motivo, legitimada a perseguir e destruir as religiões que não compartilham dos mesmos referenciais teóricos que ela, por medo de que tais religiões ou formas de pensamento possam, de alguma maneira, acabar com os valores cristãos da sociedade brasileira.

De alguma forma, podemos dizer que a pretensão da verdade absoluta gera o medo com relação a tudo aquilo que pode, assim, ameaçar a esta pretensa verdade absoluta, o que por si só já revela o próprio paradoxo de uma religião que é baseada nessa pretensão e no próprio medo. A verdade que deveria afastar o medo é a que o cria e luta contra esse mesmo medo que ela levantou.

Que isto esteja longe de um cristianismo que segue o exemplo de Jesus Cristo deveria parecer claro para todo leitor e toda leitora do texto bíblico. Ao mesmo tempo, deveria ser claro que a proposta cristã nunca foi a da violência, mas, muito pelo contrário, o da tolerância e da compreensão para com os pensamentos que são divergentes.

O caso dos dois discípulos que quiseram fazer parar alguém que expulsava demônios em nome de Cristo e não andava com eles deixa muito clara qual a postura de Jesus, ou seja, a de deixar ir, ‘porque não há ninguém que faça o bem em meu nome e depois possa falar mal de mim’. O Cristianismo é chamado à tolerância justamente porque Deus é tolerante para conosco.

Diante disso, porém, pode surgir uma pergunta : devemos, todavia, tolerar tudo, até mesmo o intolerante? A resposta a essas duas perguntas, claramente é não. Uma das boas explicações para isso foi desenvolvida por Karl Popper, sendo conhecido como o paradoxo do tolerante.

Em seu argumento, Popper afirma que não devemos tolerar os intolerantes, porque tolerá-los implica dar a eles a oportunidade de assumir o poder e, uma vez assumindo o poder, esses intolerantes destruirão todos os tolerantes, acabando assim, com a própria tolerância. Desta forma, não se deve tolerar os intolerantes de maneira alguma.

Nas palavras de Popper :

‘Menos conhecido é o paradoxo da tolerância : tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos tolerância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e a tolerância junto destes’.

Pensar a tolerância, o medo e a pretensão de verdade absoluta é tarefa urgente para o cristianismo contemporâneo que inúmeras vezes continua a viver em um infinito looping de geração de medo devido à pretensão de verdade absoluta e a luta contra este medo com as armas da intolerância.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1584531/2022/07/um-dos-paradoxos-para-a-fe-crista/

quarta-feira, 20 de julho de 2022

As mulheres estão agora ajudando a selecionar bispos católicos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


O Papa Francisco se encontra com uma delegação da União Mundial de Organizações de Mulheres Católicas na biblioteca do Palácio Apostólico em 11 de junho no Vaticano

*Artigo de Michael Sean Winters,

jornalista

Tradução : Ramón Lara


‘Reformar a Igreja tem sido comparado a virar um grande navio: você não pode apressar a tarefa ou corre o risco de virar o navio. Na semana passada (13 de julho), no entanto, o Papa Francisco apressou bastante suas reformas. A nomeação de três mulheres para servir no Dicastério para os Bispos é uma enorme mudança na vida da Cúria Romana e na vida da Igreja universal.

O Dicastério, conhecido como Congregação para os Bispos até as reformas que Francisco implementou no Pentecostes, é o órgão que recebe as ternas (listas de três candidatos) dos núncios apostólicos espalhados pelo mundo para todos os bispados abertos que não estão localizados em território de missão. O Dicastério para a Evangelização cuida das ternas para as dioceses de missão e o Dicastério para as Igrejas Orientais cuida das nomeações católicas de rito oriental. Os dicastérios revisam as nomeações e, em seguida, podem aprovar a terna e enviá-la ao Papa, modificar a terna, por exemplo, alterando a ordem dos nomes, ou rejeitar a terna e pedir ao núncio para recomeçar.

A maioria dos papas, especialmente depois de algum tempo no cargo, terá algumas ideias sobre quem podem querer nomear para uma grande diocese. Mas a maioria das nomeações são para dioceses menores e menos proeminentes, e nenhum papa teria controle sobre o grande número de padres que podem ser candidatos. A maioria das ternas que chegam do Dicastério para os Bispos são aprovadas. Isso significa que os membros dessa congregação exercem uma enorme influência sobre a seleção da próxima geração de líderes da Igreja.

As mulheres já estiveram envolvidas na seleção de bispos antes, mas apenas quando o processo estava em grande parte nas mãos de governantes seculares. Durante grande parte da história da igreja moderna, um soberano católico tinha o direito de nomear candidatos para bispados abertos. Além de poderosas soberanas como a imperatriz Maria Teresa da Áustria, não era desconhecido que a amante de um rei poderia exercer influência sobre o processo. Madame de Maintenon, a amante jansenista de Luís XIV, ajudou a colocar Louis-Antoine de Noailles na Catedral de Notre Dame de Paris em 1695.

No final do século 19 e início do século 20, no entanto (e ironicamente muitas vezes por causa da separação entre Igreja e Estado, que a Igreja Católica lutou), o papa ganhou controle sobre o processo de nomeação de bispos na maioria dos países. A tarefa de nomear os candidatos foi confiada aos diplomatas do Vaticano e à Congregação Consistorial, como era então conhecida, e tornou-se a Congregação para os Bispos nas reformas posteriores ao Vaticano II. Os papas nunca tiveram tanto poder sobre a Igreja universal como nos últimos dois séculos.

Agora as mulheres farão parte do processo novamente. Duas religiosas (uma Irmã Franciscana da Eucaristia Raffaella Petrini e uma Irmã das Filhas de Maria Auxiliadora, Yvonne Reungoat) e uma leiga, Maria Lia Zervino, ajudarão o Papa a escolher a próxima geração de líderes eclesiásticos. É virtualmente impossível exagerar o quão antigo é o envolvimento das mulheres na tomada de decisões eclesiais.

Petrini tem uma conexão com os EUA : o generalato e a casa-mãe de sua ordem estão localizados em Meriden, Connecticut, uma antiga cidade fabril que já viu dias melhores.

Há mais coisas em jogo aqui do que a introdução de mulheres em papéis de tomada de decisão. Zervino é leigo. A decisão de dissociar a autoridade de tomada de decisão da ordenação toca em questões teológicas profundas.

O Papa está desclericalizando a tomada de decisões na Igreja, abrindo postos para não-clérigos e aqueles que não têm votos. Há algo a ser dito sobre confiar a tomada de decisões na Igreja àqueles que fizeram um voto ou promessa de obediência. A vida e o ministério de Nosso Senhor, e especialmente a sua paixão e morte, foram marcados sobretudo pela sua obediência ao Pai, e por isso aquela Igreja que leva o nome do Senhor e continua o seu ministério deve centrar a obediência na sua vida interior. Preocupa-me que os leigos se esqueçam com demasiada facilidade de que a obediência, como a oração e o sofrimento, são as verdadeiras fontes de poder na fé cristã.

Mas veremos. A confusão do clericalismo perpetrado na Igreja em nosso tempo certamente tornou necessário tentar algo novo. O voto de obediência não foi suficiente para impedir a prática da arrogância.

Esta desclericalização da tomada de decisões convida toda a Igreja, incluindo o clero, a ver a ordenação pelo que ela é, um dom. Se encararmos a ordenação como um ingresso para a autoridade e o poder, rapidamente transformaremos o estado clerical em um terreno fértil para o orgulho, não um veículo para a graça. A camaradagem apropriada ao presbitério se tornará, e se tornou, clichê e insalubre. A preocupação em proteger o poder e os ativos da instituição superou a preocupação em proteger a integridade e a missão da instituição.

Essas reformas, portanto, não se trata apenas de reorganizar as atribuições em um organograma. Eles não são primariamente gerenciais. Em seu nível mais profundo, as reformas renovam a Igreja tanto à luz das necessidades contemporâneas, mas também a partir da fonte de nossa teologia da graça. Francisco, com seu apelo por um processo sinodal universal, está nos convidando a todos a atender a essas questões mais profundas. Em sua reforma da cúria, ele está mostrando o que pode render atender a questões tão profundas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1584438/2022/07/as-mulheres-estao-agora-ajudando-a-selecionar-bispos-catolicos/

terça-feira, 19 de julho de 2022

Porquê descansar com o pensar?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor


‘O mundo vive imerso na ressaca da pandemia e na dor da guerra na Ucrânia, mas nestes meses de descanso não pudemos eliminar a possibilidade de redescobrir quanto mais de mundo existe à nossa volta e que precisa do nosso cuidado. Um desses mundos é o da interioridade. Muitos aproveitam as férias para descansar, mas e se aproveitássemos para pensar?

A nossa cabeça vive imersa em pensamentos todo o dia, todos os dias, mas a maior parte desses orienta-se para os que são momentâneos, prementes, úteis, necessários, e pensar em coisas profundas parece requerer um espaço que não se consegue encontrar no quotidiano. Porém, nas férias, em que o número de compromissos poderia diminuir para dar espaço ao lazer, quantas pessoas mantêm uma atividade frenética de visitar tudo e mais alguma coisa? Será que escondida está a incapacidade de nos libertarmos dos compromissos que nos dão a sensação de realização, mas que, na verdade, continuam a impedir-nos de vasculhar pela nossa interioridade de modo a arrumá-la um pouco?

O mundo está em permanente mudança, mas diante dos desafios grandes como as alterações climáticas e as divisões políticas que semeiam guerras sem sentido, ninguém pode ficar indiferente e achar-se demasiado pequeno para que uma sua transformação interior não produza reflexo no mundo exterior. O mundo é feito de relações e qualquer ato de amor gera um efeito em cadeia que não podemos alguma vez imaginar. Por isso, trabalhar a nossa interioridade para nos tornarmos pessoas profundas que aspiram a uma vida plena é crucial para as transformações que queremos ver realizadas no mundo.

Num sábado à noite, fui jantar com a minha esposa. Reparei no cansaço espelhado na cara dos empregados ao fim de um dia árduo de trabalho. Havia escrito nessa manhã algo sobre o valor transformativo do sorriso e pensei que seria o momento de aplicar o que havia refletido. Assim, de cada vez que interagia com os empregados, seja no ato da escolha e pagamento do menu, como nos momentos de recolha da comida confeccionada, usei o sorriso para acolher gestos menos perfeitos devido ao cansaço na tentativa de que aqueles rapazes e raparigas experimentassem um pouco de amor. Desconheço totalmente o resultado, mas quando amamos não pensamos no resultado, mas no momento presente em que podemos amar. Quantas vezes pensamos neste tipo de coisas?

Para algumas pessoas, pensar pode dar muito trabalho e fazê-lo nas férias não parece ser uma opção de todo. Para outras, pensar pode ser o que mais fazem ao longo do ano, pelo que sugerir pensar nas férias pode levar a não descansarem de todo. Mas, e se considerássemos a hipótese de «pensar como ato de amor»?

Quando amei com um sorriso, incarnei um pensamento. E quando pensamos damos espaço à nossa interioridade para encontrar, na criatividade, quais os modos de converter um pensamento em ato de amor. Pensar como ato de amor pode ser uma atividade transformativa de lazer. Experimente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/770/porque-descansar-com-o-pensar/

sábado, 16 de julho de 2022

Exercitar a fé

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Está muito em voga em nossos dias a ideia de cuidado com o corpo. As academias estão cheias de pessoas fazendo os mais diversos exercícios e com os mais variados propósitos: ganho de massa muscular, condicionamento físico, estético, dentre tantos outros que poderíamos citar. Da mesma forma, os consultórios de nutrição têm sido muito procurados para que se tenha uma dieta que cause o melhor efeito, visando ao resultado proposto.

Essa geração do exercício físico e do cuidado do corpo, como não podia ser diferente, é fruto do seu próprio tempo, em que a forma como se apresenta esteticamente é também um valor a ser considerado nas diversas relações interpessoais, trabalhistas etc. Tudo isso ligado a uma dinâmica capitalista, em que tal estética é vista como mercadoria a ser consumida e, de alguma maneira, a adequação a ela é também um sinal de bem-estar social e de saúde.

Não podemos negar que a atividade física é algo importante para a vida humana. O corpo humano não foi feito para ficar parado e são diversas as doenças que podem advir de uma vida sedentária. Nesse sentido, em alguma medida, é muito bom que diversas pessoas tenham se atentado à necessidade de fazer alguma atividade física regular.

Claramente, é sabido que o resultado da atividade física não é algo que surge de um dia para o outro. Dessa maneira, é ilusório alguém que está acima do peso começar a fazer uma dieta e exercícios físicos e achar que dentro de uma semana seus problemas se resolverão e que terá o corpo esbelto que deseja. O condicionamento do corpo é algo que leva tempo e exige constância nas atividades. Sem isso, o risco de uma frustração por não ver nenhum tipo de resultado é enorme e, consequentemente, parar com a atividade física é algo que passa na cabeça de muitas pessoas com o passar de algumas semanas de início dos exercícios.

Com o tempo, porém, a atividade física passa a fazer parte da vida e sua falta começa a ser sentida por aquelas pessoas que se habituaram a ele. Em outras palavras, passa a ser ‘normal’ se exercitar e condicionar o corpo com a alimentação necessária que atenda aos objetivos que se tenha em mente.

Quando vamos para as questões de fé, infelizmente, nem sempre tal reflexão é feita. Pensa-se que a vida com Deus é algo que se dá de maneira mágica, imediata, bastando para isso uma vontade interior forte. De maneira análoga ao exercício físico, esse exercício da fé também é algo que demanda tempo, disposição e constância para o alcance de certa solidez.

O relacionamento com Deus, assim como todos os outros relacionamentos que envolvem pessoas, não é algo que surge do dia para a noite, mas deve ser exercitado diariamente, sendo justamente tal consistência que gera o amadurecimento e fortalecimento da vida cristã.

Exercitar a fé, sem dúvida, é algo necessário em nossos dias, nos quais uma fé rasa e fácil tem sido oferecida em diversas igrejas e movimentos. Assim como não há mágica para a transformação do corpo, também não há para o desenvolvimento da fé.

A pergunta que fica é se estamos dispostos a nos exercitarmos, seja o corpo, seja a fé e aguardar o tempo necessário para o resultado esperado.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1583934/2022/07/exercitar-a-fe/

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A técnica do pintor Rembrandt esclarece como funcionam as parábolas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Alguns estudiosos intitulam erroneamente esta pintura de Rembrandt "A Parábola do Rico Insensato", baseado em Lucas 12,16-20. É "O cambista" (Der Geldwechsler)


*Artigo de David B. Gowler,

Pierce Chair of Religion no Oxford College da Emory University 

Tradução : Ramón Lara


‘Meu pai adorava parábolas (histórias que ensinam, histórias que apresentam ideias e a moral de uma maneira que cria imagens na mente das pessoas, porque ele acreditava que as histórias eram tão importantes como ferramentas de ensino.

Se estudadas e entendidas corretamente, ‘as parábolas receberão uma interpretação semelhante’. Assim escreveu Irineu, o teólogo cristão do segundo século, em Contra as Heresias : Livro Dois. Essa afirmação imprecisa, no entanto, pode ser facilmente refutada pelas próprias interpretações das parábolas de Irineu, para não mencionar a infinidade de diferentes interpretações das parábolas de Jesus que ocorreram ao longo dos séculos intermediários. Embora algumas parábolas sejam relativamente simples e diretas, outras podem ser evasivas, enigmáticas e encorajar uma variedade de interpretações, pois essas narrativas curtas continuam desafiando nossas mentes, corações e imaginações.

À medida que os estudiosos exploram o que significam as parábolas, essas ‘ferramentas de ensino’, também tentam descobrir como as parábolas funcionam, é como produzem significado, através das formas literárias ou retóricas pelas quais procuram se comunicar e persuadir. Um componente crítico, como Octavia Butler coloca, é como criam ‘imagens na mente das pessoas’, o que corresponde ao argumento do estudioso do Novo Testamento C. H. Dodd, que afirmou que as parábolas de Jesus ‘são a expressão natural da mente que vê verdade em imagens concretas ao invés de concebê-la em abstrações’.

Como devemos entender as ‘imagens’ que essas antigas parábolas criam na mente dos ouvintes de hoje? Para responder a essa pergunta, é útil explorar como as parábolas ‘funcionam’ de maneira semelhante às imagens, como ilustra uma intrigante pintura de Rembrandt. Esta exploração lança alguma luz sobre por que as parábolas, como as imagens, podem produzir múltiplas respostas ou significados :

A sala está escura, iluminada por uma única vela. Um homem idoso está sentado em uma mesa sobrecarregada com livros e papéis, alguns textos no que parece ser uma escrita hebraica. O homem, com óculos sobre o nariz, examina pensativamente uma moeda. A mão que segura a moeda, com os dedos parcialmente translúcidos pela luz da vela, impede o espectador de ver a vela diretamente, mas sua luz brilhante ilumina o homem, uma pequena área da mesa e outros elementos na sala escura.

Todos os elementos não essenciais estão envoltos em sombras. Sobre a mesa há uma balança de ouro com uma caixa de pesos, bem como pilhas caóticas de livros e papéis, com um enorme (conta?) livro aberto à direita do homem, através do qual grandes X foram marcados em algumas notas. O rosto do homem está brilhantemente iluminado e vemos praticamente todos os detalhes de seu rosto envelhecido e enrugado, incluindo o nariz avermelhado, a orelha direita e as pálpebras, bem como as sombras suaves produzidas pelos óculos, enquanto olha para a moeda em sua mão. Outras moedas na escrivaninha brilham no brilho refletido da luz da vela, assim como as insígnias no ombro do homem. A gola chique em volta do pescoço também brilha na luz, que então reflete ainda mais luz no rosto do homem.

Quem é este homem e o que esta pintura diz aos seus espectadores? A pintura resiste à caracterização e deixa muitas perguntas sem resposta, até mesmo o título e o assunto da obra são contestados. Alguns estudiosos argumentam que é uma representação da parábola do rico insensato em Lucas 12,16-20, mas a Gemäldegalerie em Berlim (corretamente) a intitula ‘O cambista’ (Der Geldwechsler).

As parábolas podem criar imagens vívidas na mente, mas, como esta pintura de Rembrandt, essas imagens são muitas vezes enigmáticas e às vezes misteriosas (por exemplo, um significado da palavra usada em hebraico para parábola, mashal, pode ser ‘enigma’). Por exemplo, William Blake comparou sua arte com as parábolas e fábulas de Esopo e declarou : ‘O mais sábio dos Antigos considerava o que não é muito Explícito como o mais adequado para a Instrução porque estimula as faculdades a agir’. Ou, como disse Dodd, uma parábola deixa ‘a mente com dúvidas suficientes sobre sua aplicação precisa provocando o pensamento ativo’. Esse aspecto das parábolas pode dar-lhes um tremendo poder para afetar seus ouvintes e leitores de várias maneiras, desafiando-os a mudar suas atitudes, crenças e comportamentos.

Em termos retóricos, tanto as parábolas quanto as imagens visuais costumam funcionar de maneira análoga aos entimemas. Um entimema é um silogismo com uma premissa não declarada, uma das duas proposições em que se baseia a conclusão de um silogismo. Um silogismo completo contém duas premissas explicitamente declaradas que levam a uma conclusão necessária, como este famoso silogismo sobre Sócrates :

Todos os humanos são mortais;

Sócrates é humano;

Portanto, Sócrates é mortal.

Ao contrário dos silogismos, os entimemas omitem uma premissa e a premissa não declarada deve ser fornecida pelo público. O silogismo acima sobre Sócrates, por exemplo, facilmente se transforma em um entimema (todos os humanos são mortais; portanto, Sócrates é mortal), pois é simples o suficiente para suprir a proposição de que Sócrates era humano.

Parábolas e imagens visuais, portanto, podem ser entimemáticas por omitir ‘premissas’ de um tipo ou de outro, levando à ambiguidade e múltiplos significados. O processo entimemático provoca respostas divergentes à medida que os intérpretes se esforçam para compreendê-las, uma vez que nem todos os membros da audiência visualizam a premissa que falta da mesma maneira.

Às vezes, em parábolas e imagens visuais, a ‘premissa que falta’ pode ser omitida involuntariamente. Muitas suposições sociais e culturais em textos antigos, por exemplo, são incompreensíveis para a maioria dos leitores modernos. Assim, um papel fundamental para os intérpretes é se esforçar para entender os significados das parábolas nos contextos da vida e ministério de Jesus, tentando preencher as ‘premissas que faltam’ ou lacunas com informações históricas, sociais e culturais, e então contextualizar as parábolas de Jesus autenticamente – tornando-as relevantes para a sociedade contemporânea sem anacronizar ou domesticar sua mensagem.

Além disso, devido à natureza das parábolas e imagens visuais, uma premissa ou outras ‘lacunas’ são intencionalmente omitidas, como é o caso da pintura de Rembrandt.

A iluminação destaca o personagem principal e a profundidade psicológica aberta pela brilhante manipulação de luz e sombra (claro-escuro) de Rembrandt é aparentemente sem fundo e, junto com o distanciamento aparentemente introspectivo do homem, também cria uma sensação de mistério. Isto é, temos uma forte sensação de que algo profundamente sério está acontecendo na mente desse homem, mas a natureza precisa de seus pensamentos e sentimentos é, na melhor das hipóteses, apenas obscuramente implícita.

Rembrandt usa o claro-escuro tanto como um meio dramático de retratar uma cena quanto como uma maneira eficaz de sugerir um caráter interior com uma visão psicológica sutilmente retratada com um senso de mistério. Os raios de luz são refletidos de várias maneiras e em diversos lugares, assim como as parábolas são refletidas de diferentes maneiras em diferentes contextos e ouvidas de várias maneiras por vários ouvintes. Rembrandt ilumina alguns objetos com clareza, enquanto outros aspectos permanecem obscuros ou obscuros, colocados deliberadamente nas sombras, criando incertezas e provocando debates.

De maneira semelhante, as parábolas de Jesus iluminam algumas coisas tão claras quanto o dia. Outros aspectos tornam-se mais claros à medida que aprendemos cada vez mais sobre os contextos do primeiro século em que Jesus viveu e seus seguidores preservaram, transmitiram e transformaram suas palavras. Enquanto isso, ainda outros elementos, por causa da natureza da palavra parabólica, permanecem deliberadamente nas sombras, provocando nossas respostas à medida que nos esforçamos para entender as parábolas de Jesus mais claramente em seu contexto e no nosso procurando mudar nossas atitudes, crenças e comportamentos de acordo com a mensagem.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1584033/2022/07/a-tecnica-do-pintor-rembrandt-esclarece-como-funcionam-as-parabolas/