Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo da Vatican News
‘De
Moçambique onde se encontra em missão, o padre brasileiro Edegard Silva
Júnior, missionário Saletino, responde a algumas perguntas sobre a situação
da Guerra na Província de Cabo Delgado. ‘Não falarei em números e
estatísticas. Desde a missão em Mieze, quero apenas relatar como temos vivido
estes últimos tempos aqui na região’, afirma o missionário.
A
guerra em Cabo Delgado continua?
Sim,
ela continua. Costumo afirmar que vivemos aqui numa espécie de ‘caixa de
surpresas’. A cada ‘capítulo’ dessa guerra, somos tomados por um
fato inesperado, que modifica nossa agenda e deixa toda a população atordoada.
Para a comunidade atacada, a ação terrorista é algo inesperado. Para os
terroristas, provavelmente uma ação planejada.
‘No
dia que, ‘oficialmente’, se declarar o fim desta guerra, as sequelas do ‘pós-guerra’
irão se tornar um desafio e um processo lento na reconstrução (humana e física)
das comunidades. E nesse processo entra nossa presença enquanto Igreja nestas
terras. Seria exagero dizer que iremos ‘recomeçar do zero’, mas a retomada do
processo de evangelização nessa região será desafiadora.’
A
guerra apresenta novos cenários?
Ao
longo deste tempo, vimos que essa guerra foi marcada por ações diferenciadas.
Inicialmente, o uso de catanas (facões) para decapitar as pessoas; depois,
ataques aos meios de transportes, queima de casas, raptos, até chegar ao uso de
armas pesadas e de grosso calibre. Essas ações não são improvisadas. Pelo
contrário, são ataques planejados, e, provavelmente, com orientações prévias
das táticas e dos meios que deverão ser utilizados.
Não
se fala muito da guerra de Cabo Delgado : As pessoas se acostumaram com a
guerra?
A
expressão ‘acostumar com a guerra’ é muito cruel. Quem é movido por
compaixão e humanidade não pode aceitar esta postura de passividade. Essa
expressão não pode fazer parte do nosso vocabulário. Entretanto, essa guerra já
dura cinco anos, o primeiro ataque ocorreu em outubro de 2017. O fato de ela
acontecer no continente africano parece não gerar nenhum interesse por parte de
muita gente, nem da grande mídia; por essa razão, corre-se o risco de cair no
esquecimento. Isso me faz lembrar o texto da Marina Colasanti, intitulado ‘Eu
sei mas não devia’, que diz :
‘A
gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a
guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os
números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da
guerra, dos números, da longa duração’.
‘Não
podemos nos acostumar com a guerra, nem com nenhuma barbárie que a humanidade e
a criação possam sofrer! Nós, missionários e missionárias (os daqui desse país
e os que vieram de outras partes do mundo), ‘respiramos’ esse clima da guerra
diariamente. As pessoas deslocadas estão por toda parte. Queiramos ou não,
acompanhamos angustiados esta via crucis que parece não ter fim.’
Tem
acontecido novos ataques?
Na
verdade, os ataques nunca deixaram de existir. Aqueles de maior intensidade ou
impacto aconteceram num determinado momento e ficaram na memória da grande
maioria das pessoas. O dia do ataque, a fuga para o mato, a destruição da
aldeia, tudo isso cada pessoa tem gravado na sua história de vida. Muitas
dessas comunidades atacadas já não têm nem mais o que destruir. Além disso,
algumas aldeias do Norte, que não tinham sido atacadas, foram em seguida
tomadas pelos terroristas.
A
‘novidade’ destes últimos dias são os ataques na região Sul da
Província, precisamente no distrito de Ancuabe, que teve algumas aldeias
atacadas. Isso desencadeou um novo ciclo de fuga. Esses ataques se estenderam
por mais algumas aldeias (além de Ancuabe), e a população local foi tomada por
um clima de pânico que desestruturou toda a região.
Estas
notícias se espalham muito rápido...
Sim.
Quase ninguém tem acesso ao rádio, à televisão ou à rede social. A população,
em geral, tem aparelhos de telefone celular, muito simples, todos recarregáveis
através de pequenas placas solares. Eles se comunicam de forma veloz através
desses aparelhos. É uma espécie de ‘rede de comunicação’. Cada família
tem parentes ou conhecidos por toda parte. Com isso, não se pode controlar as
informações verdadeiras e as não verdadeiras, e as ‘notícias falsas’ (fake
news) acontecem descontroladamente nesse contexto de guerra.
Ao
sair a notícia de um ataque, procuramos diversas fontes (as equipes
missionárias, os animadores das comunidades ou alguma organização), pessoas que
possam assegurar a veracidade dessas informações. Ataques aconteceram
recentemente, mas também muitos boatos e desinformação. Um avisa ao outro numa
grande velocidade. O resultado disso é a sensação de que as aldeias estão
totalmente abandonadas. O medo se apodera das pessoas.
E
a situação do povo?
Não
temos deixado com muita frequência a área onde exercemos nossa missão. Milhares
de famílias continuam morando em casas de parentes, nos assentamentos ou
reassentamentos, vivendo em condições precárias. Nossa presença (dos
missionários e missionárias) acontece em ações que estão ao nosso alcance.
Temos pequenos projetos pontuais, sobretudo com nossos animadores que estão
nessas áreas. As organizações humanitárias estão presentes. Mas é uma realidade
desafiadora e muito gigantesca para nossos recursos humanos e financeiros.
Qual
análise se faz da guerra?
Achei
interessante um artigo do comandante de treino da União Europeia em Moçambique
que foi publicado recentemente. Ele fala sobre as iniciativas que têm sido
tomadas, mas afirma : ‘até a situação estar completamente controlada, ainda
vai demorar muito tempo’. Há uma ação conjunta entre as Forças de
Defesa e Segurança (FDS) de Moçambique e as Forças de Ruanda e a Missão da Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral. Passos significativos foram dados. No
entanto, não podemos esquecer que os insurgentes (terroristas) têm também suas
táticas, com uma formação muito consolidada e, provavelmente, com
financiamento.
As
famílias estão retornando para suas comunidades?
Nós,
Missionários Saletinos, a pedido do próprio Bispo da Diocese de Pemba, Dom
Antonio Juliasse, continuamos a ser um ‘ponto de referência’ para as
comunidades de Muidumbe. Não tenho condições de falar de cada distrito. Os
demais missionários que atuavam nessa região podem falar com mais propriedade
da realidade na qual estavam inseridos. Sinto-me mais seguro em falar de
Muidumbe porque o povo nos procura, liga para nós, e muitos animadores estão
aqui por perto. Temos informação de que, em muitos distritos, começaram a
fazer a limpeza da área, com retomada de algumas escolas etc. Isso desencadeou
na população um desejo muito grande de retornar. Humanamente, até entendemos a
saudade de casa, da comunidade, a história de cada; são muitos fatores. Mas
creio que o mais forte é a vontade de voltar para sua terra. Certa vez,
uma animadora me disse assim : ‘entre sofrer em minha terra ou sofrer onde
estou, prefiro sofrer por lá’. Não é uma decisão comum a todos os
deslocados. Em alguns casos, o homem vai primeiro para ver como está a
situação, deixando por aqui a mulher e os filhos. Por conta das constantes
notícias de novos ataques ou mesmo da presença dos terroristas, muitas famílias
preferem dar um tempo para o retorno. Alguns falam em esperar até o mês de
setembro. Para se ter noção, o distrito de Muidumbe é formado por 26
aldeias. Destas, 13 já estão com pessoas que retornaram às suas casas (não a
totalidade da população que compõe a aldeia). Estamos organizando uma ação
junto à diocese de Pemba para enviar material para os animadores realizarem a
Celebração da Palavra.
O
que é ser missionário(a) neste contexto de guerra?
O
missionário(a) é gente! É pessoa humana! Portadores de sentimentos, e cada um/a
traz consigo posturas diferenciadas. Não somos super-homens, nem
super-mulheres. Tampouco podemos negar que sentimos medo, que a estrutura
física das casas onde vivemos, muitas vezes, nos preocupa, que temos que tratar
de uma possível fuga. São situações que mexem conosco. O processo de
discernimento diante da decisão ‘sai/fica’ é muito difícil. No
entanto, somos lideranças, pastores e pastoras das comunidades a nós confiadas.
O povo espera uma palavra de confiança e de esperança. Temos uma
responsabilidade e um compromisso neste momento. Saber o que falar. Ser
prudente nas informações que são repassadas, isso é de suma importância.
Lembrar que temos pessoas que nos acompanham em outras partes do mundo e
devemos ser realistas, sem ser sensacionalistas.
O
testemunho e a presença amorosa no meio do povo neste momento são muito
importantes. Sempre se pediu que não nos cansemos de dobrar os joelhos e clamar
pela Paz. Esta vigilância e constância de orar pela paz, não apenas de
Moçambique, é um gesto significativo. Como seguidores de Jesus, deixemos que
Ele entre onde quer que estejamos e nos diga : ‘A paz esteja convosco’
(Jo 20), venha, junte-se a nós, sejamos sonhadores, fazedores e construtores da
paz!’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-07/mocambirque-igreja-missao-construtores-da-paz.html
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