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sábado, 10 de dezembro de 2022

Um Deus que vai ao encontro da humanidade

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

Na língua portuguesa há duas expressões que são comumente faladas e muitas vezes confundidas. São elas : ‘ir ao encontro’ e ‘ir de encontro’. Ambas, sem dúvida, são muito parecidas, contudo possuem sentidos totalmente opostos. Quando usamos ‘ir ao encontro’ pressupomos que há certa concordância entre as partes envolvidas, sendo uma favorável à outra. Quando, todavia, usamos a expressão ‘ir de encontro’ pressupomos a ideia oposta, ou seja, há uma discordância entre as partes envolvidas, sendo uma contrária à outra. Dessa forma, ‘ir de encontro a algo ou alguém’ quer dizer ser contra esse algo ou alguém.

Por que é importante para uma pessoa cristã saber essa diferença? Bom, primeiramente, porque falar e escrever corretamente ajudam muito na hora de transmitir determinada ideia de forma clara e assertiva. Segundo, porque nos ajuda a compreender algumas características presentes em diversas pregações que ouvimos hoje em dia.

A mensagem cristã, ao longo de sua história, durante um período considerável, deu mais ênfase ao Deus que vai de encontro à humanidade do que ao Deus que vai ao encontro da humanidade. Ou seja, durante muito tempo, e ainda hoje, tem-se pregado um Deus que é contra o ser humano, que o considera como não digno, pecador, sujo, afastado de Sua graça e que precisa desesperadamente de alguém que o salve da condenação do inferno. Esse tipo de pregação enfatiza um Deus que está distante, inacessível em sua glória, precisando ser adorado e exaltado para que sua ira não recaia sobre o ser humano e sobre a criação.

Esse tipo de pregação enfatiza um Deus tirano, que age arbitrariamente simplesmente para satisfazer seus caprichos. Se para mostrar que o ser humano está errado for preciso destruir uma cidade inteira enviando um tornado, não tem problema algum para esse Deus, afinal, quem mandou determinado povo não obedecer à vontade divina? Esse é somente um dentre tantos outros exemplos que podemos tirar tanto do texto bíblico como das pregações atuais. Deus e a humanidade, dessa forma, são colocados em polos contrários, estando constantemente um contra o outro.

No entanto, a partir dos Evangelhos é possível perceber uma outra ideia de Deus. Um Deus que vai ao encontro da humanidade, que vê nela algo de bom, que tem alegria em sua companhia e reconhece que ela não é, por natureza, má, mas carrega em si algo do próprio Deus que lhe criou. Esse Deus narrado nos Evangelhos, sendo amor, está sempre indo ao encontro de sua criação, dispondo-se a caminhar com ela e promovê-la para que se torne cada vez mais aquilo que foi chamada a ser. Esse Deus que vai ao encontro da humanidade, na perspectiva cristã, revela-se em Jesus, em sua entrega e ressurreição em favor de seus irmãos e irmãs.

Pregar um Deus que vai de encontro à humanidade gera uma casta superior, daqueles e daquelas que se consideram santos e irrepreensíveis, que se consideram estando mais perto de Deus e, por isso mesmo, podem se colocar como pedágio para os que querem se aproximar Dele. Com isso, sentem-se autorizados a justificarem perseguições, desigualdades sociais, opressões, estelionatos e tantos outros crimes, feitos em nome desse deus, contra as pessoas mais pobres e desfavorecidas.

Na linha oposta, pregar um Deus que vai ao encontro da humanidade é perceber que o mundo da forma como está não é o desejado por Deus e, por isso mesmo, lutar contra as diversas injustiças que nele se manifestam é tarefa cristã. Anunciar a libertação dos pobres, cativos e oprimidos com voz profética se mostra como o caminho necessário para anunciar que o amor de Deus para com a humanidade não é algo passivo, mas como todo amor, ativo, que visa a liberdade de todas as pessoas que alcança.

Pregar um Deus que vai ao encontro da humanidade é a única pregação cristã possível, fazendo coro ao que Hans Urs von Balthazar afirma : ‘só o amor é digno de fé’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1595494

sábado, 30 de julho de 2022

Vocação: encontrar e encontrar-se

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC

(Laïcs missionnaires Comboniens)

 

‘Por estes dias, tenho-me debruçado sobre as palavras do Papa Francisco quando este, na encíclica Fratelli Tutti, fala do modo único de o ser humano se realizar. Nas palavras do papa, «o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ‘a não ser no sincero dom de si mesmo’ aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros : ‘Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro’. Isso explica porque ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que ‘a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte’» (Fratelli Tutti, n.o 87).

A partir da reflexão do papa, parece-me evidente que se está perante dois pontos fundamentais. O primeiro diz respeito à realização pessoal, ao modo como podemos encontrar a verdade que nos habita e experienciar a vivência de uma vida autêntica e verdadeiramente feliz. O segundo ponto essencial que aqui se destaca é a importância da pessoa do outro em todo este processo. Fechar-se em si mesmo nunca é algo que gera vida. Ao contrário, é algo que rompe qualquer possibilidade de viver autenticamente a partir daquilo que cada um é no mais íntimo do seu ser. Consequentemente, o «ser com os outros» e assumir uma responsabilidade para com o sofrimento dos outros é o motor de toda a possibilidade de, não apenas viver de acordo com aquilo que se é, mas também (e sobretudo) viver em constante realização daquilo que se deseja ser.

Neste excerto da encíclica, parece claro que ‘encontrar’ e ‘encontrar-se’ são duas faces de uma mesma moeda, sendo impossível separar uma da outra, ou de ter uma sem a outra. Na vocação, usando esta metáfora da moeda, temos também as duas faces, sendo no assumir de ambas que a vocação é discernida e vivida. Além disso, na vocação encontramos ainda, de modo único e inequívoco, a presença do metal precioso onde as duas faces da moeda se inscrevem. Esse metal é cada pessoa, mas a preciosidade que ele apresenta é dom de Deus. Importa ainda não esquecer que uma moeda dentro do mealheiro de nada serve. Do mesmo modo, a vocação fechada no ‘adiamento’ ou nos ‘caprichos do eu’ jamais servirá para o que quer que seja (não permitirá encontrar nem encontrar-se e, consequentemente, não trará felicidade nem para a própria pessoa nem para os outros).

Encontrar, procurando e encontrando-se

Encontrar algo significa sempre que algo estava perdido ou, quando muito, estava fora da nossa vista/alcance, mas que apenas tomamos plena consciência da sua existência no momento em que o encontramos. A procura e o encontro parecem ser inseparáveis, mesmo quando não temos consciência da existência de algo que, sem termos bem consciência, nos fazia falta. Não é por acaso que, muitas vezes, nos acontece, perante certas coisas/realidades, exclamarmos : «Eh! Era mesmo isto que eu precisava!» De repente, faz-se luz e algo vem ao encontro dos nossos anseios mais profundos (e mesmo inconscientes). De certa maneira, alguém viu o que nós não conseguíamos ver; alguém procurou por nós e deu-nos a possibilidade de encontrar! No caso da vocação, é precisamente este o processo de discernimento : nós procuramos e vamos ao encontro, não de certezas absolutas e definitivas, não de soluções de vida fáceis; mas daqueles que nos ajudarão a procurar dentro de nós mesmos e a encontrar mesmo aquilo que nem imaginávamos. 

Há quem diga que quem procura encontra (o próprio Evangelho faz referência a isso, por exemplo, em Mt 7,7). Esta é uma verdade essencial para não andar à deriva. De fato, permanecer sentado no sofá à espera de que a «vocação chegue e comece a acontecer», está longe de ser uma possibilidade. Viver a vocação desde o primeiro momento (desde o início do discernimento sério e responsável) é sempre sinônimo de desinstalar-se, de ir à procura, de pôr-se a caminho. Se pensarmos bem, esta é a verdade humana desde o início da sua existência. Ficar parado não é opção. A inércia e a apatia não são para os seres vivos, mas para as coisas. Andar ao sabor do vento (de acordo com o que os outros dizem, mais do que pôr-se em marcha para ouvir e dialogar com quem nos pode, de facto, compreender e auxiliar no caminho) é reduzir a vida ao estado vegetativo ou ao estado animal. O ser humano – porque criado à imagem e semelhança de Deus – é chamado a uma felicidade que vai além do fato de existir. Se para os seres vivos, de modo geral, a vocação para sobreviver é a tônica da existência, para o ser humano, a vocação que o define como tal implica mais do que sobreviver – exige viver!

A vida, para ser vivida, requer constantemente uma acão pró-ativa. Lá diz o velho ditado que nada se consegue sem esforço! Pois é, sem ir à procura e sem ir além de «si mesmo», a visão da vida, do mundo e daquilo que nos realiza plenamente torna-se turva a ponto de nos tornar cegos relativamente ao que somos, ao que sonhamos ser e ao mundo do qual fazemos parte.

Viver a vocação : encontros sem encontrões!

As nossas opções e decisões de vida nem sempre agradam a gregos e troianos. Todos parecem ter opiniões sobre o que deveríamos fazer e/ou ser, mas... é a nós que cabe procurar para encontrar e para nos encontrarmos a nós mesmos durante todo esse caminho (nunca terminado!). Estas tensões, que muitas vezes parecem obstaculizar a realização vocacional, são parte integrante do processo de discernimento. Procurar quem nos acompanhe neste processo é fundamental (mas exige sair de casa e de si mesmo). No entanto, a procura não pode circunscrever-se ou terminar com o encontro com aqueles que nos ajudarão a discernir. Ao contrário, tudo é um caminho de encontro, de escuta e de diálogo. Isto significa, como vimos que defende o Papa Francisco, experimentar o valor de viver através de rostos concretos. Estes encontros com os outros, por muito que estes outros tenham uma visão diferente da nossa e pretendam impor a sua vontade para a nossa vida, não podem tornar-se encontrões, momentos de disputa acesa e violenta. Ao contrário, faz parte do caminho e realização vocacional trabalhar para que estes momentos sejam verdadeiros encontros de amor. E, quando assim, sabemos que dialogar com quem amamos, mesmo quando há discordância, nunca é uma luta para ver quem tem razão, mas um caminho para que as partes se ouçam, se compreendam e sejam capazes de manter vivo o amor, mesmo que não se chegue a um entendimento racional de todas as posições. Isto parece uma missão difícil, ou até mesmo impossível, em alguns casos... mais uma razão para que o discernimento vocacional se faça a partir de encontros e atendendo ao caminho que se for trilhando com aqueles que têm por missão ajudar-nos a discernir.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/776/vocacao-encontrar-e-encontrar-se/

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A depressão e o (re)encontro com o sentido da vida

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Talita Rodrigues

 

Vejo e percebo muitas pessoas vítimas da depressão. Pode-se dizer que a depressão tem sido o mau do século XXI e que é caracterizada como uma doença psiquiátrica crônica, que produz uma alteração de humor marcada pela tristeza profunda, pela desesperança e pela falta de sentido.

A depressão bate à porta de qualquer um, e comigo não foi diferente.

Após o término doloroso de um noivado, me vi mais uma vítima da tão temida depressão. Meus dias já não tinham mais cor, uma boa notícia não alterava meu humor e o sentimento de desesperança e falta de prazer se tornaram recorrentes. Meus dias se resumiam apenas em realizar as obrigações e sentir uma profunda tristeza.

Eu não sentia alegria, não sentia paz, não sentia amor e não sentia esperança.  Perdi minha fé, logo, perdi o sentido de viver.

Dentro da psicologia analítica, trabalhamos com a ‘falta’, e, como consequência, em como recuperar a nossa ‘alma’ perdida em algum momento de nossa história.

Alma’, como já escrevi em outros textos, significa tudo aquilo que nos torna completos, felizes e esperançosos. É a própria alma que nos dá o sentido de viver.

A necessidade de buscar pela minha alma perdida foi justamente o que me possibilitou saber sobre qual era o meu sentido de viver. O deserto – referindo-me a um contexto católico – é o que faz com que nos aproximemos de quem nós somos realmente. Foi no meu deserto, quando eu não conseguia sentir absolutamente nada, que encontrei Deus e me dei conta que só o Seu amor e Sua graça me bastavam. A partir de então, só então, fui feliz novamente.

Se você também está passando por um deserto e enxerga o mundo em uma escala de cinza, seja corajoso e busque por sua alma perdida. Com sua coragem, no meio do caminho, tenho certeza de que (re)encontrará o seu sentido de viver.’ 


Fonte  *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2019/07/01/a-depressao-e-o-reencontro-com-o-sentido-da-vida/

domingo, 23 de janeiro de 2022

Encontro

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Manuel Augusto Lopes Ferreira,

Missionário Comboniano

 

‘Começamos a rubrica destinada a favorecer um aprofundamento das palavras-chave do vocabulário do Papa Francisco, relevantes para a missão, com Encontro. Ele recorda-nos que na origem da fé não está uma ideia ou um ideal ético, mas sim um «encontro» com uma pessoa concreta, Cristo; e que a identidade do caminho cristão se vive no encontro com Deus e os outros.

Já na narrativa bíblica da criação, a terra é idealizada como lugar do encontro da pessoa com as outras criaturas e com a Natureza, num dinamismo de fruição e de liberdade, sob o olhar de Deus que «passeava no jardim ao cair da tarde». Com a experiência traumática da liberdade e da falta de confiança em Deus e no outro, introduz-se nas relações humanas o medo e a distância, que tornam o encontro problemático. Deus continua a descer e a passear no jardim, à procura de um encontro, mas «o homem e a mulher escondem-se do Senhor no meio das árvores do jardim» e culpam-se um ao outro pelo desconforto do encontro (Génesis 3, 8-13).

Na raiz do caminho de fé está a ideia do encontro entre Deus e aqueles que Deus escolhe para viver em aliança. A tradição litúrgica em Israel constrói-se, igualmente; sob o paradigma do encontro. O primeiro templo que o povo da aliança conhece é a tenda. A palavra «tenda», em hebraico, tem a mesma raiz que a palavra «encontro». A tenda guarda a arca da aliança, com as tábuas da Lei, e é chamada lugar do encontro.

Jesus insere o seu movimento neste dinamismo do encontro : com o seu ensinamento itinerante procura um encontro com as pessoas, nos seus lugares habituais de encontro (na sinagoga, nas praças, nos caminhos, nas margens do lago). Ele faz o anúncio da soberania de Deus, num modo e com palavras que favorecem o encontro e expõe-se à surpresa que cada encontro comporta, com a possibilidade de abertura, mas também de recusa. Os evangelhos dão-nos conta destes encontros de Cristo com as pessoas. Primeiro, na intimidade da casa, na relação pessoal, em que o mistério da pessoa se revela e a identidade se constrói. Depois, no tumulto da vida e do trabalho. Por fim, no meio da alegria de viver, à volta da mesa, nas festas e nos momentos decisivos da vida das pessoas e da comunidade. No centro deste movimento estão os excluídos (pobres e doentes), de uma sociedade que, apesar de ser construída sobre a aliança com Deus e com os outros, consentia o descarte de pessoas. Jesus procura o encontro e oferece uma resposta, na sua palavra e na sua acção.

Francisco convida-nos a reconduzirmos a vida cristã a este paradigma do encontro, e a não nos deixarmos roubar a alegria do encontro com Cristo e os irmãos (Evangelii Gaudium 1 e 92). E a iluminarmos a missão dos cristãos no mundo de hoje com o sonho da fraternidade humana : na Fratelli Tutti (216-221) ele sugere um modelo de missão centrado na fraternidade; e propõe também, às demais religiões e às pessoas de boa vontade, a cultura do encontro que torne possível uma política melhor.

Nós, nesta questão como noutras, deixamos o papa a falar sozinho. Ele fala ao coração das pessoas, com palavras que elas entendem e com gestos que falam da sua procura de encontros com todos, a começar pelos descartados da nossa sociedade tão opulenta e fechada em si.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/01/21/entrevista-com-um-monge-o-deserto-pode-ser-um-lugar-implacavel/

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Provai e vede como o Senhor é bom: a catequese como experiência de encontro e relação com Jesus

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Daniel Reis

 

‘Defronte ao mundo secularizado, apressado, tecnicista, consumido pelo consumismo e mergulhado na volatilidade das relações virtuais, o futuro da catequese consiste nisto : conseguir propiciar a experiência do encontro e relação com Jesus. Essa experiência, para que permaneça e frutifique, deve ser proposta de maneira encarnada, visceral, integral, não apenas mental e racionalmente.

O anúncio querigmático-catequético, para que cative e encante, também deve, antes, ser fruto de uma experiência autêntica dos(as) catequistas com a Pessoa de Jesus. Não se aponta o Caminho (Jo 14,6) sem antes ter passado por Ele. Não se propõe uma experiência sem antes a ter experienciado. No caso, corre-se o risco de uma catequese meramente discursiva e ideal, sem o vigor testemunhal.

Com origem no latim (experientia/experiri), ‘experiência’ significa experimentar, provar. ‘Provai e vede como o Senhor é bom!’ (Sl 34,9), canta o salmista. Fazer provar, escutar, saborear, ver, tocar, experimentar Jesus é a missão da catequese. Experienciar e proporcionar experiência, portanto, é algo que passa pelos sentidos e toca a inteireza do sujeito e da realidade criada.

Alguém me tocou!’ (Lc 8,46), exclamou Jesus em meio à multidão que o comprimia. Numa infinidade de esbarrões, Jesus percebe um toque. Ali se deu uma experiência. Houve ali, naquele toque discreto da mulher de fé notável, um encontro com o Mestre de Nazaré. A catequese é aquela que, apresentando o Senhor e o Evangelho de seu Reino, proporciona e facilita o encontro com Ele. Nesse sentido apontou o papa emérito Bento XVI : ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’ (Deus caritas est, 1).

Uma catequese meramente doutrinadora, moralizante e dogmática é insuficiente e nada eficiente para promover a experiência do encontro com o Senhor. De nada adianta apregoar o conteúdo da fé sem antes suscitá-la a partir d’Aquele que é seu ‘autor e iniciador’ (Hb 12,2). A catequese, assim, não pode ser vista apenas como formação, mas como relação. Desfiar o catecismo, sem estabelecer uma relação com a Pessoa de Jesus e sua práxis, poderá formar bons católicos, mas dificilmente formará bons cristãos.

A catequese, ao propiciar a experiência do encontro, acompanhará a relação que ali se desenvolverá. Relação que é pessoal, porque Deus se revelou, se mostrou, se deu a conhecer plenamente na Pessoa de Jesus de Nazaré. ‘Pessoal’, no entanto, não se confunde com uma relação individualista, intimista e sentimentalista. ‘Pessoal’ é a relação encarnada no hoje da história, comprometida com a ação sociotransformadora que vise a dignidade e a ‘vida em abundância’ (Jo 10,10) das demais pessoas, a exemplo do que fez a Pessoa de Jesus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1536480/2021/08/provai-e-vede-como-o-senhor-e-bom-a-catequese-como-experiencia-de-encontro-e-relacao-com-jesus/

domingo, 19 de julho de 2020

Que Deus é digno de fé em nossos tempos?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Precisamos encontrar Deus 'até mesmo na cozinha, entre as caçarolas' (Santa Teresa) e aprender a tocar as 'chagas de Cristo na carne sofredora do outro'

*Artigo do Padre Rodrigo Ferreira da Costa, SDN,

pároco de Santa Luzia, PI


‘Nos momentos de crise e desespero, quase sempre procuramos nos apegar a experiências, ideias ou conceitos do passado que nos deem alguma segurança no tempo presente. Na espiritualidade não é muito diferente. Muitas vezes, temos a tentação de ‘copiar’ modelos de espiritualidade de outros tempos, transpondo-os à nossa contemporaneidade. Porém, uma espiritualidade ‘plagiada’ é como colocar remendo novo em roupa velha (cf. Mt 9, 16), além de não responder às perguntas mais profundas do homem de hoje, ainda proporciona muitas vezes uma ‘esquizofrenia espiritual’, pois parece que a pessoa não se vê inteira na sua experiência de fé. ‘Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele. Pois a vida divina comunica-se a uns duma maneira e a outros doutra’ (Papa Francisco, GE, n. 11).

Susan Sontag, em seu ensaio intitulado A estética do silêncio, afirma que ‘cada época deve reinventar para si um projeto de espiritualidade’, ou seja, a cada época somos desafiados a encontrar uma nova gramática sapiencial que seja capaz de responder às perguntas mais profundas do existir humano. Isso não significa perder a memória da fé ou cortar o fio da Tradição que nos liga à experiência do povo de Deus ao logo da história, mas de encontrar uma nova hermenêutica, uma nova linguagem, capaz de anunciar um Deus que seja digno de fé em nossos tempos.

O ensaísta e poeta português, José Tolentino Mendonça, em sua obra A mística do instante, fala de uma espiritualidade do tempo presente que esteja integrada com todo o nosso ser. Uma espiritualidade que passa pelos sentidos, que redescubra o corpo como a língua materna de Deus, pois ‘há mais espiritualidade no nosso corpo que na nossa melhor teologia’, afirma. Reconciliar, pois, a espiritualidade com os nossos sentidos não é algo estranho à experiência cristã que confessa a fé num Deus criador que sopra seu ‘hálito vital’ sobre o ser humano e, ainda mais, num Deus que se encarna, assumindo a nossa condição humana, fazendo da ‘carne o eixo da salvação’ (Tertuliano).

Essa espiritualidade em paz com os sentidos, que escuta a linguagem do corpo, que toca a nossa condição humana, é uma espiritualidade reconciliada com o tempo. E quando nos entregamos ao ritmo do tempo, descobrimos ‘que para amar a Deus sobre a terra, não temos nada além do hoje’ (Santa Teresa de Lisieux). Por isso, não sentimos o tempo como um tirano, ao qual devemos servir como escravos, mas uma dádiva, ao nosso serviço. ‘A mística do instante nos reenvia, assim, para o interior de uma existência autêntica, ensinando a tornarmo-nos realmente presentes : a ver em cada fragmento o infinito, a ouvir o mergulhar da eternidade em cada som, a tocar o impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplêndido banquete daquilo que é ligeiro e escasso, a inebriar-nos com o odor da flor sempre nova do instante’ (MENDONÇA, 2016, p. 36).

Outro aspecto importante dessa espiritualidade integradora é passarmos de uma religiosidade natural que nos remete para o divino através da necessidade, para uma espiritualidade que aceita a vulnerabilidade de Deus, uma espiritualidade pautada numa relação de gratuidade com Deus. ‘A religiosidade natural do homem remete-o para o divino através da necessidade : o homem precisa de um Deus que lhe seja útil, que tenha poder no mundo que lhe proteja. Rapidamente, Deus, torna-se um ídolo, que serve para garantir-nos um funcionamento favorável do grande sistema do mundo’ (José Tolentino Mendonça). Há, pois, que se descobrir o rosto do Deus bíblico que se humilha para estar junto com o contrito e o humilde (cf. Is 57,15), um Deus inútil, um Deus revelado no extremo do abandono e da fragilidade do seu Messias.

Quiçá, o grande desafio da espiritualidade hoje seja experimentar e anunciar esse Deus ‘inútil’. Este Deus que não se impõe pela força e poder privando o ser humano da sua liberdade e responsabilidade em optar-se por Deus; nem tampouco se resume numa simples proposição, a partir da qual o ser humano, pela sua inteligência e vontade, responde positivamente a este chamado, mas um Deus exposto, gratuito, que ama desesperadamente.

Assim sendo, a experiência mais profunda de uma espiritualidade do tempo presente não se resume na heteronomia de Deus que se impõe a partir de uma lei externa a nós, nem tampouco numa autonomia na qual Deus se propõe e nós respondemos racionalmente em nossa liberdade, inteligência e vontade. Mas na alteronomia de um Deus que se expõe na desmesura do amor, que se deixa afetar pelo rosto humano, um Deus kenótico (cf. Ex 3,7-8; Fl 2, 1-11).

Quando contemplamos a cena da crucifixão de Jesus, percebemos essa extrema fragilidade de um Deus que é ‘incapaz’ de salvar-se a si mesmo. Os que assistiam a crucifixão de Jesus zombavam dele dizendo : ‘A outros ele salvou, a si mesmo não pode salvar! É Rei de Israel : desça agora da cruz, e acreditaremos nele. Confiou em Deus; que o livre agora, se é que o ama!’ (Mt 27,42-43), é que eles não compreendiam que ser Messias é dar a vida pelo outros. Neste sentido, a cruz de Cristo e os crucificados da história que ‘completam o que faltou no sofrimento de Cristo’ (Cl 1,24) são o fundamento último dessa espiritualidade da gratuidade, da ‘inutilidade’, a qual aceita o silêncio, as surpresas e até a ausência de Deus.

Noutras palavras, uma autêntica espiritualidade para o nosso tempo não pode ser ‘analfabeta sensorial’ nem tampouco manter-se longe das angústias e do sofrimento dos homens e mulheres. Pelo contrário, precisamos encontrar Deus ‘até mesmo na cozinha, entre as caçarolas’ (Santa Teresa) e aprender a tocar as ‘chagas de Cristo na carne sofredora do outro. Do contrário, a nossa fé será vazia de sentido e a palavra ‘Deus’ tornar-se-á um ídolo sem nenhuma eficácia em nossa existência.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1459986/2020/07/que-deus-e-digno-de-fe-em-nossos-tempos/


sábado, 2 de maio de 2020

Além da crise: "Com que olhar voltaremos a nos encontrar?"

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Palavra de Fé - Mantenha o seu olhar em Cristo
*Artigo d0 Padre Federico Lombardi, SJ 


Dias atrás li a afirmação de um pensador russo : ‘A simples relação entre as pessoas é a coisa mais importante do mundo!’. Isso me fez recordar uma linda canção cheia de alegria de algumas décadas atrás, lançada por um simpático movimento de jovens que promovia a amizade e a fraternidade entre os povos : ‘Viva a gente’. Certamente alguns devem se lembrar. Falava das muitas pessoas que encontramos todas as manhãs indo trabalhar; dizia entre outras coisas : ‘Com mais gente/ A favor da gente/ Haveria menos gente difícil/ E mais gente com coração…’ e inspirava muito pensamentos sábios e positivos. Pensei muito nisso nos últimos anos, ao caminhar pelas ruas, encontrando tantas pessoas atarefadas e praticamente fechadas em si mesmas, e muitas outras com fios que saem pelas orelhas, completamente concentradas em seus celulares ou que falavam para o ar em  voz alta sabe lá com quem, sem considerar as pessoas que estavam no ônibus a poucos centímetros. Parecia-me que o prazer de olhar para os outros com benevolência e atenção estivesse se tornando mais raro e a intrusão cada vez mais penetrante das novas formas de comunicação na vida diária nos tornasse quase estranhos.

Depois de várias semanas fechado em casa sinto muita vontade de encontrar de novo pelas ruas muitos rostos diferentes. Espero que mais cedo ou mais tarde, no devido tempo, isso possa acontecer mesmo sem máscara e sem barreiras de acrílico, e espero poder trocar algumas palavras cordiais, ou mesmo um sorriso sincero. Muitos de nós nestes meses provaram com surpresa positiva as possibilidades oferecidas pela comunicação digital e esperamos que sejam uma riqueza também para o futuro, mas com a prolongação dos isolamentos entendemos que não bastam.

Como voltaremos a nos encontrar em um amanhã pelas ruas ou no metrô? Conseguiremos repovoar com serenidade os espaços comuns das nossas cidades? Seremos condicionados pelo medo e suspeita, ou com a ajuda da necessária sabedoria dos cientistas e governantes, saberemos equilibrar a justa prudência com a vontade de reencontrar e restabelecer a qualidade de convivência diária que – como dizíamos no início – ‘é a coisa mais importante do mundo’, a imagem do mundo humano? Nos daremos conta (mais ou menos do que antes?) que somos uma família humana que caminha na casa comum que é o nosso único planeta Terra?

Agora que a pandemia nos fez provar um aspecto problemático da globalização da qual todos devemos considerar no futuro, saberemos reencontrar o impulso da fraternidade entre os povos além e acima das fronteiras, a acolhida benévola e curiosa da diversidade, a esperança de viver juntos em um mundo de paz?

Como será conviver com o nosso corpo e como veremos o corpo dos outros? Como uma possível via de contágio, um risco ao qual devemos estar alertas, ou a expressão da alma de uma irmã ou de um irmão? Porque no fundo, este é o corpo humano : a manifestação concreta de uma alma – única, digna. Preciosa, criatura de Deus, imagem de Deus… Que maravilha o timbre da voz, o ritmo dos passos, sobretudo o sorriso das pessoas queridas!... E isso não deveria valer para todas as pessoas que encontramos? Então, recuperar a liberdade do coronavírus nos ajudará a nos livrar de outros vírus do corpo e da alma que nos impedem ver e encontrar o tesouro que está na alma do outro, ou nos tornaremos ainda mais individualistas?
  
A tecnologia digital pode mediar e acompanhar de modo útil nossa relação, porém a presença física e recíproca das pessoas, dos seus corpos como transparência das almas, a sua proximidade e o seu encontro, permanecem sendo o ponto de partida e de referência originário da nossa experiência e do nosso caminho. Jesus não foi uma manifestação virtual de Deus, mas a sua encarnação, para que pudéssemos encontrá-lo. E Jesus nos disse que Ele está presente e nos espera no outro, no pobre (e quem não é pobre de algum modo, o saiba ou não?), e que no rosto do outro podemos e devemos saber reconhecer o seu rosto.

Com que olhos, com que coração, com que sorriso voltaremos a caminhar pelas ruas e a cruzar o caminho de tantas pessoas, que mesmo aparentemente desconhecidas, no fundo, neste meses nos fizeram falta, e que como nós sentiram o desejo de nos encontrar de novo pelos caminhos diários de suas vidas, do nosso mundo comum?



Fonte :
* Artigo na íntegra

terça-feira, 11 de junho de 2019

O silêncio como um lugar de encontro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A prática espiritual mais básica talvez seja a de aprender o silêncio.
*Artigo de Carlos César Barbosa


‘O ruído constante é algo característico de nossa sociedade. Há barulho por toda a parte, sem interrupção. Nas ruas, nas casas, no comércio, nos transportes públicos... Nem as nossas Igrejas escapam. A teologia do espetáculo segue ganhando adeptos. Como Adélia Prado, poetisa mineira, as vezes a gente também sai da Igreja com vontade de procurar um lugar para rezar.

É fato que nos tornamos reféns do ruído. Nosso ritmo acelerado e quase sem limites não poucas vezes nos faz caminhar pela superfície da vida sem dedicar um justo tempo para cuidar do nosso interior. A constante ebulição em que vivemos afasta de nós a consciência de ter que dar atenção ao barulho que vem de dentro. Faz-nos falta parar em meio a tanta correria. Além de não ser fácil, pode soar estranho falar em parar ou fazer silêncio, sobretudo, quando a gente constata que estamos correndo a todo instante e sendo levados a acreditar que vale mais o que fazemos do que aquilo que realmente somos.

O silêncio e a solidão se tornaram experiências ameaçadoras. Talvez por que elas propiciam o encontro consigo mesmo, e isso assusta. Mas é libertador. Faz parte do amor próprio, sentir-se à vontade para estar só. Afinal, um grande mandamento é ‘amar o próximo como a si mesmo’ e quanto maior a dificuldade em amar a si, aceitar-se e estar bem consigo mesmo, maior será a dificuldade para amar, aceitar e estar bem com o próximo.

Desacelerar é um privilégio que deveríamos, de tempos em tempos, buscar. Silenciar é a oportunidade que nós temos de olhar por dentro. Mais ainda, significa sair do círculo perverso de viver sempre por fora de nós mesmos. Quem se esforça para buscar e cultivar o silêncio tem aí um lugar de encontro consigo e com Deus e, quanto mais fecundo este encontro, mais fecunda serão as nossas relações com os outros.

A prática espiritual mais básica talvez seja a de aprender o silêncio. Porém, mesmo sendo uma prática inicial e básica não significa que seja fácil. Silenciar é difícil. Por vezes, confuso. Por isso, é normal, ao se dispor entrar em silêncio, demorar um pouco para se situar. Afinal, é natural pensar nas infinitas coisas que precisam ser feitas em casa, no trabalho, nos estudos e, portanto, silenciar torna-se algo que requer de nós esforço e empenho. É preciso disciplina e coragem para atravessar todas as pequenas coisas que distraem as nossas mentes e os nossos corações. Aos poucos conseguiremos chegar a um silêncio profundo e produtivo. É um processo e o primeiro passo precisa ser dado.

Se olharmos para a vida Jesus, vemos que ele costumava passar as noites em oração, a sós, em diálogo com o Pai. Se quisermos compreender as palavras e os gestos de Jesus, de modo justo e profundo, teremos que adentrar também em seu silêncio e em seu recolhimento. Pois, Deus é aquele que está na palavra e no silêncio e esse é o seu segredo e o seu mistério.

Certamente, o silêncio para quem não sabe acolhê-lo pode ser constrangedor. Mas para quem se dispõe a encontrá-lo e cultivá-lo, pode se tornar eloquente. Por que não dispormos, então, ao silêncio? Por que não dar uma chance de estar a sós consigo mesmo? Por que não fazer do silêncio um lugar de encontro consigo e com Deus? Quando descemos ao mais profundo de nós, encontramos com nossa verdade última e, ao mesmo tempo, nos encontramos com Deus, pois, como afirmava Santo Agostinho, Deus é o mais íntimo que o mais íntimo de cada um de nós. Busquemos a ousadia do silêncio. Feito isso, nossas palavras e nossa voz farão cada vez mais eco e mais sentido.’


Fonte :

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A Conversão

Por Maria Vanda (Ir. Maria Silvia, Obl. OSB)

                                                           
 1. “A Pérola Preciosa”
 
                Fazei, ó meu Deus, que eu recorde e confesse, em ação de graças, as Vossas misericórdias para comigo! Permiti que os meus ossos se penetrem do Vosso amor e digam: "Senhor, quem é semelhante a Vos?"(1). Rompestes os meus grilhões e "ofertar-vos-ei um sacrifício de louvor"(2). Narrarei como os rompestes, e todos os que Vos adoram exclamarão: Bendito seja o Senhor no céu e na terra; o seu nome é grande e admirável" (3).

                As Vossas palavras tinahm-se gravado no íntimo do meu coração. Vós me cercáveis de todos os lados. Tinha a certeza de que a Vossa vida era eterna apesar de só a ter visto" em enigma e como num espelho"(4). Toda a dúvida sobre a substância incorruptível me fora resolvida, ao ver que dela provém toda a substância. Desejava.. não digo estar mais certo de Vós, mas mais firme em Vós. Tudo vacilava, porém na minha vida temporal e o meu coração precisava de ser limpo do antigo fermento. O verdadeiro caminho, que  é o Salvador, encantava-me, mas ainda me repugnava enveredar por seus estreitos desfiladeiros.
 
                Vós então me inspirastes a idéia- que, no meu conceito, julguei boa - de ir falar com Simpliciano (5),  que eu o tinha por um bom servo Vosso e em quem brilhava a Vossa graça.   Ouvira dizer. Além disso, que desde a juventude vivia devotamente para Vós.  Com efeito, já envelhecera, e, em tão longa idade, seguira sempre, com zelo ardente, o Vosso caminho.  Devia ser um homem muito experimentado e instruído. Assim era, na verdade. Queria por isso, falar com ele, das minhas inquietações, para que me descobrisse o modo de uma alma agitada como a minha adiantar no Vosso caminho.   
 
                Via cheia a Igreja. Uns caminhavam de uma maneira, outros de outra. Desagradava-me a vida que levava no mundo.  Era para mim de grande peso, agora que as paixões e a esperança de honra e dinheiro  já não me animavam, como de ordinário, a sofrer tão pesada servidão.  Sim, tudo isso já não me deleitava, em vista da Vossa doçura e da beleza da Vossa casa, que amei.  Mas ainda estava tenazmente ligado à mulher.  É certo que o Apóstolo não me  proibia casar, não obstante exortar-me a um estado melhor, porque queria ardentemente que todos os homens fossem como ele.  Eu, porém, demasiado fraco, escolhia o lugar  mais aprazível. Era só por isso que vivia de  hesitações em tudo o mais lânguido e enfermo por causa das preocupações enervantes, porque parecendo coagido a entregar-me à vida conjugal, via-me também obrigado a incumbir-me de novas obrigações que não queria suportar.
 
                Ouvira da boca da Verdade que “ existiam eunucos que a si próprios mutilaram por amor ao reino dos céus.  Mas Ela acrescenta: “ quem pode compreender, compreenda”(6).   “São vãos, por certo todos os homens  em quem não se acha a ciência de Deus, e que, pelos bens visíveis, não chegaram  a conhecer Aquele que é”(7).  Mas já não me encontrava naquela vaidade. Ultrapassara-a e, pelo testemunho de todas as criaturas, ó Criador nosso, Vos encontrara a Vós e ao Vosso Verbo que juntamente convosco é Deus, um só Deus, quem tudo criastes.
 
               Há outra espécie de ímpios que, “tendo conhecido a Deus, não O glorificaram nem lhe renderam graças”(8).  Tinha também caído neste pecado. “ A Vossa destra porém, amparou-me”(9)  e depois de me arrancardes de lá  me colocastes onde me restabelecesse, dizendo ao homem: “ a piedade é sabedoria”(10), não queirais parecer sábios, porque os que se dizem sábios tornam-se insensatos”(11). Já encontrara pérolas preciosas que devia comprar, depois de vender tudo o que possuía. Mas duvidava ainda.
    
       
Fonte :
PENSAMENTO HUMANO -  Confissões - Santo Agostinho - Ed. Universitária São Francisco  23a. Ed.  Cap.  VIII