Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Padre Rodrigo Ferreira da Costa, SDN,
pároco de Santa Luzia, PI
‘Nos
momentos de crise e desespero, quase sempre procuramos nos apegar a
experiências, ideias ou conceitos do passado que nos deem alguma segurança no
tempo presente. Na espiritualidade não é muito diferente. Muitas vezes, temos a
tentação de ‘copiar’ modelos de espiritualidade de outros tempos,
transpondo-os à nossa contemporaneidade. Porém, uma espiritualidade ‘plagiada’
é como colocar remendo novo em roupa velha (cf. Mt 9, 16), além de não
responder às perguntas mais profundas do homem de hoje, ainda proporciona
muitas vezes uma ‘esquizofrenia espiritual’, pois parece que a pessoa
não se vê inteira na sua experiência de fé. ‘Há testemunhos que são úteis
para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso
poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs
para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à
luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor
12, 7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele.
Pois a vida divina comunica-se a uns duma maneira e a outros doutra’ (Papa
Francisco, GE, n. 11).
Susan
Sontag, em seu ensaio intitulado A estética do silêncio, afirma
que ‘cada época deve reinventar para si um projeto de espiritualidade’,
ou seja, a cada época somos desafiados a encontrar uma nova gramática
sapiencial que seja capaz de responder às perguntas mais profundas do existir
humano. Isso não significa perder a memória da fé ou cortar o fio da Tradição
que nos liga à experiência do povo de Deus ao logo da história, mas de
encontrar uma nova hermenêutica, uma nova linguagem, capaz de anunciar um Deus
que seja digno de fé em nossos tempos.
O
ensaísta e poeta português, José Tolentino Mendonça, em sua obra A
mística do instante, fala de uma espiritualidade do tempo presente que
esteja integrada com todo o nosso ser. Uma espiritualidade que passa pelos
sentidos, que redescubra o corpo como a língua materna de Deus,
pois ‘há mais espiritualidade no nosso corpo que na nossa melhor teologia’,
afirma. Reconciliar, pois, a espiritualidade com os nossos sentidos não é algo
estranho à experiência cristã que confessa a fé num Deus criador que sopra seu ‘hálito
vital’ sobre o ser humano e, ainda mais, num Deus que se encarna, assumindo
a nossa condição humana, fazendo da ‘carne o eixo da salvação’
(Tertuliano).
Essa
espiritualidade em paz com os sentidos, que escuta a linguagem do corpo, que
toca a nossa condição humana, é uma espiritualidade reconciliada com o tempo. E
quando nos entregamos ao ritmo do tempo, descobrimos ‘que para amar a Deus
sobre a terra, não temos nada além do hoje’ (Santa Teresa de Lisieux). Por
isso, não sentimos o tempo como um tirano, ao qual devemos servir como
escravos, mas uma dádiva, ao nosso serviço. ‘A mística do instante nos
reenvia, assim, para o interior de uma existência autêntica, ensinando a
tornarmo-nos realmente presentes : a ver em cada fragmento o
infinito, a ouvir o mergulhar da eternidade em cada som, a tocar o
impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplêndido
banquete daquilo que é ligeiro e escasso, a inebriar-nos com o odor da
flor sempre nova do instante’ (MENDONÇA, 2016, p. 36).
Outro
aspecto importante dessa espiritualidade integradora é passarmos de uma religiosidade
natural que nos remete para o divino através da necessidade, para uma
espiritualidade que aceita a vulnerabilidade de Deus, uma
espiritualidade pautada numa relação de gratuidade com Deus. ‘A
religiosidade natural do homem remete-o para o divino através da necessidade :
o homem precisa de um Deus que lhe seja útil, que tenha poder no mundo que lhe
proteja. Rapidamente, Deus, torna-se um ídolo, que serve para garantir-nos um
funcionamento favorável do grande sistema do mundo’ (José Tolentino
Mendonça). Há, pois, que se descobrir o rosto do Deus bíblico que se humilha
para estar junto com o contrito e o humilde (cf. Is 57,15), um Deus inútil, um
Deus revelado no extremo do abandono e da fragilidade do seu Messias.
Quiçá,
o grande desafio da espiritualidade hoje seja experimentar e anunciar esse Deus
‘inútil’. Este Deus que não se impõe pela força e poder privando o ser
humano da sua liberdade e responsabilidade em optar-se por Deus; nem tampouco
se resume numa simples proposição, a partir da qual o ser humano, pela sua
inteligência e vontade, responde positivamente a este chamado, mas um
Deus exposto, gratuito, que ama desesperadamente.
Assim
sendo, a experiência mais profunda de uma espiritualidade do tempo presente não
se resume na heteronomia de Deus que se impõe a partir de uma
lei externa a nós, nem tampouco numa autonomia na qual Deus se
propõe e nós respondemos racionalmente em nossa liberdade, inteligência e
vontade. Mas na alteronomia de um Deus que se expõe na
desmesura do amor, que se deixa afetar pelo rosto humano, um Deus kenótico (cf.
Ex 3,7-8; Fl 2, 1-11).
Quando
contemplamos a cena da crucifixão de Jesus, percebemos essa extrema fragilidade
de um Deus que é ‘incapaz’ de salvar-se a si mesmo. Os que assistiam a
crucifixão de Jesus zombavam dele dizendo : ‘A outros ele salvou, a si mesmo
não pode salvar! É Rei de Israel : desça agora da cruz, e acreditaremos nele. Confiou
em Deus; que o livre agora, se é que o ama!’ (Mt 27,42-43), é que eles não
compreendiam que ser Messias é dar a vida pelo outros. Neste sentido, a cruz de
Cristo e os crucificados da história que ‘completam o que faltou no
sofrimento de Cristo’ (Cl 1,24) são o fundamento último dessa
espiritualidade da gratuidade, da ‘inutilidade’, a qual aceita o
silêncio, as surpresas e até a ausência de Deus.
Noutras
palavras, uma autêntica espiritualidade para o nosso tempo não pode ser ‘analfabeta
sensorial’ nem tampouco manter-se longe das angústias e do sofrimento dos
homens e mulheres. Pelo contrário, precisamos encontrar Deus ‘até mesmo na
cozinha, entre as caçarolas’ (Santa Teresa) e aprender a tocar as ‘chagas
de Cristo na carne sofredora do outro’. Do contrário, a nossa fé será vazia
de sentido e a palavra ‘Deus’ tornar-se-á um ídolo sem nenhuma eficácia
em nossa existência.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1459986/2020/07/que-deus-e-digno-de-fe-em-nossos-tempos/
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