Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de
Imprensa da Santa Sé
‘‘Ah,
mas Francisco foca muito no social’. Quem afirma isso, em tom meio
pejorativo, ignora que, na história do catolicismo, o papa é filho de seu
tempo. O Jorge Bergoglio que caminhava pelas ruas de Buenos Aires, é o mesmo
que pisa os ‘san petrini’ – o calçamento – da praça de São Pedro hoje. A
diferença é que ele mudou de nome justamente para evidenciar a sua missão, como
todo papa faz.
Na
noite chuvosa de 13 de março de 2013, muitos ficaram atônitos ao ouvirem o
nome Francisco. A frase ‘qui sibi nomen imposuit Franciscum’
– do latim, ‘que assumiu o nome Francisco’ –, pronunciada pelo cardeal
francês Jean Louis Tauran, naquele dia, causou uma grande revolução.
Francisco
se tornou o primeiro sumo pontífice da história a escolher um nome inspirado no
santo de Assis. E um dos poucos a trazer para o título pontifício um religioso
que sequer foi ordenado sacerdote. Um nome que facilmente se transforma em ‘Chico’,
após duas doses de café e prosa. Por trás do nome, a renúncia às pompas, a
adesão a um estilo de vida e um programa de governo. O ‘Chico’ que
assumiu cátedra de Pedro para mostrar ao mundo que, no reino das imagens, os
gestos, sim, fazem toda a diferença.
Eu,
que estava na praça de São Pedro naquele dia, percebi o desconforto de muitas
pessoas acostumadas com Gregórios, Clementes, Joãos e Leões. É isso mesmo : vi,
diante dos meus olhos, o quanto a simplicidade ainda choca, como nos tempos de
Francisco de Assis. Mal sabiam elas que o mundo precisava de Francisco. E os
católicos, mais que ninguém, precisavam desempoeirar as páginas do compêndio da
Doutrina Social da Igreja – o manual de conduta social de todo católico.
Enquanto isso, o livro segue guardado nas gavetas do esquecimento de muitos,
que estão mais preocupados em decorar documentos pontifícios para condenar seus
pares.
Ao
longo da história da Igreja tivemos papas humanistas, canonistas, filósofos,
teólogos e monges. Como também tivemos papas brilhantes que foram ofuscados
pelos feitos dos papas mais famosos e mais ‘publicizados’. É o caso de
Gregório XVI, o único papa que condenou abertamente a escravidão. Ou de Bento
XV, que interpretou a primeira guerra mundial como uma ‘tragédia inútil’,
e pareceu ‘subversivo’ demais aos olhos das grandes potências
imperialistas. Em ambos os casos, eles não tiveram medo de lutar contra o
sistema. E, consequentemente, foram rejeitados por seus contemporâneos,
inclusive pelos católicos.
É
importante refletirmos sobre as origens do papa atual. E como a presença de um
papa extra-europeu, por si só, redimensiona a missão do papado, até do ponto de
vista geopolítico. Francisco provém da região com maior desigualdade de renda
do mundo, e não deveria nos surpreender essa insistência em tratar esse tipo de
assunto. O tema em questão, talvez fosse tratado de maneira mais superficial
por um papa do velho mundo. E não seria por culpa deles, certamente.
‘Tanto
é vero’, que foi justamente Paulo VI a declarar que ‘a Igreja é expert em
humanidade’ com toda a convicção, haja visto que ele foi o primeiro sumo
pontífice a visitar outros países; e a entrar em contato, ainda que
minimamente, com a realidade de outros povos. A sua encíclica social famosa,
a Populorum progressio, por exemplo, pede um reequilíbrio das
riquezas e dos recursos mundiais em benefício dos países mais pobres. O
documento é fruto de suas viagens à América Latina e à África – este último, um
continente arrasado, em grande parte, pela ganância europeia. E é ele mesmo a
confirmar essa visão mais ‘ampliada’ da Igreja, no tocante às questões
sociais, em meados da década de 60 :
‘Depois
do Concílio Ecumênico Vaticano II, uma renovada conscientização das exigências
da mensagem evangélica traz à Igreja a obrigação de se pôr ao serviço dos
homens, para os ajudar a aprofundarem todas as dimensões de tão grave problema
e para os convencer da urgência de uma ação solidária neste virar decisivo da
história da humanidade’, disse.
É
por isso que cada pontífice, inevitavelmente, escolhe a via ‘da sua
especialidade’. O que é positivo, justamente porque o catolicismo engloba,
através da sua mensagem, todos os aspectos da vida humana. E, em cada período,
é eleito o bispo de Roma que mais se adequa às exigências do presente, na
avaliação dos cardeais eleitores. E não lhe é pedido, em nenhum momento, que
renuncie à própria personalidade e a seus ‘costumes’ pastorais.
Portanto,
é irracional a exigência de que o papa deva corresponder a uma lista de
requisitos ‘temáticos’ pré-estabelecidos. E quem espera isso, não
compreendeu que o papado é uma instituição dinâmica, que permite àquele que
assume o seu governo, uma certa ‘liberdade de cátedra’ no tocante ao
estilo. João XXIII e Paulo VI, por exemplo, fizeram uso de todas as suas
aptidões diplomáticas, acumuladas ao longo de suas carreiras pregressas. Não
por acaso, puseram a Igreja nos trilhos do diálogo através do Concílio Vaticano
II. Bento XVI, por sua vez, assumiu, com toda sua bagagem teológica, a missão
de demonstrar que cristianismo jamais esteve alheio à essa relação intrínseca
entre razão e fé.
Em
entrevista ao padre jesuíta Antonio Spadaro, logo no início do pontificado, em
2013, Francisco foi enfático ao dizer que a Igreja deve, sim, focar em outras
questões.
‘Não
podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento
homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei
muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é
necessário falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu
sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente’,
ressaltou o pontífice.
Muitos
se espantaram com essa fala de Francisco. E, posteriormente, aqueles que o
criticaram, ignoraram as ocasiões nas quais ele reforçou o pensamento da Igreja
em relação aos temas da ‘cartilha’. Se fosse outro papa mais ‘adequado’,
segundo seus próprios parâmetros ideológicos, certamente estariam de prontos
para saírem, aos gritos, em sua defesa. São os grupos do ‘papado à la
carte’, que por causa de suas paixões político-partidárias, promovem um
desinteresse coletivo em relação aos conteúdos produzidos pelo atual
magistério. Tudo arquitetado. Afinal, parece que há católicos mais preocupados
em canonizar o neoliberalismo que em defender a própria doutrina da Igreja.
Outro
elemento que deve ser levado em consideração é que tanto Bento XVI, quanto
Francisco, foram eleitos em idade avançada. Portanto, a tendência é a de adotar
uma linha mais focada em temas específicos, em correspondência às ‘lacunas
involuntárias’ deixadas pelos pontificados anteriores. E isso acontece ao
longo de toda a história da Igreja : basta dedicar-se a estudá-la.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1458851/2020/07/o-papa-ideal-o-reinante/
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