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domingo, 12 de fevereiro de 2023

Dom Catelan: A herança litúrgica do Papa Bento XVI

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira,

Bispo auxiliar do Rio de Janeiro, RJ

 

A liturgia é um dos temas mais caros ao Papa Bento XVI. Ele dedicou-lhe muita atenção e reflexão, tanto em sua produção teológica pessoal, como em seu Magistério Pontifício.

A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada principalmente por duas obras : A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia : uma introdução (2000). Na coleção que reúne sua produção teológica, o volume 11 recolhe diversos artigos, conferências, apresentações e homilias sobre o tema. Na língua original soma 757 páginas (Herder, 2008), na tradução brasileira (Ed. CNBB, 2ª edição revisada, 2019) soma 751).

O texto em que ele desenvolve seu pensamento de modo mais sistemático e completo é do ano 2000. O título da obra se assemelha muito ao do livro de um de seus autores favoritos, Romano Guardini, O Espírito da Liturgia, publicado em 1918. Com isso ele indica que pretende retomar aspectos de uma corrente do Movimento Litúrgico que não receberam a mesma atenção no caminho da liturgia ao longo do Século XX. A história da liturgia e de seus principais elementos é apresentada na perspectiva da continuidade fundamental e o que se assemelha a rupturas ele demonstra serem evoluções necessárias do fundamento posto por Deus desde o ato criador do cosmos. Essa perspectiva se manifesta já na relação entre o Antigo e o Novo Testamento.

Nesse libro, o estudo dos fundamentos bíblicos da liturgia recebe atenção primorosa. Dialoga com os autores das principais pesquisas e as passa em resenha para discutir as ideias principais ou mais difundidas. Dá grande atenção ao desenvolvimento da liturgia ao longo da história da Igreja, em perspectiva de crescimento orgânico, vital, sem rupturas bruscas. Destaca-se sua exposição sobre o significado da participação ativa de todos os fiéis nas celebrações : trata-se não simplesmente de fazer ou dizer coisas, mas de tomar parte na ação fundamental, que é realizada por Cristo através de sua Igreja. Os fiéis não são meros expectadores, tomam realmente parte no ato de culto, suas ações exteriores são extremamente importantes. Bastaria, para compreender a importância que J. Ratzinger atribui a elas, a leitura do capítulo quarto desse livro, a respeito da forma litúrgica, onde trata do significado espiritual do rito, do corpo com suas posições e gestos, da voz, da veste e da matéria que entra no ato de culto.

Em seu Magistério Pontifício, destacam-se duas exortações apostólicas e uma carta apostólica. Os textos maiores, as exortações apostólicas, são : Sacramentum Caritatis (2007) e Verbum Domini (2010). No primeiro, a opção por apresentar a Eucaristia a partir da fé, da celebração e da vida, assume a perspectiva mistagógica. Essa perspectiva caracteriza grande parte de suas homilias sobre temas litúrgicos. Destacam-se as proferidas por ocasião das celebrações anuais da Missa Crismal (manhã de Quinta-Feira Santa), dos Batismos celebrados na Festa do Batismo do Senhor e das Ordenações. Sua compreensão da mistagogia se encontra no magnífico número 64 dessa exortação. Ele considera que essa é a forma fundamental da formação liturgia, formar pela liturgia mais que para ela (embora valorize muito também essa modalidade). Não menos importante é a noção de culto espiritual que se encontra no número 70, que exprime como o mistério crido e celebrado se torna ‘princípio da vida nova’ e ‘forma da existência cristã’.

A exortação apostólica Verbum Domini trata da Palavra de Deus de modo geral, mas dedica os números 52 a 71 à Palavra de Deus na liturgia. Entre a compreensão do significado teológico da Palavra de Deus, sua difusão pastoral e a atuação da Igreja no mundo consequente à fé, está, como a fazer conexão e transição, a Palavra na celebração. Aí se destaca a noção de sacramentalidade da Palavra (n. 56). Primeira vez que essa expressão ocorre em um documento pontifício, ocasionou muitos estudos e publicações. Em analogia (comparação que leva em conta semelhanças e diferenças) com a encarnação do Filho de Deus e com os sacramentos, ele expõe a eficácia da Palavra, que produz em nós o que significa. Destaca-se a analogia com a presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia, pois em sua Palavra ele está realmente presente e se dirige a nós, o que tem consequências para a vida espiritual dos fiéis e para a vida pastoral da Igreja.

Por fim, a carta apostólica (motu proprioSummorum Pontificum (2007), trata do uso da liturgia romana anterior à reforma litúrgica de 1970. Levando em conta o impulso da liturgia para a vida espiritual, para o fortalecimento da religião e da piedade do povo cristão, dá continuidade a ações de seu predecessor, São João Paulo II, que permitiram cada vez mais ampla e facilmente o uso da edição do Missal de 1962. Na introdução aos 12 artigos, demonstra que a coexistência dos dois Missais e dos dois rituais (o da forma típica reformada e o anterior, compreendido como forma extraordinária) não fere a concordância que deve haver entre as Igrejas particulares e a Igreja universal quanto à doutrina da fé, aos sinais sacramentais e aos usos universalmente aceitos. Também não põe em risco a correspondência entre a regra da oração e a regra da fé na Igreja (Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed. típica, n. 397). Isso porque na liturgia há crescimento e progresso, mas na continuidade, sem rupturas. Juntamente com a carta apostólica, escreve uma Carta aos Bispos no qual pede generosidade com relação aos grupos que solicitam celebrações na forma extraordinária como também prudência no acompanhamento, pois ‘não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados à atitude dos fiéis ligados à antiga tradição latina’ (Carta).

Talvez mais até do que o aspecto doutrinal do Magistério litúrgico de Bento XVI, sua forma de celebrar e de pregar durante as celebrações sejam o aspecto mais precioso de seu legado. Ele viveu o que ensinou : ‘a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada’ (Sacramentum Veritatis, 64).’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-02/dom-catelan-heranca-liturgica-papa-bento-xvi.html

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Bento XVI: "Tudo se desmorona se falta a verdade"

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Élio Gasda


O Papa mais longevo da história da Igreja renunciou em 2013 alegando ‘incapacidade de administrar bem o ministério’. Como bispo emérito da Diocese de Roma, viveu seus últimos dias em um mosteiro, onde faleceu em 31 de dezembro de 2022. O último pontífice a renunciar foi Gregório XII, em 1415.

Para Bento XVI, ‘no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem’ por isso seu lema : Colaborador da Verdade. 

Foram três encíclicas : Deus Caritas Est, Spe salvi. Caritas in Veritate (CV) é sua encíclica social sobre o ‘desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade’. Foi publicada em 2009, com dois anos de atraso, devido à crise econômica que explodiu em 2007. A mais grave desde 1929, começou nos Estados Unidos e se alastrou pelo mundo, derrubou governos, gerou elevadas taxas de desemprego, aumento dos preços e a fome em todo planeta. ‘A fome ceifa a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão’ (CV 27). A reforma agrária, o acesso à alimentação e à água como direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações são urgências (CV 27). Em pleno século XXI, ‘dar de comer aos famintos é um imperativo ético de Jesus. Eliminar a fome tornou-se um objetivo para paz e a vida na terra’ (CV 27).

Caritas in Veritate, dividida em sete capítulos e conclusão, recebeu muitas reações. Esquerdista! Socialista! Bradaram os capitalistas neoliberais. Será que realmente leram o texto de quase 130 páginas contendo 159 notas, escrito em latim por um teólogo alemão?

Ratzinger reserva o primeiro capítulo da CV à releitura da Populorum Progressio (PP) de Paulo VI. Escrita em 1967, é uma profunda reflexão sobre o desenvolvimento humano. ‘Deesenvolvimento não se reduz a simples crescimento econômico. O desenvolvimento somente é moral quando promove a todas as pessoas’ (PP 14). Para que os seres humanos possam ser cada mais humanos é preciso passar de ‘condições de vida menos humanas a condições de vida mais humanas’ (PP 20).

Como teólogo, Bento XVI foi ao essencial da fé : ‘A experiência de Deus leva a reconhecer no outro a imagem divina e a viver um amor que se torna cuidado do outro e pelo outro’ (CV 11). ‘Amor eterno e Verdade absoluta - constituem ‘a principal força propulsora para o autêntico desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade’ (CV 1). Esta vinculação desautoriza o assistencialismo descomprometido que não transforma a realidade (CV 4). A Caridade informada pela Verdade será sempre libertadora (CV 5).

A Verdade tem seu maior inimigo na mentira. Se verdade é o caminho da vida, a mentira leva à morte. O principal confronto de Jesus é com a mentira que mata (Jo 8,44-45). Matar a verdade leva a matar seres humanos (Jo 19,5). É preciso denunciar as políticas, as ideologias e os sistemas alicerçados na mentira.

A Doutrina Social da Igreja é expressão do amor ao próximo vinculado à Verdade (CV 2). Amor, Verdade e Justiça constituem uma unidade em Deus. A caridade exige a justiça : ‘O amor - caritas - é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz (CV 1). O amor ganha forma operativa na justiça como critério orientador da ação política que busca o bem comum (CV 6).

Toda a sociedade deve estar fundada no direito e na justiça. A justiça é medida e virtude que deve orientar a vida social e política. Sua concreção em estruturas sociais e estatais é competência da política. Mas cabe aos cristãos contribuir na formação da consciência ética fundada na justiça (CV 7). Querer o bem comum e trabalhar por ele é uma exigência de justiça e de caridade. Isso implica ‘valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade’ (CV 7).

Toda pessoa é chamada a entrar em comunhão fraterna na sociedade civil, na economia e na política (CV 2). Tolerar a injustiça é tolerar o sofrimento humano. O dever moral para com os que sofrem é dever de justiça.

Bento XVI confirma a Igreja como advogada da justiça e defensora dos Lázaros que morrem de fome às portas dos ricos (CV 27). A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica (Bento XVI).

‘Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa’ (CV 1). Dar de comer a quem tem fome é revelar o rosto da Verdade que liberta!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598952

sábado, 21 de janeiro de 2023

Livro: “Deus é sempre novo", a espiritualidade de Bento XVI

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Eugenio Bonanata

Para chegar ao coração e a mente do leitor como uma centelha. Este é o objetivo do livro ‘Deus é sempre novo’, recém publicado pela Libreria Editrice Vaticana. ‘É a síntese do pensamento e do trabalho de uma testemunha credível que ao longo de sua vida se colocou a serviço da Igreja’, afirma o editor do livro Luca Caruso, falando da importância de alimentar a reflexão sobre a busca do rosto de Deus.

Teologia ‘de joelhos’

Um caminho que marcou a existência de Bento XVI, como confirmam seus textos no volume. Homilias, catequeses e discursos que, segundo Caruso, mostram um elemento comum : ‘A vontade e o desejo de compartilhar este precioso tesouro que ele encontrou no estudo e na oração’. Os horizontes abertos por esta síntese espiritual de Bento XVI são infinitos.  ‘Ratzinger é o mestre da fé que se dirige ao povo de Deus’, enfatiza o editor, esperando que o livro ajude a encontrar respostas para as questões da modernidade. ‘Bento XVI fazia teologia de joelhos’, escreve o Papa Francisco no prefácio, recordando precisamente esta proximidade com a dimensão contemporânea.

Um tesouro a ser redescoberto

‘Foi como entrar numa ampla clareira’, diz Caruso sobre o trabalho de pesquisa : ‘O Magistério de Bento XVI está verdadeiramente repleto de tesouros a serem redescobertos’. Fala-se das virtudes teologais, da família, da oração, da alegria. Mas também da combinação de fé e razão como uma estrutura narrativa para recontar a força e a relevância do Evangelho. ‘Nisto’, continua Caruso, ‘ecoa o que foi dito na Encíclica Fides e ratio de João Paulo II : fé e razão como as duas asas com as quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade’.

Arte e beleza

Um passo fundamental é representado pela beleza - que se concretiza na arte - como uma forma privilegiada de encontrar Deus. O Papa Francisco também lembra isso no prefácio, recordando implicitamente outros pontífices do século XX : desde Pio XII, que em 1953 instituiu a Missa dos artistas na Basílica de Santa Maria em Montesanto em Roma, até Paulo VI, que se encontrou várias vezes com artistas na Capela Sistina, inspirando seus sucessores a celebrar esta ocasião. ‘Com Papa Bento XVI’, aponta Caruso, ‘há um convite para seguir o caminho da beleza que nos permite aproximar-nos do eterno e assim acolher a própria beleza de Deus’.

Pequenas peças no grande mosaico da história

Indicações ao alcance de todos, assim como o chamado à santidade, que diz respeito a cada batizado e nada tem a ver com super poderes e outras coisas extraordinárias. O Papa Bento XVI, explica Caruso, reiterou isto por ocasião do Dia Mundial da Juventude em Colônia, onde os Reis Magos estão enterrados. ‘Identificou precisamente os Magos como aqueles que estão à frente de uma procissão sem limites que transcende épocas e fronteiras e avança em direção ao absoluto de Deus’. Um convite dirigido a cada um de nós : ‘Ser como pequenas peças no grande mosaico da história que’, conclui Caruso, ‘será, em última análise, a face de Deus, que é uma face de misericórdia e de esperança’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-01/livro-bento-xvi-deus-e-sempre-novo-espiritualidade.html

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Bento XVI: As surpresas de um papa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Maria Clara Bingemer,

teóloga


Talvez seja um pouco tardia esta reflexão sobre o Papa Bento XVI já mais de dez dias após sua morte.  Outras preocupações tomam o lugar do tempo do luto mais próximo do falecimento do pontífice que governou a Igreja Católica por oito anos e depois permaneceu em Roma como Papa Emérito até o último dia 31 de dezembro de 2022.  O cenário nacional fervilha com as últimas ameaças à democracia e parece não haver outro assunto.  No entanto, me parece que a figura do falecido é por demais importante para não trazer alguma reflexão sobre sua pessoa.

Por isso mesmo, porque tantas coisas importantes – positivas e críticas – foram ditas e escritas, atenho-me ao que foi essencial de meu contato com o teólogo Ratzinger, em cujos livros li e estudei durante minha graduação em Teologia, e com aquele que se tornou sucessor de João Paulo II em 2005.  

Quando foi anunciada sua eleição pelo cardeal camerlengo em 2005, confesso que tinha sentimentos não muito claros por dentro. Por um lado, compreendia que o conclave o tivesse eleito, era o colaborador mais próximo do papa polonês, o teólogo e pensador refinado, o homem culto que presidia a Pontifícia Comissão para a Doutrina da Fé.  No entanto, pude conhecer de perto igualmente sua atuação à frente desta comissão e minha impressão era de uma certa perplexidade diante de algumas punições e restrições impostas a teólogos que eu conhecia bem de perto e cuja fé profunda e o rigor teológico admirava. Os dois lados se fizeram sentir naquele momento em que a Igreja, após 26 anos do governo de João Paulo II, esperava ventos novos.

Dos oito anos em  que reinou Bento XVI lembro-me de vários momentos em que surpreendeu positivamente: a reconciliação com a Companhia de Jesus, que havia recebido intervenção do antecessor João Paulo II, coisa que tanto fizera sofrer o querido padre Arrupe; o belo texto da primeira encíclica, Deus caritas est, onde o intelectual refinado que era Bento XVI não temia dialogar inclusive com Nietzche, o filósofo tão crítico do cristianismo; a oração pungente em Auschwitz que se lançava de encontro ao silêncio de Deus. Haveria outras, muitas mais a mencionar.

Desejo destacar duas ocasiões que me parecem centrais para compreender por que vejo Bento XVI como alguém surpreendente.

A primeira foi sua vinda ao Brasil para abrir a Conferência de Aparecida, em 2007.  Havia um ambiente de desconforto e temor entre muitos que trabalhavam e participavam do evento.  A Conferência de Santo Domingo, em 1992, havia sido difícil e penosa.  O documento final quase não foi escrito e divulgado.  Graças a circunstâncias várias, entre elas o gênio e a santidade de Dom Luciano Mendes de Almeida, houve um documento com pontos positivos, mas que parecia não levar em conta o sopro profético das conferências de Medellín e Puebla, como a centralidade da opção pelos pobres. Temia-se o que poderia dizer Bento XVI. Se o Papa, no discurso de abertura, pronunciasse uma clara condenação da teologia da libertação, que tinha como centro a opção pelos pobres, seria realmente muito triste para a caminhada da Igreja latino-americana.

O Papa falou.  Declarou que a fé nos liberta do isolamento e nos conduz à comunhão com Deus e com os irmãos, implicando responsabilidade para com o outro.  E continuou. Cito literalmente pela importância que reside nesta frase que mudou completamente o panorama da V Conferência, em Aparecida : ‘Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).’

A partir daquele momento encerravam-se as discussões sobre se a opção pelos pobres seria realmente teológica ou, ao contrário, apenas um subproduto de um marxismo mal compreendido.

A alguns não caiu bem a afirmação do Papa. Chegaram a retirar-se da conferência.   Para muitos de nós que ali estávamos foi uma lufada de ar fresco e uma injeção de ânimo. Aparecida retomou a questão dos pobres, dando-lhe a centralidade devida, e produziu um documento que voltava a trazer esperança para a Igreja do continente.

Em 2012, encontrava-me em Chicago conversando com o grande amigo e teólogo maior David Tracy.  Meio abruptamente ele me perguntou : ‘Você acha que o Papa vai renunciar?’  Surpreendida, disse que jamais havia passado por minha cabeça esta ideia.  David me explicou o porquê de suas suspeitas e sua argumentação não me convenceu.   De Chicago viajei a Roma. Fora convidada a apresentar, ao lado do Cardeal Ravasi e de outros teólogos e editores, o livro de Bento XVI sobre a Infância de Jesus.  Após a apresentação, fomos todos  cumprimentar o autor.  Bento XVI nos recebeu sorridente e alegre com o lançamento do livro.  Ao cumprimentá-lo disse-lhe, referindo-me à Jornada Mundial da Juventude que teria lugar no Rio de Janeiro, em julho de 2013 : ‘Nós o esperamos no próximo ano, no Rio.’  Ao que ele respondeu com um meio sorriso : ‘Se Deus me der saúde...’

No dia 8 de fevereiro de 2013, uma jornalista da Globo News me chamou ao telefone às 8 horas da manhã.  Era segunda feira de Carnaval.  Ouvi do outro lado a seguinte pergunta : ‘Professora, pode falar algo sobre a renúncia do Papa?’ A notícia me deixou perplexa.  Pedi uma hora para inteirar-me e liguei a televisão.  Os olhos do mundo inteiro estavam voltados para Roma e o gesto histórico da renúncia do Pontífice.

O resto é história. O papa Ratzinger explicou ao mundo as razões de sua renúncia.  À medida que o ouvia e lia, sentia crescendo em mim, juntamente com a surpresa, admiração por ele.  É muito difícil retirar-se quando se vê que chegou o momento. O papa bávaro o fez com elegância e firmeza.

Seu corajoso gesto abriu o caminho para a primavera de Francisco, iniciada pouco mais de um mês depois, em 13 de março de 2013. Este segue o caminho das surpresas, embora de forma bem diferente de seu antecessor. Que o Papa Bento descanse em paz e Francisco continue nos surpreendendo ainda por bastante tempo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598687

domingo, 15 de janeiro de 2023

E Francisco após a morte de Bento XVI?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Francisco reza diante de caixão de Bento XVI após funeral do dia 5 de janeiro de 2023 | AFP 

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


O que muda com a morte de Bento XVI? Há um impacto real sobre o pontificado de Francisco? Trata-se de uma página virada na história da Igreja que esconde incertezas sobre o futuro?

Esses foram os questionamentos feitos por algumas pessoas logo após a notícia do falecimento do papa emérito, ocorrido no último dia 31. O problema é que, do ponto de vista histórico, a renúncia de Ratzinger já havia sido vetor de uma revolução sem precedentes, não o seu falecimento em si.

E vou explicar o porquê.

Como sabemos, Bento XVI não foi o primeiro pontífice da história a abdicar. Ao menos desde o século I há registros de demissões do ministério petrino (livres ou forçadas). Papa Clemente (o quarto bispo de Roma), que foi exilado, deixou cargo em favor de Evaristo, de modo que a comunidade cristã não ficasse desamparada.

A diferença é que Papa Ratzinger instaurou uma instituição chamada ‘papado emérito’, cuja regulamentação os canonistas aguardam que se efetive para possibilitar que outros papas, que queiram dar esse passo, sejam amparados por uma legislação clara.

No entanto, Francisco sinalizou que não pretende, durante seu governo, mexer no que aí está. A afirmação foi feita durante entrevista concedida à ABC da Espanha, publicada no mês passado.

‘Não toquei em nada nem tive a ideia de fazê-lo. Talvez o Espírito Santo não queira que eu me preocupe com essas coisas’, ressaltou.

E foi nessa resposta que Francisco instaurou um clima de incerteza tanto em relação a uma eventual renúncia quanto aos critérios que ele mesmo estabeleceu para executá-la no futuro. Muito embora o papa argentino tenha declarado, também nesta entrevista, que já havia assinado sua carta de renúncia em 2013, repetindo o gesto de seus antecessores Pio XII e Paulo VI, tal oficialização, na prática, quer dizer muito pouco. Pacelli e Montini, que fizeram o mesmo, permaneceram no cargo até a morte.

Ou seja, isso não quer dizer que Francisco, com isso, dá por certa sua saída do papado ‘por vias não convencionais’. Mas pode estar ‘jogando’ com essa afirmação, à diferença dos outros dois que citamos, cuja intenção foi guardada a sete chaves e só foi revelada anos após a morte de ambos.

Nesses dois casos precedentes, caso qualquer informação vazasse, impactaria na estabilidade do próprio papado. Um foi papa em meio à Segunda Guerra Mundial. O outro, por sua vez, teve a incumbência de colocar em prática o Concílio Vaticano II e lidar com todas as resistências que se levantaram contra aquele novo modelo de Igreja. Mostrar-se ‘enfraquecido’, em tais contextos, estava fora de cogitação.

Diferente de Bento XVI, Francisco, em suas declarações, esconde grandes trunfos. Ele sabe que muitos, dentro da própria Cúria Romana, o apoiam por conveniência.

Por isso, para ele, é interessante observar, do alto da sua cátedra, como seus colaboradores se movem nesse ‘pré-conclave’.

Francisco é um grande estrategista, no sentido mais nobre do termo. Ele executa um programa de governo capaz de impactar para além dos muros da Igreja. Por isso mesmo, ser reconhecido como líder global por setores que sequer estão ligados à estrutura eclesial é um dado de fato.

Talvez, com isso, ele queira sentir como o colégio cardinalício prepara o terreno para o seu sucessor uma vez que ele, mais que ninguém, não quer que seu substituto decline seu projeto de reforma. Neste caso, mostrar-se enfraquecido e às portas de jogar tudo para o alto, esconde mais vantagens que desvantagens para ele. E ele o faz visando o bem da própria instituição, para que ela não caia nas mãos da ‘corte do retrocesso’ onde um ‘clero nobre’, que se coloca acima do bem e do mal, governa para mas servir aos próprios interesses.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598516

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Ratzinger e o Concílio Vaticano II

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Assinatura da Bula de convocação do Concílio Vaticano II, em 25 de dezembro de 1961  (Archivio Fotografico Vatican Media)
 

*Artigo de Jackson Erpen


«A percepção desta perda do tempo presente por parte do cristianismo e da tarefa que disto derivava estava bem resumida pela palavra ‘aggiornamento’, actualização. O cristianismo deve estar no presente para poder dar forma ao futuro» (Bento XVI)


Joseph Ratzinger, como teólogo, contribuiu para dar forma e acompanhar o Concílio Vaticano II. Trabalhou na sua preparação, foi membro de diversas comissões e ao final redigiu os comentários às Constituições Lumen gentiumSacrosanctum conciliumDei Verbum e  Gaudium et spes.

Mas voltemos um pouco ao contexto em que Ratzinger recebeu o anúncio do Concílio. E é ele mesmo que o descreve com as seguintes palavras : «João XXIII havia anunciado o Concílio Vaticano II, reavivando – em muitos até  a euforia – aquele sentimento de renascimento e esperança que, apesar da ameaça que a etapa nacional-socialista havia suposto, ainda estava vivo desde o final do Primeira Guerra Mundial».[1]

A teologia e a vida da Igreja na Alemanha, de fato, havia dado passos importantes no período entre guerras. Ratzinger assim resume essas contribuições. ‘Por um lado, o século em que vivemos foi chamado o século da Igreja; poderíamos também chamá-lo de século litúrgico e sacramental, visto que a redescoberta da Igreja, ocorrida durante as duas guerras mundias, reside na redescoberta da riqueza espiritual da liturgia primitiva cristã e o princípio sacramental». [2]

Ele também conclui, que ‘o movimento litúrgico, o movimento bíblico e ecumênico e, por fim, uma forte religiosidade mariana, configuraram um novo clima espiritual no qual floresceu também uma nova teologia que, no Concílio Vaticano II, deu frutos para toda Igreja».[3]

No contexto do recente falecimento do Papa Bento XVI, grande teólogo, padre Gerson Schmidt* nos propõe hoje a reflexão ‘Ratzinger e o Concílio Vaticano II’ :

‘O cardeal Joseph Ratzinger, como teólogo, participou em medida relevante na gênese dos textos mais variados do Concilio Vaticano II, primeiro ao lado do arcebispo de Colônia, cardeal Joseph Frings, e mais tarde como membro autônomo de diversas comissões.

O cardeal e arcebispo emérito D. Gerhard Ludwig Müller, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, fala assim da influência de Ratzinger no Concílio :

‘Na fase da recepção, ele – Ratzinger - não se cansa de recordar que o Concílio deve ser avaliado e compreendido à luz da sua intenção autêntica. O Concílio é parte integrante da história da Igreja e, portanto, só o podemos compreender corretamente se considerarmos este contexto de dois mil anos. Graças aos seus trabalhos sobre o conceito de Igreja em Santo Agostinho e sobre o conceito de Revelação em são Boaventura, com os quais tinha obtido os graus académicos, Joseph Ratzinger era particularmente idôneo e preparado para enfrentar as questões centrais apresentadas à Igreja no século XX. Entre elas, depois das experiências da guerra e de uma sociedade em profunda transformação nos anos sessenta, estava a crescente perda de significado e de presença da Igreja no mundo. O Papa Bento XVI descreveu do seguinte modo a tarefa do concílio : «A percepção desta perda do tempo presente por parte do cristianismo e da tarefa que disto derivava estava bem resumida pela palavra ‘aggiornamento’, atualização. O cristianismo deve estar no presente para poder dar forma ao futuro».’[4]

No discurso à Cúria Romana a 22 de Dezembro de 2005, que suscitou grande interesse, Bento XVI pôs em evidência «a hermenêutica da reforma na continuidade» face a uma «hermenêutica da descontinuidade e da ruptura». Joseph Ratzinger coloca-se assim no sulco das suas afirmações de 1966. Esta interpretação é a única possível segundo os princípios da teologia católica, ou seja, considerando o conjunto indissolúvel entre Sagrada Escritura, a Tradição completa e integral e o Magistério, cuja expressão mais alta é o concílio presidido pelo sucessor de são Pedro como cabeça da Igreja visível. Fora desta única interpretação ortodoxa infelizmente existe uma interpretação herética, ou seja, a hermenêutica da ruptura, quer na vertente progressista, quer na tradicionalista. Estas duas vertentes têm em comum a rejeição do concílio; os progressistas pretendendo deixá-lo para trás, como se fosse só uma estação que se deve abandonar para alcançar outra Igreja; os tradicionalistas não querendo alcançá-lo, como se fosse o Inverno da Catholica[5]

A questão das polarizações e totalitarismos são percebidos também dentro da própria Igreja. Há quem diga que o Concílio Vaticano II já está ultrapassado; outros, como conservadores radicais, nem aceitam o Concílio como a proposta de renovação da Igreja para dentro e para fora. Consultado que foi para um novo Concílio nas Américas, o Papa Francisco respondeu que as conclusões do Concílio Vaticano II nem foram aplicadas ainda na Igreja.

Na homilia dos 60 aos do Concílio dizia em tom claro sobre os radicalismos : ‘Quantas vezes se preferiu ser «adeptos do próprio grupo» em vez de servos de todos, ser progressistas e conservadores em vez de irmãos e irmãs, «de direita» ou «de esquerda» mais do que ser de Jesus; arvorar-se em «guardiões da verdade» ou em «solistas da novidade», em vez de se reconhecer como filhos humildes e agradecidos da santa Mãe Igreja. Todos, todos somos filhos de Deus, todos irmãos na Igreja, todos Igreja, todos’.’

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[1] Mi vida, Encuentro, Madrid 1997, pp. 97.

[2] Ser cristiano (1965), Sígueme, Salamanca 1967, p. 57

[3] Natura e compito della teologia. Il teologo nella disputa contemporanea: storia e dogma, Jaca Book, Milano 1993, p. 90.

[4] Arcebispo D. Gerhard Ludwig Müller,Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé - Reflexões sobre os escritos conciliares de Joseph Ratzinger - https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/muller/rc_con_cfaith_doc_20121128_riflessioni-muller_po.html

[5] Idem. 

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-01/joseph-ratzinger-concilio-vaticano-ii0.html

sábado, 7 de janeiro de 2023

Heranças de Bento XVI

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


O ser humano é epifania da grandeza do inesgotável amor de Deus. Uns mais que outros revelam a plenitude deste amor e todos têm a oportunidade de construir a própria história de vida como revelação do seu Criador e Redentor. Tudo isso se faz pela ação do Espírito Santo de Deus, aquele que, como ensina São Basílio Magno, no terceiro século, está presente em cada um dos que são capazes de recebê-lo, concedendo a todos as graças necessárias. São Basílio lembra que pelo Espírito Santo os corações são elevados ao alto, os fracos são conduzidos pela mão, os que progridem na missão chegam à perfeição. A cada indivíduo não basta a própria força, pois o ser humano precisa sempre do amor de Deus. Ora, nem mesmo a grandeza da razão supera a grandeza do amor, capaz de fecundar a existência, iluminar o viver humano em todos os seus processos.  Por isso mesmo, as heranças legadas pelo Papa Bento XVI à humanidade, importantes na semeadura do amor, despertam especial reverência.

No amplo horizonte das heranças de Bento XVI, vale homenageá-lo revisitando o seu discurso inaugural da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, celebrada em maio de 2007, no Santuário Nacional Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Uma contribuição magistral. As palavras de Bento XVI, sempre atuais, nortearam a intuição de todos que se dedicaram à Conferência de Aparecida, primeiramente em razão do tema escolhido : ‘Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nossos povos Nele tenham vida – ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’’. Naquele importante momento que inaugurou um acontecimento marcante na vida da Igreja, Bento XVI apontou um caminho. Essa direção indicada, a partir da magistral sensibilidade do Papa Francisco, tem levado a Igreja, na atualidade, a investir para ser sempre e cada vez mais sinodal - Igreja de comunhão, de participação e de missão, que ajuda o mundo contemporâneo a encontrar respostas para os problemas atuais, a partir da vivência e do testemunho autêntico da fé cristã.

No discurso inaugural da Conferência de Aparecida, o Papa Bento XVI derramou a grandeza de sua alma, a nobreza de seu jeito de ser, com indicações e juízos que confirmam a sua sensibilidade pastoral de profunda relevância. Fez frente, deve ser lembrado, aos agouros direcionados à Conferência, daqueles que a enxergavam como ameaça de retrocesso para o caminho missionário da Igreja. Ao invés disso, aquele acontecimento delineou um horizonte largo e inspirador, ainda por ser explorado e vivido, desafiando a Igreja a contribuir, ainda mais, à luz da fé, para que todos se reconheçam protagonistas. Ali, o Papa Bento XVI parte de uma constatação preciosa, em referência à fé em Deus que animou a vida e a cultura dos povos latino-americanos e caribenhos, já por mais de cinco séculos. A vida dos povos latino-americanos e caribenhos, assim, ganhou feições nascidas a partir do encontro da fé cristã com as riquezas culturais das etnias originárias, fazendo surgir um valioso patrimônio da arte, da música, da literatura e das tradições religiosas.  O reconhecimento dessa realidade permite considerar a importância da fé cristã para superar os desafios contemporâneos e garantir a todos os povos uma vivência alegre e coerente com o Evangelho.  

Todos são igualmente chamados a se reconhecerem discípulos de Cristo, compreendendo que a fé cristã não é alheia ou um contraponto às diferentes culturas. Ao contrário, trata-se de resposta ansiada no coração de diferentes culturas, que possibilita a união da humanidade a partir do amor, que leva ao respeito das muitas diversidades. A fé cristã, vivida com autenticidade, assim, promove o crescimento de todos na verdadeira humanização, no autêntico desenvolvimento integral. Ainda sobre a pluralidade cultural da América Latina e Caribe, a Conferência de Aparecida focalizou o grande mosaico da religiosidade popular, precioso tesouro da Igreja Católica, merecendo o seu cuidado, proteção e adequado tratamento. Em síntese, saber balizar o próprio horizonte a partir do que significa ser discípulo de Jesus é redescobrir a ‘mina de ouro’ da tradição cristã.

Profeticamente, o Papa Bento XVI afirmou que só reconhece a Deus quem conhece a realidade, respondendo-a de modo adequado, humano. Deve-se reconhecer o fracasso de todos os sistemas que colocam ‘Deus entre parêntesis’, conforme adverte o Documento de Aparecida, inspirado nos ensinamentos de Bento XVI. A observação da realidade confirma o que diz o Documento, bastando considerar que sem um consenso moral sobre os valores fundamentais a serem defendidos, até mesmo com a renúncia de interesses pessoais, agravam-se problemas sociais e políticos. E Bento XVI, na Conferência de Aparecida, advertiu : onde Deus está ausente, estes valores não se mostram com toda a sua força nem se produz um consenso sobre eles. Com essa clareza, a Igreja busca se sacramentar sempre como advogada da justiça e dos pobres, precisamente ao não se identificar com os políticos, nem com os interesses de partidos.

Papa Bento XVI, no seu discurso inaugural da Conferência de Aparecida, dedicou-se a muitos outros temas relevantes, com lucidez intelectual e sensibilidade singular, sendo força decisiva para a riqueza do muito atual Documento de Aparecida. Sua presença e sua palavra pavimentaram a estrada que o Documento configura, com indicações para o novo tempo que precisa ser construído - um compromisso de fé e de qualificada cidadania. As lições da Igreja que aproximam o ser humano de Deus nutrem as esperanças da humanidade. No conjunto dessas lições estão as heranças de Bento XVI.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1597930

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A ligação entre Ratzinger e Santo Agostinho: "Guia para minha vida como teólogo e pastor"

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A estátua de madeira de Santo Agostinho presente na Capela do Mosteiro Mater Ecclesiae, onde morava o Papa Emérito 

*Artigo de Tiziana Campisi

 

Bento XVI e Santo Agostinho. O pensamento e a teologia do 264º sucessor de Pedro estão impregnados nos ensinamentos e escritos do grande Padre da Igreja, mas já como estudante Joseph Ratzinger sentia afinidades com a personalidade do bispo de Hipona. Nutria uma devoção especial e gratidão para com aquela figura à qual ele se sentia muito apegado pelo papel que havia desempenhado em sua vida de teólogo, de sacerdote e de pastor. Repetiu isso várias vezes durante seu pontificado : na última de suas cinco catequeses dedicadas ao Santo - entre janeiro e fevereiro de 2008 -, no ciclo das audiências gerais sobre os Padres da Igreja, diante do túmulo de Santo Agostinho em Pavia em abril do mesmo ano, e antes disso aos estudantes do Seminário Maior Romano em 17 de fevereiro de 2007. No período de seus primeiros estudos filosóficos e teológicos, na segunda metade dos anos 40, foi particularmente atraído pela figura de Santo Agostinho e pelo seu perturbador caminho interior empreendido para crer e compreender e, ao mesmo tempo, para compreender e crer, em suma, para poder dialogar fé e razão. Diálogo que Ratzinger levou adiante e desenvolveu ao longo de toda a sua vida.

O fascínio da história humana do Bispo de Hipona

‘Fascinava-me sobretudo a grande humanidade de Santo Agostinho’, explicou Bento XVI aos seminaristas, ‘que não teve a possibilidade simplesmente de se identificar com a Igreja porque era catecúmeno desde o início, mas teve que lutar espiritualmente para encontrar pouco a pouco o acesso à Palavra de Deus, à vida com Deus, chegando ao grande ‘sim’ à sua Igreja’. E é, em particular, a história pessoal do filósofo de Tagaste que impressionou Ratzinger, ‘este caminho tão humano, no qual também hoje podemos ver como se começa a entrar em contacto com Deus, como todas as resistências da nossa natureza devam ser tomadas a sério e depois devam também ser canalizadas para chegar ao grande sim ao Senhor. Desta forma, fui conquistado pela sua teologia muito pessoal, desenvolvida sobretudo na pregação’.

A tese ‘agostiniana’ em teologia

Voltando no tempo, no percurso de estudioso, teólogo e pastor de Ratzinger e na sua vida pessoal, a figura do bispo de Hipona está sempre presente. Em 1953, o promissor Joseph sacerdote e já brilhante acadêmico se formou em Teologia na Universidade de Munique com uma dissertação sobre a relação entre o Povo de Deus e o Corpo de Cristo em Agostinho - 'Povo e Casa de Deus na Doutrina da Igreja de Santo Agostinho' - com base no que o Doutor da Igreja escreve na 'Exposição sobre o Salmo 149'. A tese foi publicada e no prefácio da edição italiana de 1978 Ratzinger delineou o resultado central de sua pesquisa, especificando que ‘a releitura cristológica do Antigo Testamento e a vida sacramental centrada na Eucaristia são os dois principais elementos da visão agostiniana da Igreja’.

O desejo de uma vida contemplativa

Mas há outro aspecto da vida de Santo Agostinho que Bento XVI quis destacar durante sua visita ao Seminário Maior Romano, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Confiança : ele desejava viver, inicialmente, ‘uma vida meramente contemplativa, escrever outros livros de filosofia... mas o Senhor não quis, fez dele um sacerdote e um bispo e, assim, o resto da sua vida, da sua obra, desenvolveu-se substancialmente no diálogo com um povo muito simples. Ele teve que encontrar sempre pessoalmente, por um lado, o significado da Escritura e, por outro, ter em consideração a capacidade do povo, do seu contexto vital, e alcançar um cristianismo realista e ao mesmo tempo muito profundo’. Era a mesma coisa que Ratzinger desejava : retirar-se da vida pública para se dedicar à meditação e ao estudo. Como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé desde 1981, solicitou várias vezes sua demissão, que João Paulo II não concedeu.

 

Bento XVI em visita ao Seminário Romano Maior em 17 de fevereiro de 2007

Sua primeira Encíclica : Deus caritas est

Eleito Papa em 16 de abril de 2005, alguns meses depois, no dia de Natal, Bento XVI entregou à Igreja sua primeira carta encíclica, Deus caritas est, dedicada ao amor cristão. Foi inspirado mais uma vez por Santo Agostinho. Seu desejo de ‘falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós’ e o expressa em um tratado dividido em duas grandes partes que estão ‘profundamente ligadas’ entre elas. A primeira com um caráter mais especulativo, com o qual ele quis especificar, no início de seu Pontificado, ‘alguns dados essenciais sobre o amor que Deus, de forma misteriosa e gratuita, oferece ao homem, juntamente com a ligação intrínseca desse Amor com a realidade do amor humano’; a segunda parte com ‘um caráter mais concreto’, que trata do ‘exercício eclesial do mandamento do amor pelo próximo’. No parágrafo anterior à conclusão, apresenta uma síntese do conceito de amor, a única luz ‘que sempre ilumina novamente um mundo escuro e nos dá a coragem de viver e de agir’. ‘O amor é possível, e nós somos capazes de praticá-lo porque fomos criados à imagem de Deus. Viver o amor e assim deixar a luz de Deus entrar no mundo, isto é o que eu gostaria de convidar com esta Encíclica’.

Peregrino no túmulo de Santo Agostinho

Em 22 de abril de 2007, em visita a Pavia, Bento XVI deixou ainda mais claro o quanto se sentia próximo de Santo Agostinho. Com viva emoção, na Basílica de São Pedro em Ciel d'Oro, onde são guardados os restos mortais do ‘Doutor da Graça’, ele revelou que era seu desejo venerá-los : ‘Para expressar tanto a homenagem de toda a Igreja Católica a um dos seus ‘padres’ maiores, como a minha pessoal devoção e reconhecimento àquele que grande parte teve na minha vida de teólogo e de pastor, mas diria antes ainda de homem e de sacerdote’. E diante do túmulo do Bispo de Hipona, visivelmente emocionado, o Papa Ratzinger também quis ‘entregar idealmente à Igreja e ao mundo’, sua primeira Encíclica, ‘amplamente devedora ao pensamento de Santo Agostinho, que foi um apaixonado do Amor de Deus, e o cantou, meditou, pregou em todos os seus escritos, e acima de tudo testemunhou no seu ministério pastoral’. Afirmando também que ‘que a humanidade contemporânea tem necessidade desta mensagem essencial, encarnada em Jesus Cristo : Deus é amor’ e que ‘tudo deve partir daqui e tudo aqui deve conduzir : cada ação pastoral, cada desenvolvimento teológico’, e que ‘todos os carismas perdem o sentido e o valor sem o amor, graças ao qual, ao contrário, todos concorrem para edificar o Corpo místico de Cristo’. Acrescentando que mensagem ‘que ainda hoje Santo Agostinho repete a toda a Igreja’ e que ‘o Amor é a alma da vida da Igreja e da sua ação pastoral’.

Um símbolo ‘agostiniano’ no brasão papal

E não se deve esquecer que para seu brasão papal Bento XVI escolheu, entre outros símbolos, uma concha, que também tem um significado agostiniano. De fato, recorda uma lenda que tem Agostinho como protagonista. A história conta que Agostinho notou uma criança em uma praia que estava continuamente tirando água do mar com uma concha e depois despejando-a em um buraco cavado na areia, e pediu explicação. O menino respondeu que queria colocar toda a água do mar naquele buraco. ‘Agostinho compreendeu a referência a seu inútil esforço em tentar fazer entrar o infinito de Deus na limitada mente humana’, lê-se na página do site Vatican.va dedicada ao brasão de Bento XVI. A lenda tem um evidente simbolismo espiritual, para nos convidar a conhecer Deus, ainda que na humildade das inadequadas capacidades humanas, nutrindo-nos na inesgotabilidade do ensinamento teológico’.   

O brasão papal de Bento XVI

A estátua de Santo Agostinho no Mosteiro Mater Ecclesiae

Impressiona que na capela do Mosteiro Mater Ecclesiae, nos Jardins do Vaticano, onde foi colocado o corpo de Bento XVI para permitir um último adeus a seus amigos mais próximos, cardeais, prelados, leigos, amigos, antigos colaboradores, estudantes, famílias, religiosos e religiosas, tenha também uma estátua de Santo Agostinho. Encontra-se em frente ao altar. É uma antiga estátua de madeira que mostra sinais de tempo; o bispo de Hipona é representado com as vestes de prelado. Não há dúvida que se trate do grande padre da Igreja; ao seu lado está uma criança segurando uma concha. Ele é o protagonista da lenda agostiniana que Bento XVI quis recordar em seu brasão precisamente com uma concha, que também está presente no brasão do antigo Mosteiro de Schotten, em Regensburg, ao qual Joseph Ratzinger se sentia espiritualmente muito ligado, e é também o símbolo do peregrino. Justamente onde se concluiu a peregrinação terrena de Bento XVI, Santo Agostinho parece dar testemunho o quanto Joseph Ratzinger deu ao mundo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-01/ratzinger-santo-agostinho-ligacao-teologia-mestre.html