Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Maria Clara Bingemer,
teóloga
Por isso mesmo, porque tantas
coisas importantes – positivas e críticas – foram ditas e escritas, atenho-me
ao que foi essencial de meu contato com o teólogo Ratzinger, em cujos livros li
e estudei durante minha graduação em Teologia, e com aquele que se tornou
sucessor de João Paulo II em 2005.
Quando foi anunciada sua eleição
pelo cardeal camerlengo em 2005, confesso que tinha sentimentos não muito
claros por dentro. Por um lado, compreendia que o conclave o tivesse eleito,
era o colaborador mais próximo do papa polonês, o teólogo e pensador refinado,
o homem culto que presidia a Pontifícia Comissão para a Doutrina da Fé.
No entanto, pude conhecer de perto igualmente sua atuação à frente desta
comissão e minha impressão era de uma certa perplexidade diante de algumas
punições e restrições impostas a teólogos que eu conhecia bem de perto e cuja
fé profunda e o rigor teológico admirava. Os dois lados se fizeram sentir
naquele momento em que a Igreja, após 26 anos do governo de João Paulo II,
esperava ventos novos.
Dos oito anos em que reinou
Bento XVI lembro-me de vários momentos em que surpreendeu positivamente: a
reconciliação com a Companhia de Jesus, que havia recebido intervenção do
antecessor João Paulo II, coisa que tanto fizera sofrer o querido padre Arrupe;
o belo texto da primeira encíclica, Deus caritas est, onde o intelectual
refinado que era Bento XVI não temia dialogar inclusive com Nietzche, o
filósofo tão crítico do cristianismo; a oração pungente em Auschwitz que se
lançava de encontro ao silêncio de Deus. Haveria outras, muitas mais a
mencionar.
Desejo destacar duas ocasiões que
me parecem centrais para compreender por que vejo Bento XVI como alguém
surpreendente.
A primeira foi sua vinda ao
Brasil para abrir a Conferência de Aparecida, em 2007. Havia um ambiente
de desconforto e temor entre muitos que trabalhavam e participavam do evento.
A Conferência de Santo Domingo, em 1992, havia sido difícil e penosa.
O documento final quase não foi escrito e divulgado. Graças a
circunstâncias várias, entre elas o gênio e a santidade de Dom Luciano Mendes
de Almeida, houve um documento com pontos positivos, mas que parecia não levar
em conta o sopro profético das conferências de Medellín e Puebla, como a centralidade
da opção pelos pobres. Temia-se o que poderia dizer Bento XVI. Se o Papa, no
discurso de abertura, pronunciasse uma clara condenação da teologia da
libertação, que tinha como centro a opção pelos pobres, seria realmente muito
triste para a caminhada da Igreja latino-americana.
O Papa falou. Declarou que
a fé nos liberta do isolamento e nos conduz à comunhão com Deus e com os
irmãos, implicando responsabilidade para com o outro. E continuou. Cito
literalmente pela importância que reside nesta frase que mudou completamente o
panorama da V Conferência, em Aparecida : ‘Neste sentido, a opção preferencial
pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre
por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).’
A partir daquele momento
encerravam-se as discussões sobre se a opção pelos pobres seria realmente
teológica ou, ao contrário, apenas um subproduto de um marxismo mal
compreendido.
A alguns não caiu bem a afirmação
do Papa. Chegaram a retirar-se da conferência. Para muitos de nós que
ali estávamos foi uma lufada de ar fresco e uma injeção de ânimo. Aparecida
retomou a questão dos pobres, dando-lhe a centralidade devida, e produziu um
documento que voltava a trazer esperança para a Igreja do continente.
Em 2012, encontrava-me em Chicago
conversando com o grande amigo e teólogo maior David Tracy. Meio
abruptamente ele me perguntou : ‘Você acha que o Papa vai renunciar?’
Surpreendida, disse que jamais havia passado por minha cabeça esta ideia.
David me explicou o porquê de suas suspeitas e sua argumentação não me
convenceu. De Chicago viajei a Roma. Fora convidada a apresentar, ao
lado do Cardeal Ravasi e de outros teólogos e editores, o livro de Bento XVI
sobre a Infância de Jesus. Após a apresentação, fomos todos cumprimentar
o autor. Bento XVI nos recebeu sorridente e alegre com o lançamento do
livro. Ao cumprimentá-lo disse-lhe, referindo-me à Jornada Mundial da
Juventude que teria lugar no Rio de Janeiro, em julho de 2013 : ‘Nós o
esperamos no próximo ano, no Rio.’ Ao que ele respondeu com um meio
sorriso : ‘Se Deus me der saúde...’
No dia 8 de fevereiro de 2013,
uma jornalista da Globo News me chamou ao telefone às 8 horas da manhã.
Era segunda feira de Carnaval. Ouvi do outro lado a seguinte
pergunta : ‘Professora, pode falar algo sobre a renúncia do Papa?’ A notícia me
deixou perplexa. Pedi uma hora para inteirar-me e liguei a televisão.
Os olhos do mundo inteiro estavam voltados para Roma e o gesto histórico
da renúncia do Pontífice.
O resto é história. O papa
Ratzinger explicou ao mundo as razões de sua renúncia. À medida que o
ouvia e lia, sentia crescendo em mim, juntamente com a surpresa, admiração por
ele. É muito difícil retirar-se quando se vê que chegou o momento. O papa bávaro o fez com elegância e firmeza.
Seu corajoso gesto abriu o
caminho para a primavera de Francisco, iniciada pouco mais de um mês depois, em
13 de março de 2013. Este segue o caminho das surpresas, embora de forma bem
diferente de seu antecessor. Que o Papa Bento descanse em paz e Francisco
continue nos surpreendendo ainda por bastante tempo.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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