4. Conclusão
O jejum muçulmano
Depois de termos percorrido as diversas
dimensões do jejum cristão, vale a pena mencionar, ainda que só por curiosidade
sincera, a experiência muçulmana do Ramadã, um mês inteiro no qual nossos
irmãos muçulmanos se abstêm de comer, beber, fumar e ter relações sexuais,
desde a aurora até o anoitecer (10).
É
impressionante a coincidência em muitos dos pontos acima comentados : o
objetivo é aproximar-se mais do Criador e viver melhor, segundo a sua vontade;
o silêncio do alimento é parte de outros silêncios (bebida, fumo, sexo), são
dias de generosa caridade nos quais se redobram as boas ações e a
esmola...Inclusive tendo em conta que, assim como no cristianismo também no
islamismo há uma certa distância entre o ideal e a prática, deve-se reconhecer
a beleza, o sentido religioso e o acerto do ideal. E também o mérito de quem o
pratica com todo o rigor. Porque não estamos falando só dos muçulmanos que
vivem em países islâmicos, onde o contexto social os favorece, mas também do
que vivem nas sociedades ocidentais. Falando claro : se em nossos climas menos
quentes e em nosso ritmo de trabalho ocidental os muçulmanos são capazes de jejuar
até esse ponto, então, em nosso contexto, o jejum é possível.
Uma proposta
concreta
Estas
páginas foram escritas a partir da modesta experiência de quem começou jejuando
em solidariedade com os famintos e foi progressivamente descobrindo a rica variedade
de dimensões do jejum cristão. E para que estas linhas não fiquem perdidas, eis
uma proposta concreta :
- Começar
por prescindir de uma refeição por mês (ou
por semana). Pode ser o desjejum, o almoço ou o jantar, mas é
bom que sempre seja a mesma, para que sua regularidade nos recorde, de maneira
mais efetiva, o gesto que estamos fazendo. Acontece em nosso ritmo de vida que
haja dias em que facilmente deixamos de fazer uma refeição : uma noite na qual
chegamos tare em casa e vamos nos deitar diretamente, sem o jantar, um dia no
qual não tomamos o desjejum porque não há tempo ou porque na noite anterior
comemos demasiado...Evidentemente não se trata disso.
- Dedicar à oração o tempo dessa refeição. Não se trata de substituir
o intervalo de tempo que antes dedicávamos a nos alimentar por outro empregado
em trabalhar mauis ou em fazer mais coisas. A intenção é que nosso jejum nos
volte para Deus, que nos lembre que sem Ele não podemos fazer nada, que nos
ajude a reconhecer-nos limitados e impotentes e a confiar-lhe um drama que nos
ultrapassa.
-
Acrescentar a esmola. Não se
trata apenas de calcular o dinheiro que economizamos deixando de comer, mas de
aproveitar a ocasião para um aumento de generosidade em nossa comunicação cristã
de bens, dirigida desta vez a instituições que trabalham para combater a fome.
Que nosso jejum sirva para que outros não tenham de jejuar.
Esta
proposta pode considerar-se tanto individual como comunitariamente (11). E solicita-se revê-la
periodicamente, descobrindo até que ponto vamos integrando o jejum em nossa
vida. Porque se formos constantes, pouco a pouco iremos passando do gesto ao
hábito, de tal modo que, sendo no início um gesto extraordinário, converta-se
num hábito integrado em nossa vida. Será então o momento de pensarmos em um
passo a mais.
Corolário
Bertold
Brecht, numa cena interessante de teatro, representa Galileu convidando os sábios
de sua época a olhar pelo telescópio que tinha construído, para se
certificarem, eles mesmos, da existência dos satélites de Júpiter. Todavia, os
sábios se negaram a olhar, argumentando que isso é impossível : ‘Talvez vocês saibam que, segundo a hipótese
dos antigos, não existem estrelas que giram ao redor de outro centro senão a
Terra, nem astros no céu que não tenham seu correspondente apoio’. A
insistência de Galileu foi inútil; os sábios ‘sabem’ que não pode haver tais satélites e consideram inútil
qualquer prova : ‘nem uma palavra a mais!’
(12).
A cena, lida
com os olhos de nossa época, tem muito de tragicômico. Se me permite citá-la, é
porque algo parecido pode nos acontecer com o tema do jejum. Por que haveríamos
de experimentá-lo – honestamente – se ‘sabemos’
que não vamos passar a experiência?
Por que
haveríamos de tenta-lo? Bem, porque outros o conseguiram e com bom proveito.
Porque durante séculos toda a Igreja o praticou, vivendo seu sentido
purificador. Porque grandes figuras o levaram a efeito e recomendaram.
E porque
hoje está sendo recuperado com uma intenção renovada que acrescenta o aspecto
profético e solidário. E porque acreditamos naqueles que encontraram no jejum
um meio de crescimento na vida e na fé, e um instrumento de compaixão, denúncia
e solidariedade ante os sofrimentos injustos da humanidade. Por último : o que
se propõe não é ‘rezar uma vez por mês
(ou por semana) pela justiça e pela paz em solidariedade com os famintos’
mas, ‘fazer uma vez por mês (ou por
semana) um jejum solidário, rezando pela justiça e pela paz’. Não se trata
de acrescentar mais oração e reflexão apenas. Se nossa oração e reflexão não nos
fazem mudar nosso estilo de vida, ainda que seja um pouquinho, melhor deixar de
rezar e de refletir. Se não somos capazes de nos privar de nada em nossa preocupação
pela justiça, acontecerá conosco como ao imprudente do Evangelho que começou a
construir sem dar-se conta do inútil de seu esforço. Mas se nossa preocupação pela
justiça nos faz mudar em coisas pequenas,
então vamos pelo bom caminho. E já conhecemos o texto de Eduardo Galeano :
São coisas pequenas.
Não acabam com a pobreza, não nos
tiram do subdesenvolvimento, não socializam os meios de produção, e não expropriam
as cavernas de Ali-Babá.
Mas, quiçá, desencadeiem a
alegria do fazer e a traduzam em atos.
E finalmente, atuar sobre a
realidade e transformá-la, ainda que seja só um pouquinho, é a única maneira de
provar que a realidade é transformável.
E a melhor
maneira de provar que a realidade é transformável é mostrar que nós o somos.
Vale a pena tentar.
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(10) Cf. Ramadán. Purificar el corpo y alma. VIDA NUEVA, 2.354, 23 de novembro de 2002.
(11) Para grupos ou comunidades que planejam um jejum-oração mensal, oferece-se um guia para cada mês que pode ser útil : www.marianistas.org/justicaypaz.
(12) Bertold BRECHT, Galileo Galilei, citado por Luis Gonzáles-Carvajal, Ideas y creencias del hombre actual, Sal Terrae, Santander, 1991, p. 71.
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