domingo, 9 de março de 2014

Recuperar o jejum (Capítulo 3 de 4)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

  
3.   Dimensão solidária do jejum

O testemunho sincero de Millás nos introduziu em outra das dimensões fundamentais do jejum : como manter nossa dieta de três refeções ao dia diante de pessoas – muitas delas crianças – que passam dois dias sem comer? A pergunta não é nova. O presente artigo tem como título o de um outro, escrito há alguns anos, por José Ignácio Gonzáles Faus (6). Começava precisamente assim :

Você se compromete um dia por semana a deixar a refeição e a merenda. Faz só um desjejum simples e uma breve ceia. Ou então suprime todas as refeições e passa o dia só com algumas frutas...Você se encontrará melhor e até pode ser que diminuam bastante os aborrecimentos de metabolismos, dietéticos e colesteróis.

Mas não é isso o que aqui nos motiva, ainda que possa ser uma razão suplementar. O que procuramos é que, se chegar um momento pelo meio da tarde em que a fome o incomoda e produz até um certo mal-estar, então pense: esta sensação tão desagradável é habitual em milhões de pessoas no nosso planeta. Assim vivem cada dia.

Com isso você consegue duas coisas :

a.      Um exercício muito cristão da solidariedade e do amor que, quando se vêem impotentes para conseguir algo, optam, pelo menos, por aproximar-se e assemelhar-se;
b.      Se, com o tempo, essa sensação nos molestar, talvez nos torne mais criativos : porque, se acabar com a fome é preciso mudar muitas coisas do sistema, e para isso faz falta muito talento; e se a fome aguça o talento, faz-se necessário que essa fome seja um pouco nossa.

Vimos as vantagens e possibilidades que o jejum concede para o crescimento pessoal e o domínio de si mesmo, a oração, o silêncio e o equilíbrio interior, inclusive para a saúde física e o bem-estar corporal. Nisso não dissemos nada de novo, apenas recordamos o que nossos antigos já tinham descoberto e praticado : o jejum é bom para muitas dimensões da vida humana. Mas hoje se impõe uma dimensão a mais para recuperar esta prática tão desafortunadamente esquecida : a solidariedade.

Com efeito, hoje o abismo existente entre os habitantes do mundo que comem e os que não comem (ou, pelo menos, não em quantidade e qualidade suficientes) é mais escandaloso do que nunca. Porque hoje sabemos que a fome no mundo é evitável, sabemos o que se deve fazer e até quanto custa (7). Todavia, a fome continua existindo e com uma dimensão assustadora : segundo a FAO, 15 milhões de pessoas morrem cada ano vítimas da fome. E mais de um terço delas são crianças.

Não há muito tempo, o editorial de um periódico de tiragem nacional começava com estas palavras : A fome é a vergonha de nossa civilização, o espelho que reflete a imagem mais repugnante de nós mesmos, de nossa ineficácia, incúria e abandono (8).

São palavras muito fortes que certamente nos causam mal-estar e má consciência. Porém, virada a página, o que fica desse remorso?

O jejum voluntário não é a solução para a fome, mas hoje descobrimos que algumas de suas dimensões têm muito o que dizer diante deste escândalo.


Jejum e solidariedade

Num mundo cada vez mais globalizado no qual dois terços da humanidade vivem sem um mínimo de condições dignas, nossa renúncia supõe um gesto de solidariedade. Não vamos remediar a fome no mundo, mas sim, expressar que a fome no mundo nos diz respeito e nos afeta. E somos tão afetados que, voluntariamente, nos acercamos da experiência de quem todos os dias dorme com o estômago vazio. É um gesto, antes de tudo, de com-paixão, de padecer juntamente com os que sofrem. Que sentido tem compartilhar o sofrimento do outro sabendo que isso não vai diminuir o seu? A resposta não está no nível da lógica, e sim, no do coração. Por acaso não o fazemos com as pessoas que nos são caras? Importa-me tanto que faço meu o teu sofrimento, que sofro ao teu lado e contigo, compartilhando tua pena, ainda que isso não reduza tua dor. Importa-me tanto que me faço um contigo, me faço solidário, solidamente unido à tua sorte. E quando alguém já viu crianças com o ventre inchado pela fome, é difícil não experimentar algo semelhante. Não sei como te chamas, querida criança, não sei expressar-me em tua língua, nem quanto tempo tens de vida, nem tenho resposta par a tua súplica silenciosa, não vou reduzir tua fome com a minha, mas deixa-me ao menos expressar que tua fome me afeta.


Jejum e denúncia profética

O ser humano é um animal consumidor, mas nossa civilização chegou a um grau exagerado. Por isso, na cultura na qual vivemos, as privações voluntárias não só supõem um ato de afirmação pessoal, mas também são um gesto de denúncia profética. Ante uma sociedade que valoriza o ser humano em função do que consome – ‘consumo, logo existo’ – nosso jejum é um grito que expressa que o ser humano é valioso em si mesmo, porque assim o é para Deus. O voto de pobreza dos religiosos e religiosas tem este mesmo sentido. Não renunciamos aos bens porque sejam maus, mas porque queremos expressar que não são o absoluto. Com nossa renúncia, apontamos para um Absoluto com maiúscula, e somos uma denúncia visível ante os que fazem dos bens o absoluto de suas vidas. Digamos mais uma vez : com nosso jejum não queremos desprezar o alimento, mas denunciar tantas ocasiões nos quais este se acumula em excesso, se esbanja e se atira ao lixo. Estamos falando de denúncia profética, isto é, pública. E aqui nos encontramos com uma das objeções mais pertinentes que podem surgir : o jejum não deveria ser algo privado? Jesus não nos pediu que jejuássemos em segredo para ‘que teu jejum não seja percebido pelos homens mas apenas por teu Pai que está lá no segredo’? Não é uma demonstração de soberba apregoar nosso jejum? Se entendemos o jejum como uma prática penitencial, é bom que fique escondido (não obstante o Vaticano II recorda, por exemplo, que a penitência do tempo quaresmal não deve ser só interna e individual, mas também externa e social – SC 110). Mas considerar o jejum a partir do seu aspecto penitencial é uma maneira muito limitada de compreendê-lo, como seria obtuso considerar que, em todos os casos, a oração e a esmola devem ficar em segredo porque assim o aconselhou Jesus. E assim vemos como o jejum tem uma grande riqueza de dimensões. Há um jejum pessoal, com um sentido privado, e outro social, com um sentido público. Ambas as dimensões não se excluem.


Jejum e protesto

Desde os tempos de Mahatma Gandhi, esse homem pequeno de alma grande que será sempre reconhecido como um apóstolo da não-violência, deve-se reconhecer que em nossos dias cada vez são mais frequentes as greves de fome, sobretudo com objetivos relacionados com a justiça e a solidariedade. E ainda que, em muitos casos, a motivação não seja religiosa, mas social, devemos congratular-nos por essas iniciativas solidárias e pela repercussão que vão tendo nos meios de comunicação...


Jejum e esmola

Já vimos como o jejum esteve sempre unido à oração e à esmola. São os três meios clássicos que nos aproximam de Deus e de nossos irmãos. Por isso não fica mal que o dinheiro que deixamos de gastar vá para aqueles nos quais pensamos enquanto jejuamos. O jejum se converte assim não só em um gesto simbólico e profético como também numa ação positiva : jejuamos para ajudar, privamo-nos de um pouco de nosso alimento para que outros possam ter um pouco de alimento. E se, de passagem, damos algo mais do que o estritamente economizado com nosso jejum, melhor ainda.


Jejum e oração de súplica

A relação entre jejum e oração que temos comentado até agora referiu-se principalmente à relação com Deus na pessoa de Jesus. Agora descobrimos um elemento a mais, em continuidade com a tradição : mediante a oração de súplica expressamos confiadamente o que não podemos conseguir por nós mesmos (o que não exclui que o tentemos, nos esforcemos por conseguir), reconhecemo-nos limitados e necessitados do auxílio de Deus. Quando haverá justiça e paz na terra? Até quando, Senhor os malvados cantarão vitória? (Sl 94,3). Até quando vai haver miséria no mundo? De onde tiraríamos pão suficiente para dar de comer a uma multidão tão grande? (Mt 15,33). São perguntas que nos ultrapassam.

Precisamente nesta dinâmica, o jejum nos ajuda a ser mais conscientes da nossa limitação e necessidades e a confiar em Deus ‘com todo o nosso ser’, com nossas entranhas! Se tem sentido pedir a Deus pela justiça e pela paz no mundo, também o tem reforçar essa súplica com o ‘grito do corpo’ : venha a nós o vosso Reino, Senhor!

Um precedente que recordaremos é o do dia de jejum convocado por João Paulo II em dezembro de 2001...para rezar pela paz : ‘Peço aos católicos que o próximo dia 14 de dezembro se viva como dia de jejum, dedicado a rezar com fervor a Deus para que conceda ao mundo uma paz estável, fundada na justiça’. O bispo de Pamplona, em uma carta pastoral escrita para a ocasião, comentava de maneira magistral o sentido desta convocação :

Para que cresça entre nós esta preocupação, para avivar nossos desejos de paz, para pedir a ajuda de Deus nestes bons propósitos, o Papa nos pede, a nós católicos, que dediquemos uns dias ao jejum e à oração. Os católicos somos agora demasiado iconoclastas, pouco amigos de símbolos e práticas exteriores. Porém é certo que quando não há atos externos, os sentimentos interiores se diluem logo em fantasias. O jejum real e sincero nos ajuda a fortalecer a liberdade interior frente às falsas necessidades, obriga-nos a renovar e confirmar o desejo de recorrer a Deus, de purificar nossa vida e exercitarmo-nos na oração e na justiça. O jejum e a sobriedade favorecem a aproximação espiritual a Deus e aos irmãos que sofrem. Ambos terminam facilmente na oração e em obras de amor e solidariedade (9).

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(6) Recuperar el ayono. EL MUNDO, 8 de março de 1993, p. 4.

(7) Segundo a FAO, erradicar a fome no mundo custaria uns 50 milhões de dólares por ano. Uma quantia certamente grande, mas pequena em comparação com o gasto militar mundial vinte vezes maior.

(8) El País, 24 de agosto de 2005.

(9) Carta Pastoral Ayuno y oración de Fernando Sebastián AGUILLAR, Arcebispo de Pamplono e bispo de Tudela, 8 de dezembro de 2001.



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