* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa,
OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete
sobre a segunda pregação da quaresma de 2014
‘1. Do Oriente ao Ocidente
Na
meditação introdutória, refletimos sobre o significado da Quaresma como um
tempo para irmos com Jesus até o deserto, em jejum de alimentos, palavras e
imagens, para aprender a superar as tentações e, sobretudo, crescer na
intimidade com Deus.
Nas
quatro pregações que restam, dando continuidade à reflexão iniciada na Quaresma
de 2012 com os Padres gregos, frequentaremos agora a escola dos quatro grandes
doutores da Igreja latina : Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno;
para ver o que cada um nos diz, hoje, sobre a verdade da fé que mais
particularmente defendeu : respectivamente, a natureza da Igreja, a presença
real de Cristo na Eucaristia, o dogma cristológico de Calcedônia e a
inteligência espiritual das Escrituras.
O
objetivo é redescobrir, por trás desses grandes Padres, a riqueza, a beleza e a
felicidade de crer; passar, como diz São Paulo, ‘de fé em fé’ (Rm 1,17), de uma fé acreditada para uma fé vivida.
Teremos, assim, um aumento do ‘volume’
de fé dentro da Igreja para constituir depois a força maior do seu anúncio ao
mundo.
O
título do ciclo vem de um pensamento caro aos teólogos medievais : ‘Nós’, dizia Bernardo de Chartres, ‘somos como anões sentados em ombros de
gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe do que eles, não pela
agudeza do nosso olhar nem pela altura do nosso corpo, mas porque somos
carregados para o alto e elevados por eles a uma altura gigantesca’ (1). Este pensamento encontrou
expressão artística em certas estátuas e vitrais de catedrais góticas da Idade
Média, em que são representados personagens de estatura imponente, que
carregam, sentados sobre seus ombros, homens pequenos, quase anões. Os gigantes
eram para eles, como são para nós, os Padres da Igreja.
Depois
das lições de Atanásio, Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de
Nissa, respectivamente sobre a divindade de Cristo, sobre o Espírito Santo,
sobre a Trindade e sobre o conhecimento de Deus, podia-se ter a impressão de
que restasse muito pouco a ser feito pelos Padres latinos na edificação do
dogma cristão. Um olhar superficial para a história da teologia nos convence
imediatamente do contrário.
Motivados
pela cultura a que pertenciam, favorecidos pela sua forte têmpera especulativa
e condicionados pelas heresias que eram forçados a combater (arianismo,
apolinarismo, nestorianismo, monofisismo), os Padres gregos tinham se
concentrado principalmente nos aspectos ontológicos do dogma : a divindade de
Cristo, as suas duas naturezas e o modo da sua união, a unidade e a trindade de
Deus. Os temas mais caros a Paulo, a justificação, a relação entre lei e
evangelho, a Igreja como corpo de Cristo, foram deixados à margem da sua
atenção ou tratados en passant. Aos seus escopos respondia muito melhor João,
com a sua ênfase na encarnação, do que Paulo, que põe no centro de tudo o
mistério pascal, isto é, o agir, mais do que o ser de Cristo.
A
índole dos latinos, mais inclinada, excetuando-se Agostinho, a se ocupar de
problemas específicos, jurídicos e organizacionais, do que de questões
especulativas, unida ao surgimento de novas heresias, como o donatismo e o
pelagianismo, estimulará uma reflexão nova e original sobre os temas paulinos
da graça, da Igreja, dos sacramentos e das Escrituras. São os tempos sobre os
quais queremos refletir nesta pregação quaresmal.
2. O que é a Igreja?
Comecemos
a nossa resenha pelo maior dos padres latinos, Agostinho. O doutor de Hipona
deixou a sua marca em quase todas as áreas da teologia, mas especialmente em
duas : a da graça e a da Igreja; a primeira, fruto da sua luta contra o
pelagianismo; a segunda, de sua luta contra o donatismo.
O
interesse pela doutrina de Santo Agostinho sobre a graça prevaleceu, do século
XVI em diante, tanto no âmbito protestante (ao qual estão ligados Lutero, com a
doutrina da justificação, e Calvino, com a da predestinação), quanto no campo
católico, por causa das controvérsias levantadas por Jansen e Baio (2). Já o interesse pelas suas
doutrinas eclesiais prevalece em nossos dias, porque o Concílio Vaticano II fez
da Igreja o seu tema central e porque o movimento ecumênico tem na ideia de
Igreja a questão crucial a ser resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos
Padres da Fé para o hoje da fé, vamos nos ocupar desta segunda área de
interesse de Santo Agostinho, que é a Igreja.
A
Igreja não era um assunto desconhecido para os Padres gregos nem para os
escritores latinos anteriores a Agostinho (Cipriano, Hilário, Ambrósio), mas as
suas afirmações se limitavam principalmente a repetir e comentar afirmações e
imagens das Escrituras. A Igreja é o novo povo de Deus; a ela é prometida a
indefectibilidade; ela é ‘a coluna e a
base da verdade’; o Espírito Santo é o seu mestre supremo; a Igreja é ‘católica’ porque se estende a todos os
povos, ensina todos os dogmas e possui todos os carismas; na esteira de Paulo,
fala-se da Igreja como do mistério da nossa incorporação a Cristo por meio do
batismo e do dom do Espírito Santo; ela nasceu do lado aberto de Cristo na
cruz, como Eva do lado de Adão adormecido (3).
Tudo
isso, porém, era dito ocasionalmente; a Igreja ainda não tinha entrado em
discussão. Quem será forçado a tratar dela é justamente Agostinho, que, durante
quase toda a vida, teve de lutar contra o cisma dos donatistas. Talvez ninguém
se lembrasse hoje daquela seita norte-africana se ela não tivesse sido a
ocasião de origem do que hoje chamamos de eclesiologia, ou seja, um discurso
refletido sobre o que é a Igreja no desígnio de Deus, a sua natureza e o seu
funcionamento.
Por
volta de 311, um certo Donato, bispo da Numídia, se recusou a receber novamente
na comunhão eclesial aqueles que durante a perseguição de Diocleciano tinham
entregado os livros sagrados às autoridades estatais, renegando a fé para
salvar a vida. Em 311, foi eleito bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado,
erradamente segundo os católicos, de ter traído a fé durante a perseguição de
Diocleciano. Opôs-se a esta nomeação um grupo de setenta bispos do norte
africano, liderados por Donato. Eles depuseram Ceciliano e elegeram em seu
lugar Donato. Excomungado pelo papa Milcíades em 313, ele permaneceu no seu
posto, provocando um cisma que criou no norte da África uma Igreja paralela à
católica, mantida até a invasão dos vândalos, um século depois.
Durante
a polêmica, eles tentaram justificar a sua posição com argumentos teológicos.
Foi para refutá-los que Agostinho desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da
Igreja. Isto aconteceu em dois contextos diferentes : nas obras escritas
diretamente contra os donatistas e nos seus comentários à Escritura e discursos
ao povo. É importante distinguir entre esses dois contextos porque, conforme
cada um, Agostinho insistirá mais em alguns aspectos da Igreja do que em outros
e só a partir do conjunto é que pode ser entendida a sua doutrina completa.
Vamos ver, portanto, brevemente, quais são as conclusões a que o santo chega em
cada um dos dois contextos, a começar pelo diretamente antidonatista.
a. A Igreja, comunhão dos sacramentos e
sociedade dos santos. O cisma donatista partiu de uma convicção : não pode
transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos administrados
desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este argumento, que no
início foi aplicado à ordenação do bispo Ceciliano, acabou estendido
rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com isto, os
donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de rebatizar
quem vinha das suas fileiras.
Em
resposta, Agostinho desenvolve um princípio que se tornará uma conquista perene
da teologia e que lança as bases de um futuro tratado de sacramentis: a
distinção entre potestas e ministerium, ou seja, entre a causa da graça e o seu
ministro. A graça conferida pelos sacramentos é obra exclusiva de Deus e de
Cristo; o ministro não passa de um instrumento : ‘Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João batiza, é Cristo quem batiza;
Judas batiza, é Cristo quem batiza’. A validade e eficácia dos sacramentos
não é impedida pelo ministro indigno : uma verdade da qual, bem sabemos, o povo
cristão precisa se lembrar também hoje...
Neutralizada,
assim, a principal arma do adversário, Agostinho pode elaborar a sua grandiosa
visão da Igreja mediante algumas distinções fundamentais. A primeira é entre a
Igreja presente ou terrestre e a Igreja celestial ou futura. Só esta segunda
será uma Igreja de todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente
será sempre o campo em que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe
peixes bons e peixes ruins, ou seja, santos e pecadores.
Dentro
da Igreja em seu estágio terreno, Agostinho opera outra distinção : entre a
comunhão dos sacramentos (communio sacramentorum) e a sociedade dos santos
(societas sanctorum). A primeira une visivelmente entre si todos aqueles que
participam dos mesmos sinais externos : os sacramentos, a Escritura, a
autoridade; a segunda une entre si todos e apenas aqueles que, além dos sinais,
também têm em comum a realidade escondida nos sinais (res sacramentorum), que é
o Espírito Santo, a graça, a caridade.
Dado
que na terra sempre será impossível saber com certeza quem possui o Espírito
Santo e a graça, e, mais ainda, se eles perseverarão nesse estado até o fim,
Agostinho acaba identificando a verdadeira e definitiva comunidade dos santos
com a Igreja celeste dos predestinados. ‘Quantas
ovelhas que hoje estão dentro estarão fora, e quantos lobos que hoje estão fora
estarão dentro!’ (5).
A
novidade, neste ponto, mesmo no tocante a Cipriano, é que, enquanto este fazia
consistir a unidade da Igreja em algo externo e visível, na concórdia de todos
os bispos entre si, Agostinho a faz consistir em algo interno : o Espírito
Santo. A unidade da Igreja é operada, assim, pelo mesmo que opera a unidade na
Trindade : ‘O Pai e o Filho quiseram que
estivéssemos unidos entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo que os une,
o amor, que é o Espírito Santo’ (6).
Ele executa na Igreja a mesma função que exerce a alma em nosso corpo natural :
ser o seu princípio vital e unificador. ‘O
que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o Corpo de Cristo,
que é a Igreja’ (7).
A
plena pertença à Igreja exige as duas coisas juntas, a comunhão visível dos
sinais sacramentais e a comunhão invisível da graça. Esta, no entanto, admite
graus, e por isso não quer dizer que se deva estar necessariamente dentro ou
fora. Pode-se estar em parte dentro e em parte fora. Há uma pertença exterior,
ou sinais sacramentais, em que se situam os cismáticos donatistas e os próprios
maus católicos, e uma comunhão plena e total. A primeira consiste em ter o
sinal externo da graça (sacramentum), sem receber, porém, a realidade interior
produzida por eles (res sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria
condenação, não para a própria salvação, como no caso do batismo administrado
pelos cismáticos ou da Eucaristia recebida indignamente pelos católicos.
b. A Igreja Corpo de Cristo animado pelo
Espírito Santo. Nos escritos exegéticos e nos discursos ao povo, encontramos
esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas menos pressionado pela
controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho pode insistir
mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a ele. Neles, a
Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos, como o corpo
de Cristo (ainda falta o adjetivo ‘místico’,
que será adicionado mais tarde), animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo
eucarístico a ponto de, às vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o
que ouviram os seus fiéis, numa festa de Pentecostes, sobre esta questão:
‘Se queres entender o corpo de Cristo, ouve o
Apóstolo que diz aos fiéis : Vós sois o corpo de Cristo e os seus membros (1 Co
12,27). Se vós sois o corpo e os membros de Cristo, na mesa do Senhor está o vosso
mistério : recebei o vosso mistério. Ao que sois, respondeis ‘amém’ e, ao
respondê-lo, o confirmais. É dito a vós : ‘o corpo de Cristo’, e respondeis:
‘amém’. Sê membro do corpo de Cristo, para o teu amém ser verdadeiro... Sede o
que vedes e recebei o que sois’ (8).
O nexo
entre os dois corpos de Cristo se fundamenta, para Agostinho, na singular
correspondência simbólica entre o devir de um e o formar-se da outra. O pão da
Eucaristia é obtido da massa de muitos grãos de trigo e o vinho de uma multidão
de bagos de uva : assim a Igreja é formada por muitas pessoas, reunidas e
amalgamadas pela caridade que é o Espírito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro colhido,
depois moído, misturado com água e assado no forno, assim os fiéis esparsos
pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, moídos pelas penitências e
exorcismos que precedem o batismo, imersos na água do batismo e passados pelo
fogo do Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento ‘significando causat’ : significando a
união de várias pessoas em uma, a Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido,
podemos dizer que ‘a Eucaristia faz a
Igreja’.
3. Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos
agora ver como as ideias de Agostinho sobre a Igreja podem ajudar a iluminar os
problemas que ela enfrenta em nosso tempo. Quero me concentrar em especial na
importância da eclesiologia de Agostinho para o diálogo ecumênico. Uma
circunstância torna esta escolha particularmente oportuna. O mundo cristão se
prepara para celebrar o quinto centenário da Reforma Protestante. Já começaram
a circular declarações e documentos conjuntos em vista do evento (10). É vital, para toda a Igreja, não
estragarmos esta ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar,
talvez com maior objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um e de
outro, mas sim darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou
de um canal, que permite que os navios continuem a sua navegação num patamar
mais elevado.
A
situação do mundo, da Igreja e da teologia mudou desde aquela época. Trata-se
de recomeçar a partir da pessoa de Jesus, de ajudar humildemente os nossos
contemporâneos a descobrir a pessoa de Cristo. Devemos nos remeter ao tempo dos
apóstolos. Eles tinham diante de si um mundo pré-cristão; nós temos diante de
nós um mundo em grande parte pós-cristão. Quando Paulo quis resumir em uma
frase a essência da mensagem cristã, ele não disse ‘Anunciamos esta ou aquela doutrina’, mas ‘Nós proclamamos Cristo, e Cristo crucificado’ (1 Cor 1, 23). E
ainda : ‘Nós proclamamos Jesus Cristo, o
Senhor’ (2 Cor 4,5).
Isto
não significa ignorar o grande enriquecimento teológico e espiritual produzido
pela Reforma, nem querer retornar ao ponto de antes; significa, em vez disso,
deixar que toda a cristandade se beneficie das suas conquistas, uma vez
libertadas de certas forçações devidas ao clima polêmico do momento e às
posteriores controvérsias. A justificação gratuita pela fé, por exemplo,
deveria ser anunciada hoje, e com mais força do que nunca, mas não em oposição
às boas obras, o que é uma questão superada, e sim em oposição à pretensão do
homem moderno de se salvar sozinho, sem necessidade nem de Deus nem de Cristo.
Se vivesse hoje, sou convencido que isto seria o modo com o qual Lutero
predicasse a justificação por fé.
Vamos
ver como a teologia de Agostinho pode nos ajudar neste esforço para superar as
barreiras seculares. O caminho a percorrer hoje, em certo sentido, segue na
direção oposta à que foi tomada por ele contra os donatistas. Na época, era
preciso ir da comunhão dos sacramentos à comunhão na graça do Espírito Santo e
na caridade, mas hoje temos que ir da comunhão espiritual da caridade à plena
comunhão, inclusive nos sacramentos, entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A
distinção entre os dois níveis de realização da verdadeira Igreja, o externo,
dos sinais, e o interno, da graça, permite que Agostinho formule um princípio
que seria impensável antes dele : ‘Pode
haver algo na Igreja católica que não seja católico, e fora da Igreja católica
algo católico’ (11). Os dois
aspectos da Igreja, o visível e institucional e o invisível e espiritual, não
podem ser separados. Isso é verdade e foi reiterado por Pio XII na Mystici
corporis e pelo Concílio Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido às
separações históricas e ao pecado humano, até que se realize a sua
correspondência plena, não podemos dar mais importância à comunidade
institucional do que à espiritual.
Para
mim, isto levanta uma séria indagação. Posso eu, como católico, me sentir mais
em comunhão com a multidão dos que, tendo sido batizados na minha própria
Igreja, se desinteressam completamente de Cristo e da Igreja, ou se interessam
por ela apenas para falar mal, do que me sinto em comunhão com as fileiras
daqueles que, apesar de pertencer a outras confissões cristãs, acreditam nas
mesmas verdades fundamentais em que eu creio, amam Jesus Cristo até dar a vida
por ele, difundem o Evangelho, se esforçam para aliviar a pobreza no mundo e
possuem os mesmos dons do Espírito Santo que nós? As perseguições, tão
frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem distinção : os
perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas são católicas
ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos ‘uma coisa só’!
Esta,
obviamente, é uma pergunta que deveria ser feita também pelos cristãos das
outras igrejas a propósito dos católicos, e, graças a Deus, é precisamente isto
o que está acontecendo de uma forma oculta, porém maior do que as notícias nos
deixam vislumbrar. Um dia, tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros
ficarão, por não termos notado antes o que o Espírito Santo estava realizando
entre os cristãos do nosso tempo, à margem da oficialidade. Fora da Igreja
católica há muitíssimos cristãos que olham para ela com olhos novos e começam a
reconhecer nela as suas próprias raízes.
A
intuição mais nova e fecunda de Agostinho sobre a Igreja, como vimos, foi a de
identificar o princípio essencial da sua unidade no Espírito, mais do que na
comunhão horizontal dos bispos uns com os outros e dos bispos com o papa de
Roma. Como a unidade do corpo humano é dada pela alma que vivifica e move todos
os seus membros, assim é a unidade do corpo de Cristo. Esta unidade é um fato
místico, mais do que uma realidade que se expressa social e visivelmente em
perspectiva externa. É o reflexo da unidade perfeita que existe entre o Pai e o
Filho por obra do Espírito. Foi Jesus quem fixou de uma vez para sempre este
fundamento místico da unidade quando disse : ‘Que todos sejam um, como nós somos um’ (Jo 17, 22). A unidade
essencial na doutrina e na disciplina será o fruto desta unidade mística e
espiritual, nunca a sua causa.
Os
passos mais concretos para a unidade não são dados, portanto, em torno de uma
mesa ou nas declarações conjuntas (embora tudo isto seja importante); são dados
quando os crentes de diferentes confissões proclamam juntos, em acordo
fraterno, o Senhor Jesus, compartilhando cada um o próprio carisma e
reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4. Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Espírito!
Em
seus discursos ao povo, Agostinho nunca expõe as suas ideias sobre a Igreja sem
apresentar imediatamente as consequências práticas para a vida cotidiana dos
fiéis. E é isto o que nós também queremos fazer antes de concluir a nossa
meditação, como se nos colocássemos entre as fileiras dos seus ouvintes de
então.
A
imagem da Igreja como Corpo de Cristo não é uma novidade de Agostinho. O que é
novo nele são as conclusões práticas para a vida dos crentes. Uma delas é que
não temos mais razão para nos olharmos com inveja e com ciúme. O que eu não
tenho, mas os outros têm, também é meu. Ouvimos o apóstolo elencar todos
aqueles maravilhosos carismas : apostolado, profecia, curas... e talvez nos
entristeçamos pensando que não temos nenhum deles. Mas, cuidado, alerta
Agostinho : ‘Se tu amas, o que tens não é
pouco. Se de fato amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é
também possuído por ti! Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu
expulsar a inveja, será meu o que tu possuis’.
Somente
o olho, no corpo, tem a capacidade de ver. Mas o olho, por acaso, enxerga
apenas para si? Não é todo o corpo que se beneficia da sua capacidade de ver?
Só a mão age, mas ela age, acaso, apenas para si mesma? Se uma pedra está prestes
a atingir o olho, a mão por acaso permanece imóvel, dizendo que o golpe,
afinal, não é contra ela? O mesmo acontece no corpo de Cristo : o que cada
membro é e faz, Ele é e faz para todos!
Eis
por que a caridade é o ‘caminho mais
excelente’ (1 Cor 12 , 31) : ela me faz amar a igreja, ou a comunidade em
que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas alguns, são meus. E há
mais : se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu possuo é mais
teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar; eu posso me
comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno ‘um címbalo que retine’ (1 Cor 13,01); o meu carisma ‘de nada me aproveita’, ao passo que o
ouvinte não deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica
realmente os dons; ela faz do carisma de um, o carisma de todos.
‘Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a
unidade da Igreja?’, perguntava Agostinho aos seus fiéis. ‘Então, quando um pagão te perguntar por
que não falas todas as línguas, se está escrito que aqueles que receberam o
Espírito Santo falam todas as línguas, responde sem hesitar : ‘É claro que falo
todas as línguas! Eu pertenço ao corpo da Igreja, que fala todas as línguas e
em todas as línguas proclama as grandes obras de Deus’ (13).
Quando
formos capazes de aplicar esta verdade não só às relações dentro da comunidade
em que vivemos e à nossa Igreja, mas também às relações entre uma Igreja cristã
e a outra, naquele dia a unidade dos cristãos será praticamente um fato
consumado.
Acolhamos
a exortação com que Agostinho fecha muitos dos seus discursos sobre a Igreja : ‘Se quiserdes, pois, experimentar o Espírito
Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a eternidade.’ Amém’ (14).
Fonte :
------------------------
(1) Bernardo de Chartres, coment. João de Salisbury,
Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116).
(2) A este âmbito da influência de Agostinho é dedicado o livro
de H. de Lubac, Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier 1965.
(3) Cf. J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines,
London 1968 chap. XV.
(4) Agostinho, Contra Epist. Parmeniani II,15,34; cf. todo o
Sermo 266.
(5) Agostinho, In Ioh. Evang. 45,12: ‘Quam multae oves foris, quam multi lupi
intus!’.
(6) Agostinho, Discursos, 71, 12, 18 (PL 38,454).
(7) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
(8) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 em diante).
(9) Ibidem.
(10) Cf. documento conjunto católico-luterano ‘Do conflito à
comunhão’,
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html
(em italiano).
(11) Agostinho, De Baptismo, VII, 39, 77.
(12) Agostinho, Tratados sobre João, 32,8.
(13) Cf. Agostinho, Discursos, 269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
(14) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
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