2. Dimensão Pessoal do Jejum
Jejum e oração
Parece clara a relação entre jejum e oração. E não só por ser uma constante na Bíblia; também o é em nossa própria experiência. Não ocorre a ninguém marcar a hora de uma oração comunitária logo depois das refeições. Certamente já o experimentamos mais de uma vez : com o estômago bem cheio, se reza pior. Um estômago farto causa sonolência. Ao contrário, uma dieta ligeira predispõe melhor à oração. Deixar voluntariamente algumas necessidades do corpo sem satisfação ajuda-nos a rezar, entre outras coisas porque nos ajuda a tomar consciência de que nada pode nos satisfazer plenamente. Assim, as privações contribuem a ‘sentir a dentada’ de nossa grande Privação, do encontro pleno com Deus que anelamos. Um estômago mais vazio do que cheio ajuda a experimentar esse outro vazio existencial que só Deus pode preencher e a predispor-nos ao encontro com Ele.
Guardadas as devidas proporções, não tem o celibato um sentido semelhante? O deixar sem preencher o vazio causado pela ausência de um parceiro ajuda os celibatários a se orientarem em corpo e alma, com todo o ser, para Deus.
Porque isso é o jejum com relação à oração : um orar ‘com todo o nosso ser’, com todo o nosso coração, com nossas entranhas! É o ‘grito do corpo’, como expressou muito bem Anselm Grun : ‘Em corpo e espírito nos voltamos para Deus, em corpo e espírito o adoramos. O jejum é o grito do corpo lançado a Deus, um grito do profundo, brotado do fundo de nosso abismo, no qual descobrimos nossa impotência e nossa extrema vulnerabilidade, a fim de abandonar-nos totalmente no abismo de Deus’ (1).
Jejum e ausência do Amado
Com certeza já passamos por isso : a dor ante a perda de um ser querido nos fez perder o apetite. Esta experiência tão humana coincide no fundo com o sentido que os primeiros cristãos davam ao jejum : são os dias em que o ‘noivo foi arrebatado’, e expressamos assim a dor dessa ausência. É verdade que Jesus Cristo está conosco ‘todos os dias até o fim do mundo’, mas também sabemos que enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor e caminhamos à luz da fé e não do que vemos (2Cor 5,6-7).
Por acaso não tem um sentido parecido o jejum eucarístico? Jejuando, preparamo-nos melhor para o encontro com Cristo na Eucaristia, expressando assim nossa fome de Deus e do Pão vivo.
Jejum e silêncio
Sabemos que precisamos fazer silêncio em nossas vidas para encontrarmos conosco mesmo (e com Deus). E ainda mais nesta sociedade da informação que nos bombardeia incessantemente com mensagens, ruídos e sensações. Precisamos fazer silêncio, não só o externo, da palavra, mas também o interno, no corpo. A experiência do jejum confirma este paradoxo : o ‘grito do corpo’ é também o ‘silêncio do corpo’. Com efeito, salvo durante o sono, nosso corpo está constantemente trabalhando. Não é só o movimento exterior : mesmo parados, o corpo respira, o coração bate, e o aparelho digestivo digere os alimentos. Com nosso jejum damos um ‘dia livre’ ao estômago para ajudar-nos a fazer silêncio em nosso corpo e, de quebra, em nosso coração e espírito. É assim : passadas as primeiras retorsões o corpo, sem alimento no estômago, se aquieta e pacifica, permitindo – ainda que não automaticamente – que o espírito também se acalme.
Jejum e privação
No fundo, estamos falando de um princípio que conhecemos bem, não só por experimentá-lo em nós mesmos mas também porque o vemos em nossa sociedade de opulência : ter todas as necessidades sobejamente satisfeitas põe um ponto de preguiça à ação e à mudança. Sim, ter todas as necessidades satisfeitas acaba por adormecer a pessoa. Ao contrário, quando algo falta, quando aparecem a incomodidade e a carência – e mais ainda quando essa privação é voluntária – então se estimulam a criatividade e as energias transformadoras. Por isso, introduzir deliberadamente em nosso estilo de vida, carências modificadores pode ajudar-nos a sair dos hábitos que nos configuram. E nesse sentido, o jejum pode ser essa pequena modificação que nos ‘transforme os hábitos’, nos tire de nossa rotina, nos desacomode e nos estimule.
Jejum e misericórdia
Seguindo a sabedoria popular que diz ‘só damos valor ao que temos quando o perdemos’, a privação ocasional do alimento nos predispõe ao agradecimento pelas vezes que comemos. Abster-nos de comer durante certos períodos de tempo nos lembra daqueles que estão privados de comida contra a sua vontade, ajuda-nos a identificar-nos com os famintos e a tê-los presentes em nossa oração. Por acaso não o experimentamos? O jejum voluntário nos torna mais sensíveis às necessidades dos demais e mais agradecidos pelos bens que recebemos; ajuda-nos a ser mais generosos e, por fim, mais misericordiosos.
Este é precisamente um dos sinais do autêntico jejum : se o jejum nos torna mais orgulhosos e mais satisfeitos conosco mesmos, se nos faz sentirmo-nos ‘melhores’ que os demais, mau sinal. Mas se, pelo contrário, o jejum nos torna mais simples e humildes, mais conscientes de nossa própria fragilidade e debilidade, mais compassivos e compreensivos com as fraquezas alheias, finalmente, mais misericordiosos, então, sim, está contribuindo para que Deus nos modele segundo o que Ele é. O prefácio III da Quaresma formula muito bem isso quando proclama : ‘Quisestes que vos rendêssemos graças por meio da abstinência e que, moderando nossos excessos de pecadores, nos leve a imitar vossa bondade, proporcionando alimento aos que têm fome’.
Jejum e domínio de si
Sabemo-lo
muito bem : a autêntica felicidade do ser humano não provém de fora, dos bens
que alguém possui ou das experiências que alguém vive. A felicidade e a realização
humanas têm muito a ver com essa capacidade de superar o próprio egoísmo, tendo
em vista abrir-nos a um amor que exige de nós o esforço da própria renúncia. E,
em linguagem cristã, com a abertura a um Amor que nos pede seguir antes a sua
Vontade do que a nossa.
Nesse
sentido, a privação voluntária do alimento tem muito a ver com esse esforço.
Porque, em definitivo, o jejum – como a castidade – supõe exercer uma certa
violência sobre o próprio corpo. Por isso deve ser praticado sempre
voluntariamente ‘com grande ânimo e
liberalidade’ – como diria Santo Inácio – com alegria e paz interior,
chegando a ser capaz de ‘amar o jejum’
(2).
É verdade
que a vida nos traz muitas ocasiões de pôr em prática nossa capacidade de
sacrifício. Mas não estamos falando de renúncia pela renúncia, e sim, para o
melhor e mais equilibrado desenvolvimento de si mesmo. Ao ser mais donos de nós
mesmos, ao ser mais nós mesmos, poderemos amar e servir mais autenticamente os
outros. Assim o jejum pode ser ajuda para o domínio de si em função do serviço do
Reino. Um fragmento de Siddartha
ilustra muito bem isso. Ainda que seja um texto de ficção, seu sentido
ajusta-se bem com o que estamos dizendo :
Siddartha
foi à casa do comerciante Kamaswami, uma vivenda suntuosa. Alguns criados o
introduziram num aposento adornado com tapetes caros, onde esperou o dono da
casa.
Kamaswami entrou.
Era um homem vivo, ágil, de cabelos abundantes e brancos, olhos cautelosos,
prudentes, boca cobiçosa. Saudaram-se amistosamente, o dono e o hóspede.
-
Disseram-me, começou a dizer o comerciante – que és brâmane, um homem
instruído, mas que procuras um emprego em casa de um comerciante. Será que
caíste na pobreza, ó brâmane, para te veres obrigado a procurar um emprego?
- Não,
disse-lhe Siddhartha – não caí na pobreza nem nunca estive nela. Saberás que
venho dos ‘samanas’ com os quais vivi
muito tempo.
- Se vens
dos ‘samanas’, como podes deixar de
estar na pobreza? Por acaso os ‘samanas’
não têm falta de tudo?
- Eu careço de
tudo – disse Siddhartha -, é como pensas. Todavia, careço de tudo
voluntariamente, por isso não estou na pobreza. (...)
- Muito bem.
E que tens para dar? Que aprendeste? Que sabes?
- Posso
pensar. Posso esperar. Posso jejuar.
- Isso é
tudo?
- Creio que
isso é tudo!
- E para que
serve? Por exemplo, para que serve o jejum?
- Para
muito, senhor. Quando um homem não tem nada para comer, jejuar é o mais
razoável que pode fazer. Por exemplo, se Siddhartha não houvesse aprendido a
jejuar, hoje teria de aceitar qualquer trabalho em tua casa ou em qualquer
outra parte, pois a fome o obrigaria a isso. Mas, desse modo, Siddhartha pode esperar
tranquilamente, não conhece a impaciência, não conhece a necessidade, pode ser
assediado pela fome por muito tempo e pode rir-se dela. Por isso é bom jejuar,
senhor (3).
Jejum e
saúde
No catálogo
da Biblioteca Nacional da Espanha (www.bne.es)
aparecem uns 70 livros ao digitar a palavra-chave ‘jejum’. Contudo, há um dado curioso : a maioria desses títulos faz
referência, logo de início, às virtudes terapêuticas e saudáveis do jejum,
seguidos dos títulos que falam de sua dimensão religiosa...
Ante a
crença razoável de que ‘precisamos comer
para ter saúde’, a resposta da medicina (e do senso comum) é clara : na
realidade, em nossas sociedades superalimentadas, ‘precisamos comer menos para ter mais saúde’ (4).
O curioso é
que às vezes somos capazes de nos privar de alimentos por causa da beleza, e
não obstante, não somos capazes por outros motivos. E isso inclusive depois de
experiências tão fortes como a descrita, com sinceridade admirável, por Juan
José Millás, quando de uma viagem a Serra Leoa :
De repente compreendo por que,
enquanto falava com Lucy, seu irmão dava cabeçadas. Pensei que seu sono era
consequência do calor excessivo, mas era causado por uma debilidade física,
fome. Estas crianças passam quase dois dias sem se alimentar, um detalhe que
não me tinha ocorrido acrescenta à história porque passo anos comendo, três
vezes por dia, inclusive desde que estou em Serra Leoa. No mês passado, o
médico me recomendou que uma vez por semana eu passasse só a frutas para limpar
o organismo e diminuir alguns quilos e o colesterol, mas não fui capaz de
seguir a dieta porque, no meio da tarde, parecia-me desfalecer...(5).
Alguns
conselhos
Para
finalizar este artigo, oferecemos alguns conselhos para quem se animar a
introduzir-se na prática do jejum :
- A melhor
maneira de fracassar no intento e não querer repetir a experiência é começar com
um jejum exagerado. Nosso corpo está habituado a determinados ritmos de alimentação;
por isso, toda modificação nesses hábitos deve ser feita de forma progressiva,
conhecendo o próprio organismo e suas respostas, sabendo até onde se pode
jejuar e sendo humildes para conhecer as próprias limitações inclusive nisso.
Mas uma vez que se tenha garantido um passo, então nada nos impede de tentar um
outro, pouco a pouco.
- Da mesma
forma é difícil dar regras de jejum que sirvam para todos. Cada um deve conhecer
seu corpo e até onde pode ir. As modalidades de jejum são variadas e cada
pessoa deve ir encontrando a sua, estando muito atentos para descobrir nossas
próprias reações e as consequências dessa prática em nós.
- Como todo
meio de crescimento pessoal e na vida de fé, é conveniente confrontar a
experiência com outra pessoa, mesmo se esta não pratica o jejum (basta que seja
sensata). Também neste assunto o acompanhamento é muito necessário.
- E
certamente, é preciso evitar as comparações : o que come, não despreze o que
não come. E o que não come, não julgue o que come (Rm 14,3). Não somos ‘melhores’ do que ninguém por jejuar, nem
os demais são ‘piores’ porque não
jejuam. Pobres de nós se julgarmos, segundo esses critérios.
-
Finalmente, uma observação : ‘jejum’
não significa ‘comer menos’ (isso é moderação),
nem ‘deixar de comer’ determinados
alimentos ou bebidas (isso é abstinência),
mas é simplesmente ‘não comer’.
A moderação e a abstinência são boas em
si mesmas, mas aqui estamos falando sobre o jejuar, o não comer, o deixar de
fazer uma ou algumas refeições das que temos normalmente. Que ninguém se
engane.
- Outra
coisa é beber. Jejuar implica também prescindir da bebida? Aqui as respostas
são bastante variadas em função ênfase que se queira dar a um ou outro aspecto.
O jejum dos monges e das monjas do deserto se referia tanto à comida como à bebida.
Alguns admitiam a água como única bebida. Portanto, se o jejum é prolongado,
seria uma insensatez não beber água em abundância, tal e como aconselham os
métodos de jejum terapêutico. Não é o mesmo jejuar por penitência ou fazê-lo
como ajuda para a vida de fé ou como denúncia ante a injustiça, como veremos a
seguir.
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(1) Anselm Grun. Le Jeûne, Prier avec le Corps et l’Esprit. Médias-paul, Paris 1997, p. 78.
(2) Este é precisamente o título de um precioso livro do qual, lamentavelmente, não existe em edição espanhola : Aimer le Jeûne. L’expérience monastique. Adalbert de VOGUÉ. Cerf, Paris, 1988. As referências históricas do presente artigo foram tomadas em boa parte deste livro.
(3) Hermann HESSE, Siddhartha, capítulo VI.
(4) Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 1 bilhão de pessoas adultas no mundo têm excesso de peso e pelo menos 300 milhões são obesas.
(5) Juan José Millás, Viaje al horror de Sierra Leona. EL PAÍS SEMANAL, 1427, 1 de febrero de 2004.
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