* Artigo de José Eizaguirre, Sm
É preciso reconhecer que o jejum não só
não está na moda como também provoca uma certa repulsa instantânea...portanto,
será necessária uma panorâmica prévia que nos ajude a compreender melhor o
sentido do jejum.
1. Dados
Históricos
O jejum na Bíblia
Em todas as grandes experiências
religiosas o jejum ocupa um lugar importante. O povo de Israel não é uma
exceção. No Antigo Testamento o jejum implica uma atitude de fé, de humildade e
de total dependência de Deus. Recorre-se ao jejum para estar melhor disposto para
o encontro com Deus; antes de enfrentar uma tarefa difícil; manifestar arrependimento,
suplicar o perdão ou recebê-lo; e também manifestar a dor causada por um
infortúnio doméstico ou nacional. Mas o jejum, inseparável da oração, também o
é da justiça, sem a qual, como já denunciavam os profetas, não tem sentido e
até pode ser hipócrita. O próprio Jesus antes de iniciar sua vida pública,
jejuou quarenta dias ‘impelido pelo
Espírito’ (Mt 4, 1-2). Um jejum que recorda os de Moisés, no Sinai, e Elias,
a caminho para o monte Horeb, ambos também de quarenta dias.
No tempo de Jesus, o jejum era uma
prática habitual entre os israelitas, unida a outros dois grandes pilares da
experiência religiosa : a oração e a esmola. Jesus não condena estes meios; ao
contrário, anima seus discípulos a praticá-los, porém, sem a hipocrisia de alguns
de seus contemporâneos. A leitura proclamada na Quarta-feira de Cinzas no-lo
recorda : Guardai-vos de praticar a vossa
justiça diante dos homens para serdes vistos por eles. Tu porém, quando deres
esmola...quando orardes...quando jejuardes...(Mt 6,1-2.5.16). Este texto
confirma a unidade das três formas clássicas de piedade habituais nos primeiros
cristãos. O jejum também está presente nos Atos dos Apótolos (At 13,2-3; 14,23),
sempre acompanhado da oração e especialmente antes de um envio missionário. E o
próprio Paulo ‘presume’ de suas
muitas fadigas, desvelos e jejuns (2Cor 6,5).
A experiência da Igreja primitiva
A insistência de Jesus não nos induz a
deixar de praticar o jejum, mas sim, a fazê-lo bem – ‘não como os hipócritas’ – com retidão de intenção e espírito de
justiça : Importava praticar estas coisas,
mas sem omitir aquelas (Mt 23,23). Todavia, o jejum não parece ser uma
prática habitual do grupo dos apóstolos : Por
acaso podem os amigos do noivo estar de luto enquanto o noivo está com eles?
Dias virão, quando o noivo lhes será tirado; então, sim, jejuarão (Mt
9,14-17). Este versículo seria o inspirador do jejum dos primeiros cristãos
que, precisamente para diferenciar-se dos judeus que jejuavam às segundas e
quintas-feiras, começaram a jejuar às quartas e sextas-feiras, em recordação do
dia ‘em que o Senhor foi morto’. A
Didaqué, esse precioso texto da época apostólica, insiste na prática do jejum
como preparação para o batismo e chega a indicar um ou dois dias de jejum antes
de recebê-lo. Junto a isso, parece claro que, dede os primeiros tempos da
Igreja, os cristãos guardavam o jejum desde o meio-dia da Sexta-feira Santa até
a manhã do Domingo de Páscoa. Esta preparação para a Páscoa servia de jejum
pré-batismal, posto que era costume celebrar os batismos na Vigília Pascal. Com
o tempo, este jejum se estendeu a toda a Semana Santa e inclusive aos 40 dias
anteriores, em recordação dos quarenta dias de jejum de Jesus no deserto.
Apogeu e decadência
A literatura que começou a florescer
com as primeiras experiências de vida eremítica atesta como o jejum era uma
prática inseparável da vida dos primeiros monges e monjas do deserto. A Regra
de São Pacômio, do princípio do século IV, estabelece para seus seguidores –
exceto para os enfermos – como dias de jejum, as quartas e sextas-feiras, o
mesmo que a Igreja estabelecida para todos os fiéis. Podemos ver nesta
indicação um sinal de que estes jejuns estavam sendo parcialmente abandonados
pelo povo cristão e que os monges queriam mantê-los em todo o seu rigor. De
fato, há quem considere o nascimento da vida eremítica e cenobítica como um
propósito de ‘reviver’ o fervor da
Igreja primitiva.
Chegados a este ponto é preciso
esclarecer que no tempo de Jesus e nos séculos posteriores, o que se entendia
por ‘jejum’ era ‘comer apenas uma vez por dia’, uma refeição tomada ao entardecer ou
na hora nona (meio da tarde).
Mas os monges e monjas do deserto que
começaram a jejuar dois dias por semana para recuperar esta prática da Igreja
primitiva, logo descobriram outros aspectos benéficos. Com efeito, o jejum
contribuía para ‘afugentar os demonios’,
conforme as palavras de Jesus : Essa espécie não pode sair a não ser com oração
e jejum (Mc 9,29) – e era uma valiosa ajuda para o esvaziamento, a pacificação
e o domínio das paixões, a liberdade interior e o encontro com Deus. Por isso,
não é de estranhar que nas experiências monásticas posteriores os dois dias
semanais de jejum tenham se convertido em cinco, e posteriorente, em sete.
Deste modo, o ‘jejum regular’, de todos os dias até a hora nona, tornou-se
cotidiano e inerente à vida monástica, ao mesmo tempo que o povo cristão foi se
limitando cada vez mais ao jejum quaresmal e pré-pascal e a outros dias fixados
no calendário litúrgico.
Com o tempo, ‘a única refeição’ que se
tomava no meio da tarde foi progressivamente adiantando-se para o meio-dia,
ocasionando um relaxamento no rigor desta prática. Com o passar dos séculos
introduziu-se o costume de fazer uma segunda refeição mais leve, no final do
dia. Isto ocorreu tanto entre os seculares como entre os próprios monges. A
Regra de São Bento (séc. VI), inspiradora de boa parte da vida monástica durante
toda a Idade Média, supôs uma certa diminuição dos ‘rigores’ do jejum de épocas precedentes, em parte devido aos novos
acentos que foram aparecendo na vida monástica.
Pouco a pouco, a prática do jejum se
enfraquecia entre os cristãos. Finalmente, já no século XIX, generalixou-se o
costume do ‘des-jejum’ matinal,
inclusive nos dias especialmente assinalados pela Igreja como ‘dias de jejum’.
Em nossos dias, os católicos jejuam nos
dias estabelecidos pela Igreja – Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa –
com similar incidência na prática, apesar do Concílio Vaticano II distingui-los
claramente : Tenha-se como sagrado o
jejum pascal; deve ser celebrado em todos os lugares na Sexta-feira da Paixão e
Morte do Senhor e ainda estender-se, conforme as circunstâncias, ao Sábado
Santo, para que deste modo se chegue ao gozo do Domingo da Ressurreição com ânimo
elevado e entusiasta (SC 110).
Porém, devemos admitir que inclusive
nesses dias o ‘jejum’ deve ser
colocado entre aspas pois em muitos casos é normal que se mantenham as três
refeições habituais : um desjejum normal, uma refeição um tanto menos copiosa
do que o normal e uma ‘ceia frugal’.
E a isso chamamos ‘dia de jejum’?
Razões de um declínio
Por que se atenuou tanto uma prática
determinante na vida da Igreja dos primeiros séculos? Porque a Igreja continou
orando e dando esmolas, e não obstante, abandonou o jejum? Os motivos são
variados; poderíamos resumir dizendo que seu sentido original foi perdido. Ou
melhor, que os cristãos não foram capazes de recriar e atualizar o mencionado
sentido.
Por exemplo : para a grande maioria dos
católicos, a palavra ‘jejum’ liga-se
à ‘penitência’. Uma associação
correspondente ao tratamento que recebe esta prática nos grandes documentos
eclesiais. Tanto no Código de Direito Canônico (cc. 1249-1253) como no
Catecismo da Igreja Católica (1434-1439), o jejum é mencionado fundamentalmente
como uma das Diversas formas de
penitência na vida cristã. E assim é entendido pela maioria dos fiéis. E
acontece que em nossa cultura a penitência provoca repulsa. O jejum está em
crise porque a penitência está em crise (em geral, tudo o que soe como
privação). E aqui se juntam dois fatores :
- Por um lado, na sociedade consumista
na qual vivemos, não é fácil falar de renúncias voluntárias, de asceses e de
limitações pessoais, nem muito menos de imposições alheias à liberdade do
indivíduo. Tudo isso tem características de retrocessos e cerceamentos ao
desenvolvimento da pessoa.
- Por outro lado, entre muitos cristãos
– praticantes ou não – guardam-se más recordações de experiências
desafortunadas dos tempos nos quais se impunham ‘jejuns e penitências’ com uma severidade hoje considerada
inadequada e que ao invés de uma interiorização pessoal, deu lugar em muitos
casos a uma resistência reflexa e permanente. Não é de estranhar que uma
concepção do jejum assim negativa tenha resultado num grande declínio de muitos
séculos. Esta prática desapareceu da vida dos cristãos devido ao estreito
espaço no qual foi encerrada. Porque o certo é que o jejum tem uma
riqueza de dimensões que ultrapassam largamento seu aspecto ‘penitencial’.
Fonte
:
*
José Eizaguirre, SM, é membro
da Família Marianista, na Espanha.
Artigo publicado em ‘Vida Nueva’,
2502 – fevereiro de 2006.
Traduzido do espanhol pelo Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora/Minas Gerais.
Traduzido do espanhol pelo Mosteiro da Santa Cruz, Juiz de Fora/Minas Gerais.
Revista Beneditina nrº 15, Março/Abril
de 2006, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de
Fora/Minas Gerais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário