* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete sobre a primeira pregação da Quaresma de 2014
‘A
quaresma começa todos os anos com a narração de Jesus que se retira para o
deserto por quarenta dias. Nesta meditação introdutória queremos tentar
descobrir o que foi que Jesus fez neste tempo, quais são os temas presentes na
narração evangélica, para aplica-los à nossa vida.
1. ‘O Espírito conduziu Jesus ao deserto’
O
primeiro tema é o do deserto. Jesus acabou de receber, no Jordão, a investidura
messiânica para evangelizar os pobres, curar os quebrantados de coração e
pregar o reino (cf. Lc 4, 18s). Mas não se apressa para realizar nenhuma dessas
coisas. Pelo contrário, obedecendo a um impulso do Espírito Santo, se retira no
deserto onde permanece quarenta dias. O deserto em questão é o deserto da
Judéia, que se estende a partir de fora das muralhas de Jerusalém até Jericó,
no Vale do Jordão. A tradição identifica o lugar com o assim chamado Monte da
Quarentena situado em frente ao Vale do Jordão.
Ao
longo da história tem havido multidões de homens e mulheres que escolheram
imitar este Jesus que se retira ao deserto. No Oriente, a começar por Santo
Antônio Abade, retiravam-se nos desertos do Egito ou da Palestina; no ocidente,
onde não existiam desertos de areia, se retiravam em lugares solitários,
montanhas e vales remotos. Mas o convite a seguir Jesus no deserto não é
dirigido somente aos monges e aos eremitas. De forma diferente, é dirigido a
todos. Os monges e os eremitas escolheram um espaço de deserto, nós temos que
escolher pelo menos um tempo de deserto.
A
Quaresma é uma oportunidade que a Igreja oferece a todos, sem distinção, para
viver um tempo de deserto sem ter que, por isso, abandonar as atividades
diárias. Santo Agostinho lançou este triste apelo :
‘Retorneis
para dentro do vosso coração! Onde quereis ir longe de vós? Retorneis da
vagabundagem que vos levou para fora do caminho; retorneis ao Senhor. Ele está
pronto. Primeiro retorne ao teu coração, tu que te tornaste estranho a ti
mesmo, por força de vagabundar fora : não conheces a ti mesmo, e procuras
aquele que te criou! Volta, retorna ao coração, separa-te do corpo... regresse
ao coração : lá examina o que talvez percebas de Deus, porque ali se encontra a
imagem de Deus; na interioridade do homem habita Cristo (1)’.
Reentreis
no próprio coração! Mas o que é e o que representa o coração, que tanto se fala
na Bíblia e na linguagem humana? Fora do contexto da fisiologia humana, onde
não é mais do que um órgão do corpo, embora vital, o coração é o lugar
metafísico mais profundo de uma pessoa; é o íntimo de todo homem, onde cada um
vive o seu ser pessoa, ou seja, o seu subsistir em si, em relação a Deus, do
qual tem origem e no qual encontra o seu fim, aos outros homens e à criação
inteira. Até mesmo na linguagem comum, o coração designa a parte essencial de
uma realidade. ‘Ir ao coração de um problema’ quer dizer ir à parte essencial
dele, da qual depende a explicação de todas as outras partes do problema.
Assim,
o coração de uma pessoa mostra o lugar espiritual onde é possível contemplar a
pessoa na sua realidade mais profunda e verdadeira, sem véus e sem fixar-se nos
seus aspectos marginais. É no coração que acontece o juízo de cada pessoa,
sobre o que traz dentro de si e que é a fonte da sua bondade e da sua maldade.
Conhecer o coração de uma pessoa quer dizer ter penetrado no santuário íntimo
da sua personalidade, pelo qual se conhece aquela pessoa pelo que realmente ela
é e vale.
Retornar
ao coração, portanto, significa retornar ao que há de mais pessoal e interior
em nós. Infelizmente, a interioridade é um valor em crise. Algumas causas desta
crise são antigas e inerentes à nossa própria natureza. A nossa ‘composição’,
ou seja, o sermos constituídos de carne e espírito, faz com que sejamos como um
plano inclinado, porém, inclinado, para o exterior, o visível e a
multiplicidade. Como o universo, depois da explosão inicial (o famoso Big
Bang), também nós estamos em fase de expansão e distanciamento do centro.
Estamos perpetuamente ‘de saída’, por meio daquelas cinco portas ou janelas que
são os nossos sentidos.
Santa
Teresa de Ávila escreveu um trabalho intitulado O castelo interior que é certamente um dos frutos mais maduros da
doutrina cristã da interioridade. Mas existe, infelizmente, também um ‘castelo
exterior’, e hoje constatamos que também é possível estar trancados neste
castelo. Trancados fora de casa, incapazes de reentrar. Prisioneiros da
exterioridade! Quantos de nós deveríamos fazer própria a amarga constatação que
Agostinho fazia sobre a sua vida antes da conversão : ‘Tarde te amei, beleza
tão antiga e tão nova, tarde te amei. Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu
fora. Ali te buscava. Deformado, me jogava nas belas formas das tuas criaturas.
Estavas comigo, e não estava contigo. Mantinham-me distante de ti as tuas
criaturas, inexistentes se não existissem em ti (2)’.
Aquilo
que se faz no exterior é exposto ao perigo quase inevitável da hipocrisia. O
olhar de outras pessoas tem o poder de desviar a nossa intenção, como certos
campos magnéticos fazem desviar as ondas. A ação perde a sua autenticidade e a
sua recompensa. O parecer toma a dianteira do ser. É por isso que Jesus nos
convida a jejuar e dar esmolas e orar ao Pai ‘no segredo’ (cf. Mt 6, 1-4).
A
interioridade é o caminho para uma vida autêntica. Fala-se tanto hoje de
autenticidade e se faz disso o critério de vitória ou não da vida. Mas onde
está, para o cristão, a autenticidade? Quando é que uma pessoa é realmente ela
mesma? Somente quando acolhe, como medida, Deus. ‘Fala-se tanto – escreve o
filósofo Kierkegaard - de vidas desperdiçadas. Mas desperdiçada é somente a
vida daquele homem que nunca se deu conta, porque nunca teve, no sentido mais
profundo, a impressão de que existe um Deus e que ele, justo ele, o seu eu,
está diante deste Deus (3)’.
De um
retorno à interioridade têm necessidade especialmente as pessoas consagradas ao
serviço de Deus. Em um discurso dado aos superiores de uma congregação
religiosa contemplativa, Paulo VI disse :
‘Hoje
estamos vivendo num mundo que parece tomado por uma febre que se infiltra até
no santuário e na solidão. Barulhos e estrondos invadiram todas as coisas. As
pessoas não conseguem mais recolher-se. Vítimas de milhares de distrações, elas
dissipam normalmente as suas energias atrás das várias formas da cultura
moderna. Jornais, revistas, livros invadem a intimidade das nossas casas e dos
nossos corações. É mais difícil do que antes encontrar uma oportunidade para
aquele recolhimento no qual a alma consegue estar plenamente ocupada em Deus’.
Mas
procuremos também ver como fazer, concretamente, para reencontrar e conservar o
hábito da interioridade. Moisés era um homem muito ativo. Mas está escrito que
ele tinha mandado construir uma tenda portátil e em cada etapa do êxodo fixava
a tenda fora do acampamento e regularmente entrava nela para consultar o
Senhor. Ali, o Senhor falava com Moisés ‘cara a cara, como um homem fala com
outro’ (Ex 33, 11).
Mas
até isso nem sempre é possível fazer. Nem sempre é possível retirar-se a uma
capela ou a um lugar solitário para reencontrar o contato com Deus. Por isso,
São Francisco de Assis sugere outra solução mais ao alcance das mãos. Enviando
os seus freis pelos caminhos do mundo, dizia : Nós temos um eremitério sempre conosco
onde quer que estejamos e toda vez que o queiramos podemos, como eremitas,
reentrar neste eremitério. ‘Irmão corpo é o eremitério e a alma o eremita que
ali habita dentro para orar a Deus e meditar’. É como ter um deserto sempre ‘em
casa’ ou melhor ‘dentro de casa’, onde é possível retirar-se com o pensamento
em cada momento, até mesmo andando pelo caminho.
Concluímos
esta primeira parte da nossa meditação escutando, como dirigidas a nós, a
exortação que Santo Anselmo de Aosta dirigiu ao leitor em uma sua famosa obra :
‘Ânimo,
mísero mortal, fuja por um curto período das tuas ocupações, deixa um pouco os
teus pensamentos tumultuados. Afasta nesse momento os graves problemas e coloca
de lado as tuas extenuantes atividades. Espera um pouco Deus e descansa nele.
Entra no íntimo da tua alma, exclua tudo, exceto Deus e o que te ajude a
procura-lo, e, fechada a porta, diga a Deus : Busco o teu rosto. O teu rosto eu
procuro, Senhor (4)’.
2. Os jejuns agradáveis a Deus
O
segundo grande tema presente na narração de Jesus no deserto é o jejum. ‘Por
quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome’ (Mt 4, 1b).
O que significa para nós, hoje, imitar o jejum de Jesus? Antes, com a palavra
jejum se entendia somente o limitar-se nos alimentos e nas bebidas e o
abster-se das carnes. Este jejum alimentar conserva ainda a sua validez e é
altamente recomendado, quando, é claro, a sua motivação é religiosa e não
apenas higiênica ou estética, mas não é mais o único e nem sequer o mais
necessário.
A
forma mais necessária e significativa de jejum chama-se hoje sobriedade.
Privar-se voluntariamente de pequenos ou grandes confortos, do que é inútil e
às vezes também prejudicial à saúde. Este jejum é solidariedade com a pobreza
de tantos. Quem não lembra as palavras de Isaías que a liturgia nos faz ouvir
no começo de toda Quaresma?
‘Por
acaso não consiste nisto o jejum que escolhi :
. em
repartir o teu pão com o faminto,
. em
recolheres em tua casa os pobres desabrigados,
. em
vestires aquele que vês nu
. e em
não te esconderes daquele que é tua carne?’ (Is 58, 6-7).
Tal
jejum também é uma resposta a uma mentalidade consumista. Em um mundo, que fez
do conforto supérfluo e inútil um dos fins da própria atividade, renunciar ao
supérfluo, saber privar-se de algo, deixar de recorrer sempre à solução mais
cômoda, do escolher a coisa mais fácil, o objeto de maior luxo, viver, em suma,
com sobriedade, é mais eficaz do que impor-se penitências artificiais. É, acima
de tudo, justiça para com as gerações que virão depois da nossa, que não devem
ser obrigadas a viver das cinzas do que nós consumimos e desperdiçamos. A
sobriedade também tem um valor ecológico, de respeito pela criação.
Mais
necessário do que o jejum de alimentos é hoje também o jejum das imagens.
Vivemos em uma civilização da imagem; viramos devoradores de imagens. Por meio
da televisão, a imprensa, a publicidade, deixamos entrar, em jorros, imagens
dentro de nós. Muitas delas não são saudáveis, transmitem violência e maldade,
não fazem mais que incitarem os piores instintos que nós trazemos dentro. São
embaladas expressamente para seduzir. Mas talvez o pior é que dão uma ideia
falsa e irreal da vida, com todas as consequências que se derivam no impacto
depois com a realidade, especialmente para os jovens. Pretende-se
inconscientemente que a vida ofereça tudo o que a publicidade apresenta.
Se não
criamos um filtro, uma barreira, transformamos, em um curto espaço de tempo, a
nossa fantasia e a nossa imaginação em um depósito de lixo. As imagens ruins
não morrem quando chegam ao nosso interior, mas fermentam. São transformadas em
impulsos para a imitação, condicionam terrivelmente a nossa liberdade. Um
filósofo materialista, Feuerbach, disse : ‘O homem é o que ele come’; hoje,
talvez, devêssemos dizer : ‘O homem é o que ele olha’.
Outro
destes jejuns alternativos, que podemos fazer durante a Quaresma, é aquele das
palavras más. São Paulo recomenda : ‘Não saia dos vossos lábios nenhuma palavra
inconveniente, mas, na hora oportuna, a que for boa para edificação, que
comunique graça aos que a ouvirem’ (Efésios 4, 29).
Palavras
inconvenientes não são só os palavrões; são também as palavras cortantes,
negativas que iluminam sistematicamente o lado fraco do irmão, palavras que
semeiam discórdia e desconfianças. Na vida de uma família ou de uma comunidade,
estas palavras têm o poder de fechar cada um em si mesmo, de congelar, criando
amargura e ressentimento. Literalmente, ‘mortificam’, ou seja, causam a morte.
São Tiago dizia que a língua está cheia de veneno mortal; com ela podemos
abençoar a Deus ou amaldiçoa-lo, ressuscitar um irmão ou mata-lo (cf. Tg 3,
1-12). Uma palavra pode ser pior do que um soco.
No
Evangelho de Mateus aparece uma palavra de Jesus que abalou os leitores do
Evangelho de todos os tempos : ‘Eu vos digo que toda palavra sem fundamento que
os homens disserem, darão contas no Dia do Julgamento’ (Mt 12, 36). Jesus
certamente não pretende condenar toda palavra inútil no sentido de não ‘estritamente
necessária’. Tomado no sentido passivo, o termo argon (a = sem, ergon = obra)
usado no Evangelho indica a palavra privada de fundamento, portanto, a calúnia;
tomado em sentido ativo, significa a palavra que não fundamenta nada, que não
serve nem mesmo para a necessária descontração. São Paulo recomendava ao
discípulo Timóteo : ‘Evita o palavreado vão e ímpio, já que os que o praticam
progredirão na impiedade’ (2 Tm 2,16). Uma recomendação que o Papa Francisco
nos repetiu mais de uma vez.
A
palavra inútil (argon) é o oposto da palavra de Deus, que é de fato definida,
pelo contrário, energes, (1Tess 2,13; Hb 4,12), ou seja, eficaz, criativa,
cheia de energia e útil a tudo. Neste sentido, o que os homens terão de dar
conta no dia do juízo é, em primeiro lugar, a palavra vazia, sem fé e sem
unção, pronunciada por quem deveria, pelo contrário, pronunciar as palavras de
Deus que são ‘espírito e vida’, especialmente no momento em que exercita o
ministério da Palavra.
3. Tentado por Satanás
Passemos
ao terceiro elemento da narração evangélica no qual queremos refletir : a luta
de Jesus contra o demônio, as tentações. Em primeiro lugar uma pergunta :
existe o demônio? Ou seja, a palavra demônio indica realmente alguma realidade
pessoal, dotada de inteligência e vontade, ou é simplesmente um símbolo, um
modo de dizer para indicar a soma do mal moral no mundo, o inconsciente
coletivo, a alienação coletiva e assim por diante?
A
principal evidência da existência do demônio nos Evangelhos não está nos vários
episódios de libertação de possessos, porque na interpretação destes fatos pode
ter influenciado as crenças antigas sobre a origem de certas doenças. Jesus é
tentado no deserto pelo demônio, esta é a prova. A prova é também os muitos
santos que lutaram na vida contra o príncipe das trevas. Eles não são uns ‘Dom
Quixote’ que lutaram contra moinhos de vento. Pelo contrário, eram homens muito
concretos e com a psicologia muito saudável. São Francisco de Assis uma vez
confidenciou a um companheiro : ‘Se os freis soubessem quantas ou quais
tribulações eu recebo dos demônios, não haveria um só que não iria começar a
chorar por mim (5)’.
Se
para muitos é um absurdo crer no demônio é porque se baseiam em livros, passam
a vida nas bibliotecas ou em escrivaninhas, enquanto o demônio não está
interessado nos livros, mas nas pessoas, especialmente, é claro, nos santos.
O que
pode saber sobre Satanás quem nunca teve que lidar com a realidade de satanás,
mas somente com a sua ideia, ou seja, com as tradições culturais, religiosas,
etnológicas sobre Satanás? Esses costumam tratar este assunto com grande
confiança e superioridade, descartando tudo como ‘obscurantismo medieval’. Mas
é uma falsa segurança. Como alguém que se gabasse de não ter nenhum medo do leão,
aduzindo como prova o fato de que já o viu tantas vezes pintado ou fotografado
e nunca se assustou.
É
completamente normal e coerente que não acredite no diabo, quem não crê em
Deus. Seria realmente trágico se alguém que não crê em Deus, cresse no diabo!
No entanto, pensando bem, é o que acontece em nossa sociedade. O demônio, o
satanismo e outros fenômenos conexos são hoje de grande atualidade. O nosso
mundo tecnológico e industrializado está cheio de magos, feiticeiros de cidade,
ocultismo, espiritismo, adivinhadores de horóscopos, vendedores de feitiços, de
amuletos, bem como de verdadeiras seitas satânicas. Expulso pela porta, o diabo
voltou pela janela. Ou seja, expulso pela fé, voltou com a superstição.
A
coisa mais importante que a fé cristã tem a dizer-nos, no entanto, não é que o
demônio existe, mas que Cristo venceu o demônio. Cristo e o demônio não são
para o cristão dois princípios iguais e contrários, como em certas religiões
dualísticas. Jesus é o único Senhor; Satanás não é nada mais do que uma
criatura ‘apodrecida’. Se lhe foi concedido ter poder sobre os homens, é para
que os homens possam ter a possibilidade de fazer livremente uma escolha de
campo e também para que ‘não se encham de soberba’ (cf. 2 Cor 12,7), achando-se
auto-suficientes e sem a necessidade de algum redentor. ‘O velho Satanás é
louco’ diz um canto espiritual negro. ‘Deu um tiro para destruir a minha alma,
mas errou a mira e destruiu, em vez disso, o meu pecado’.
Com
Cristo não temos nada a temer. Nada e ninguém pode nos prejudicar, se nós
mesmos não o quisermos. Satanás, dizia um antigo padre da Igreja, depois da
vinda de Cristo, é como um cão amarrado no quintal : pode latir e atacar o
quanto quiser; mas, se não somos nós que chegamos perto, não pode morder. Jesus
no deserto se libertou de Satanás para libertar-nos de Satanás!
Os
Evangelhos nos falam de três tentações : ‘Se tu és o Filho de Deus, diga para
essas pedras se transformarem em pão’; ‘Se eres o Filho de Deus, atira-te para
baixo’; ‘Todas estas coisas eu te darei, se, prostrando-te, me adorares’. Elas
têm um objetivo único e comum a todas : desviar Jesus da sua missão, desvia-lo
do objetivo pelo qual veio à terra; substituir o plano do Pai por outro
diferente. No batismo, o Pai tinha apontado a Cristo o caminho do Servo
obediente que salva com a humildade e o sofrimento; Satanás propõe um caminho
de glória e de triunfo, o caminho que todos então esperavam do Messias.
Ainda
hoje, todo o esforço do diabo é de desviar o homem do objetivo pelo qual veio
ao mundo que é o de conhecer, amar e servir a Deus nesta vida para gozá-lo
depois na outra. Distraí-lo, ou seja, atraí-lo para outro lugar, para outra
direção. Satanás, porém, é também astuto; não aparece pessoalmente com chifres
e cheiro de enxofre (seria muito fácil reconhece-lo); serve-se das coisas boas
levando-as ao excesso, absolutizando-as e transformando-as em ídolos. O
dinheiro é uma coisa boa, como o é o prazer, o sexo, o comer, o beber. Mas se
eles se transformam na coisa mais importante da vida, o fim, não mais meios,
então se tornam destrutivos para a alma e muitas vezes também para o corpo.
Um
exemplo particularmente relevante para o tema é o divertimento, a distração. O
descanso é uma dimensão nobre do ser humano; Deus mesmo recomendou o repouso. O
mal é fazer do jogo o objetivo da vida, viver a semana como espera do sábado à
noite ou do jogo no estádio no domingo, por não mencionar outros passatempos
muito menos inocentes. Neste caso, a diversão muda de significado e, mais do
que servir para o crescimento humano e aliviar o estreasse e o cansaço,
aumenta-os.
Um
hino litúrgico da Quaresma exorta a usar com mais moderação, neste tempo, as ‘palavras,
alimentos, bebidas, sono e diversões’. Este é um tempo para redescobrir por que
viemos ao mundo, de onde viemos, aonde iremos, que rota estamos seguindo.
Senão, pode acontecer conosco o que aconteceu com o Titanic ou, mais próximo de
nós no tempo e no espaço, com a Costa Concordia.
4. Por que Jesus foi para o deserto
Tentei
destacar os ensinamentos e exemplos que nos chegam de Jesus para este tempo da
Quaresma, mas tenho que dizer que até agora não falei do mais importante de
todos. Por que Jesus, depois do seu batismo, foi para o deserto? Para ser
tentado por Satanás? Não, nem sequer pensava nisso; ninguém vai de propósito
buscar tentações e ele mesmo nos ensinou a rezar para não sermos levados à
tentação. As tentações foram uma iniciativa do demônio, permitidas pelo Pai,
para a glória do seu Filho e como ensinamento para nós.
Foi ao
deserto para jejuar? Também, mas não principalmente para isso. Foi para rezar!
Sempre quando Jesus se retirava em lugares desertos era para orar ao seu Pai.
Foi para sintonizar-se, como homem, com a vontade divina, para aprofundar a
missão que a voz do Pai, no batismo, lhe tinha feito vislumbrar : a missão do
Servo obediente chamado a redimir o mundo com o sofrimento e a humilhação. Foi
em definitiva para orar, para estar em intimidade com o seu Pai. E isso é
também o objetivo principal da nossa Quaresma. Foi ao deserto pelo mesmo motivo
pelo qual, segundo Lucas, um dia, mais tarde, subiu ao Monte Tabor, ou seja,
para orar (Lc 9, 28).
Não se
vai ao deserto somente para deixar algo – o barulho, o mundo, as ocupações -;
vai-se principalmente para encontrar algo, ou melhor, Alguém. Não se vai
somente para reencontrar a si mesmo, para colocar-se em contato com o próprio
eu profundo, como em tantas formas de meditações não cristãs. Estar a sós consigo
mesmo pode significar encontrar-se com a pior das companhias. O crente vai ao
deserto, desce ao próprio coração, para renovar o seu contato com Deus, porque
sabe que ‘no homem interior habita a Verdade’.
É o
segredo da felicidade e da paz nesta vida. O que mais deseja um apaixonado do
que estar a sós, em intimidade, com a pessoa amada? Deus é apaixonado por nós e
deseja que nós nos apaixonemos por ele. Falando do seu povo como de uma esposa,
Deus disse : ‘A conduzirei ao deserto e falarei ao seu coração’ (Os 2,16).
Sabe-se qual é o efeito do enamoramento : todas as coisas e todas as outras
pessoas ficam pra trás, em segundo plano. Há uma presença que preenche tudo e
faz todo resto ‘secundário’. Não isola dos outros, que, de fato, torna ainda
mais atento e disponível para com os outros, mas como de reflexo, por
redundância do amor. Oh, se nós homens e mulheres de Igreja descobríssemos o
quanto está perto de nós, ao alcance das mãos, a felicidade e a paz que
buscamos neste mundo!
Jesus
está esperando por nós no deserto : não o deixemos sozinho em todo esse tempo.’
Fonte :
------------------------
(1) S. Agostinho, In Ioh. Ev., 18, 10 (CCL 36, p. 186). (Trad.Livre)
(2) S. Agostinho, Confessioni, X, 27. (Trad.Livre)
(3) S. Kierkegaard, La malattia mortale, II, in Opere, edição
de C. Fabro, Florência 1972, p. 663. (Trad.Livre)
(4) S. Anselmo, Proslogion, 1, (Opera omnia, 1, Edimburgo 1946,
p.97). (Trad.Livre)
(5) Cf.
Speculum perfectionis, 99 (FF 1798)
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