* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa,
OFM,
pregador
oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete
sobre a terceira pregação da quaresma de 2014
‘1. A reflexão sobre os sacramentos
Junto
do tema da Igreja, outro tema sobre o qual se nota um progresso na passagem dos
Padres gregos aos latinos é aquele dos sacramentos. Nos primeiros tinha faltado
uma reflexão sobre os sacramentos em si, ou seja, sobre a ideia de sacramento,
embora tendo tratado de forma excelente de cada mistério : batismo, unção,
eucaristia (1).
O
iniciador da teologia sacramental – daquilo que, a partir do século XII, será o
‘De sacramentis’ – é ainda mais uma
vez Agostinho. Santo Ambrósio com as suas duas séries de discursos ‘Sobre os sacramentos’ e ‘Sobre os mistérios’, antecipa o nome do
tratado, mas não o seu conteúdo. Também ele, de fato, se ocupa de cada
sacramento e não ainda dos princípios comuns a todos os sacramentos : ministro,
matéria, forma, modo de produzir a graça...
Então,
por que escolher Ambrósio como mestre de fé de um tema sacramental como é
aquele da Eucaristia sobre o qual queremos hoje meditar? A razão é que Ambrósio
é aquele que mais do que qualquer outro tem contribuído para o fortalecimento
da fé na presença real de Cristo na Eucaristia e lançou as bases para a futura
doutrina da transubstanciação. No ‘De
sacramentis’ escreve :
‘Este pão é pão antes das palavras
sacramentais; quando acontece a consagração, de pão torna-se carne de Cristo (...)
Com quais palavras se realiza a consagração e de quem são essas palavras? (...)
Quando se realiza o venerável sacramento, já não é mais o sacerdote que usa as
suas palavras, mas usa as palavras de Cristo. É, portanto, a palavra de Cristo
que realiza este sacramento’ (2).
No
outro escrito, sobre os mistérios, o realismo eucarístico é ainda mais
explícito. Diz :
‘A palavra de Cristo que pôde criar do nada o
que não existia, não pode transformar em algo diferente aquilo que existe? De
fato, não é algo menor dar às coisas uma natureza totalmente nova do que mudar
aquela que já tem (...). Este corpo que produzimos (conficimus) sobre o altar é
o corpo nascido da Virgem. (...) Com certeza é a verdadeira carne de Cristo que
foi crucificada, que foi sepultada; é, portanto, realmente o sacramento da sua
carne (...). O próprio Senhor Jesus proclama : 'Este é o meu corpo’. Antes da bênção das
palavras celestes usa-se o nome de outro objeto, depois da consagração
significa corpo’ (3).
Sobre
este ponto a autoridade de Ambrósio, no desenvolvimento posterior da doutrina
eucarística, prevaleceu sobre aquela de Agostinho. Este certamente acredita na
realidade da presença de Cristo na Eucaristia, mas, como vimos na meditação
passada, acentua ainda mais fortemente o seu significado simbólico e eclesial.
Alguns dos seus discípulos chegarão a afirmar não só que a Eucaristia faz a
Igreja, mas que a Eucaristia é a Igreja : ‘Comer
o corpo de Cristo, não é nada mais do que tornar-se o corpo de Cristo’ (4).
A reação à heresia de Berengário de Tours que reduzia a presença de
Jesus na Eucaristia a uma presença só dinâmica e simbólica, provocou uma reação
unânime na qual as palavras de Ambrósio tiveram um papel importante. Ele é a
primeira autoridade que Santo Tomás de Aquino cita na sua Somma em favor da
tese da presença real (5).
A
expressão ‘corpo místico’ de Cristo,
que até agora tinha servido para designar a Eucaristia, passou aos poucos a
indicar a Igreja, enquanto que a expressão ‘verdadeiro
corpo’ normalmente foi reservada somente à Eucaristia (6). Esta particular inversão marca, de certa forma, o triunfo da
herança de Ambrósio sobre aquela de Agostinho. Expressões como aquelas do hino
Ave verum, onde o corpo eucarístico de Cristo é saudado como ‘o verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria,
que foi imolado na cruz e de cujo lado jorraram água e sangue’, parecem
tiradas quase totalmente das palavras mencionadas acima por Ambrósio.
Podemos
resumir dessa forma a diferença entre as duas perspectivas. Dos três corpos de
Cristo – o corpo verdadeiro ou histórico de Jesus nascido de Maria, o corpo
eucarístico e o corpo eclesial – Agostinho une estreitamente o segundo e o
terceiro, o corpo eucarístico e aquele da Igreja, diferenciando-os do corpo
real e histórico de Jesus; Ambrósio une, de fato identifica, o primeiro com o
segundo, ou seja, o corpo histórico de Cristo e aquele eucarístico,
distinguindo-os do terceiro, ou seja, do corpo eclesial.
Neste
sentido, se poderia ir muito além, caindo em um realismo exagerado, quase que –
como dizia uma fórmula contrária à heresia de Berengário - o corpo e o sangue
de Cristo estivessem presentes no altar ‘sensivelmente
e fossem, na verdade, tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados
pelos dentes dos fieis’ (7). Mas
o remédio de tal perigo estava na mesma noção de sacramento já claro na
teologia. Que a Eucaristia não é uma presença física, mas sacramental, mediada
por sinais que são, de fato, o pão e o vinho.
2. A Eucaristia e a Beraka judaica
Se
existe um limite na visão de Ambrósio, esse é a ausência de qualquer referência
à ação do Espírito Santo na produção do corpo de Cristo sobre o altar. Toda a
eficácia reside nas palavras da consagração. Elas são para ele palavras
criativas, ou seja, palavras que não se limitam a afirmar uma realidade
existente, mas produzem a realidade que significam, como a frase ‘fiat lux’ da criação. Isso influenciou
na pouca importância que teve na liturgia latina a epiclese do Espírito Santo,
que desempenha, pelo contrário, nas liturgias orientais um papel essencial como
aquele das palavras da consagração.
As
novas Orações Eucarísticas fizeram explícito, sobre esse ponto, o que no Cânone
romano somente era mencionado implicitamente. A frase : ‘Santifica, oh Deus, esta oferta com a potência da tua benção’,
equivale na verdade a dizer : ‘Santifica,
Oh Deus, esta oferta com a potência do teu Santo Espírito’, e talvez teria
sido melhor, no momento de traduzir o Cânone romano nas línguas modernas,
explicitar neste sentido o significado da frase, de modo que nem sequer esta
venerável oração eucarística ficasse sem uma verdadeira epiclese ao Espírito
Santo.
Mas há
uma lacuna maior, da qual se começa a dar-se conta, e que não diz respeito só a
Ambrósio e nem sequer somente aos Padres latinos, mas à explicação do mistério
eucarístico no seu todo. Mais do que nunca, vemos aqui como o estudo dos Padres
não só nos ajuda a recuperar tesouros antigos, mas também a abrir-nos ao novo
que emerge na história; a imitá-los não só no conteúdo, mas também no método
que era o de colocar a serviço da palavra de Deus todos os recursos e os
conhecimentos disponíveis no seu contexto cultural.
O novo
recurso que temos hoje para compreender a Eucaristia é a aproximação entre
cristãos e judeus. Desde os primeiros dias da Igreja, vários fatores históricos
levaram a acentuar a diferença entre o cristianismo e o judaísmo, até contrapô-los
entre si, como faz já Ignácio de Antioquia (8).
Destacar-se dos hebreus – na data da Páscoa, nos dias de jejum, e em tantas
outras coisas – se torna uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação
frequentemente direcionada aos próprios adversários e aos hereges é aquela de ‘judaizar’.
A
respeito da Eucaristia, o novo clima de diálogo com o judaísmo tornou possível
uma melhor compreensão da sua matriz hebraica. Como não é possível entender a
Páscoa cristã, a menos que seja considerada como o cumprimento do que a Páscoa
hebraica prenunciava, assim não é possível compreender completamente a
Eucaristia se ela não é vista como o cumprimento do que os hebreus faziam e
diziam ao longo da sua refeição ritual. O próprio nome Eucaristia não é nada
mais do que a tradução de Beraka, a oração de bênção e agradecimento feita
durante esta refeição. Um primeiro resultado importante dessa mudança foi que
hoje nenhum estudioso sério avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã
seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo,
como se tem tentado fazer por mais de um século.
Os
Padres da Igreja conservam as Escrituras do povo hebraico, mas não a sua
liturgia, à qual não podiam mais participar, depois da separação da Igreja da
Sinagoga. Assim, para a Eucaristia utilizaram as figuras contidas nas
Escrituras – o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná
-, mas não o concreto contexto litúrgico no qual o povo hebraico celebrava
todas estas memórias que era a refeição espiritual celebrada, uma vez por ano,
na ceia pascal (o Seder) e semanalmente no culto da sinagoga. O primeiro nome
pelo qual a Eucaristia foi designada por Paulo no Novo Testamento é o de ‘refeição do Senhor’ (kuriakon deipnon)
(1 Cor 11, 20), com evidente referência à refeição hebraica pela qual se
diferencia já pela fé em Jesus.
É a
perspectiva em que se coloca também Bento XVI no capítulo dedicado à
Instituição da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo
a opinião agora predominante dos estudiosos, ele aceita a cronologia joanina
segundo a qual a ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene
refeição de adeus; com Lous Bouyer, também Bento XVI acredita que seja possível
‘traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã,
isto é, do cânone, da beraka hebraica’ (9).
Por
várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica, tentou-se
explicar a Eucaristia à luz da filosofia, especialmente das noções
aristotélicas de substância e acidente. Também isso era um colocar a serviço da
fé os conhecimentos novos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres.
Nos nossos dias, temos que fazer o mesmo com os novos conhecimentos de ordem,
desta vez, históricas e litúrgicas mais do que filosóficas.
Com
base nos estudos já realizados nessa direção, especialmente o de L. Bouyer (10), gostaria de mostrar a luz intensa
que recai sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrações evangélicas
da instituição sobre o fundo do que sabemos da refeição espiritual hebraica. A
novidade do gesto de Jesus não será diminuída, mas exaltada ao máximo.
3. O que aconteceu naquela noite
Um
texto que mostra os laços estreitos entre a liturgia judaica e a ceia cristã é
a Didaqué. Este texto não é nada mais do que uma coleção de orações da
sinagoga, com o acréscimo, aqui e ali, das palavras ‘pelo teu servo Jesus Cristo’; o resto é idêntico à liturgia da
sinagoga. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas ‘berakah’ que em grego é traduzido por ‘Eucaristia’. A beraka resume a
espiritualidade da antiga Aliança e é a resposta de benção e de ação de graças
que Israel dá à palavra de amor dirigida-lhe pelo seu Deus.
O rito
seguido por Jesus ao instituir a Eucaristia acompanhava todas as refeições dos
Hebreus, mas assumia uma particular importância nas refeições em família ou em
comunidade no sábado e nos dias festivos. No início da refeição, cada um por
sua vez tomava pela mão uma taça de vinho e, antes de leva-la aos lábios,
repetia uma benção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no
momento do ofertório : ‘Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei dos
séculos, que nos destes este fruto da videira’. É o primeiro cálice de
vinho.
Mas a
refeição começava oficialmente só quando o pai de família ou o chefe da
comunidade tinha partido o pão que tinha que ser distribuído entre os
convidados. E, de fato, Jesus, logo após a frase, toma o pão, recita a benção,
parte-o e o distribui dizendo : ‘Este é o meu corpo...’ E aqui o rito,
que era somente uma preparação, se torna realidade. Depois da benção do pão,
que era considerada como uma benção geral por todo o alimento, serviam-se os
pratos de costume.
Se os
precedentes da Eucaristia se encontram na refeição ritual dos Judeus, então não
tem mais significado especial saber se a festa da Páscoa coincidia com a
Quinta-feira Santa ou com a Sexta-feira Santa. Jesus não associou a Eucaristia
com nada particular próprio do alimento da Páscoa (deixando de lado a
incompatibilidade da data, não há qualquer referência ao consumo do cordeiro e
das ervas amargas), mas apenas com aqueles elementos que fazem parte do rito de
cada dia : ou seja, a fração do pão no começo e com a grande oração de ação de
graças no final. O caráter pascal da última ceia é inegável, mas é independente
destas discussões e se explica com o nexo que Jesus coloca entre a Eucaristia (‘o meu sangue derramado por vós’) e a sua
morte de cruz. É ali que se realiza, de acordo com João, a figura do cordeiro
pascal ao qual ‘não se quebra nenhum osso’
(Jo 19,36).
Mas
voltando ao ritual hebraico. Quando o jantar está acabando e as iguarias foram
consumidas, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a
celebração e dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no
começo. Estava prescrito que o presidente recebesse a água do mais jovem dos
presentes e talvez João a tenha dado a Jesus. Mas, o Mestre, em vez de
deixar-se servir, dá uma lição de humildade, lavando os seus pés. Terminado
isso, tendo diante de si uma taça convida a fazer as três orações de
agradecimento : a primeira por Deus criador, a segunda pela libertação do
Egito, a terceira para que continue no presente a sua obra. Concluída a oração,
a taça passava de mão em mão e cada um bebia. Eis o rito antigo, realizado
tantas vezes por Jesus em vida.
Lucas
diz que depois de ter ceado Jesus tomou o cálice dizendo : ‘Este cálice é a nova aliança no meu Sangue
que é derramado por vós’. Algo decisivo acontece quando Jesus acrescenta a
estas palavras a fórmula das orações de agradecimento, ou seja, a beraka
hebraica. Aquele rito era um banquete sacro no qual se celebrava e se agradecia
um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma
aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. O alimento cotidiano
abençoava a Deus por aquela Aliança, mas agora, do momento em que Jesus decide
dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela
antiga Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.
Naquele
momento, com poucas e simples palavras, ele abre, oferece e estreita com os
seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Quando Jesus passa aquele cálice é
como se dissesse : ‘Até agora, todas as vezes que tivestes celebrado esta refeição ritual
tivestes comemorado o amor de Deus Salvador que vos redimiu do Egito. A partir
de agora, toda vez que repetirdes o que fizemos hoje, o fareis não mais em
comemoração de uma salvação da escravidão material no sangue de um animal; o
fareis em memória de mim, filho de Deus que dá o seu Sangue para redimir-vos
dos vossos pecados. Até aqui tivestes comido alimento normal para celebrar uma
libertação material; agora comereis a mim, alimento divino sacrificado por vós,
para fazer-vos uma só coisa comigo. E me comereis e bebereis o meu Sangue, no
mesmo ato em que eu me sacrifico por vós. Esta é a nova e eterna Aliança no meu
amor’.
Acrescentando
as palavras ‘fazei isto em memória de mim’,
Jesus dá um alcance ilimitado ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao
futuro. Tudo o que ele fez até agora na ceia é colocado nas nossas mãos.
Repetindo o que ele fez, se renova aquele ato central da história humana que é
a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que sobre a cruz se torna
evento, na ceia nos é dado como sacramento, ou seja, como memorial perene do
evento. O evento acontece apenas uma vez (semel). (Hb 10,12), o sacramento, sempre que o quisermos
(quotiescumque) (1 Cor 11,26).
A
idéia do ‘memorial’ que Jesus retoma do ritual hebraico do sábado e dos dias
festivos, referida em Êxodos 12, 14 contém a própria essência da Missa, a sua
teologia, o seu significado íntimo para a salvação. O memorial bíblico é muito
mais do que uma simples comemoração, do que uma simples lembrança subjetiva do
passado. Graças a ele, intervém, fora da mente do orante, uma realidade que tem
uma existência própria, que não pertence ao passado, mas existe e obra no presente
e continuará a obrar no futuro. O memorial que até agora era o compromisso da
fidelidade de Deus a Israel, agora é o corpo partido e o sangue derramado do
Filho de Deus; é o sacrifício do Calvário ‘representado’
(ou seja, tornado novamente presente) para sempre e para todos.
Aqui
descobre-se o significado e a preciosidade da insistência de Ambrósio e, atrás
dele, de forma mais evoluída, dos teólogos escolásticos e do concílio de
Trento, sobre a presença ‘verdadeira,
real e substancial de Cristo’ na Eucaristia (11). Só assim, de fato, é
possível manter no ‘memorial’
instituído por Jesus o seu caráter objetivo de dom absoluto, sem condições,
independente de tudo, até mesmo da fé de quem o recebe.
4. A nossa assinatura no dom
Qual é
o nosso lugar no drama humano-divino que temos lembrado? A nossa reflexão sobre
a Eucaristia deve levar-nos a descobrir justamente isso. É para nós, de fato,
para envolver-nos na sua ação, que Jesus fez do seu dom um ‘sacramento’.
Na
Eucaristia acontecem dois milagres : um
é aquele que faz do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo, o outro é
aquele que faz de nós ‘um sacrifício vivo
agradável a Deus’, que nos une ao sacrifício de Cristo, como autor, e não
apenas como espectadores. No ofertório oferecemos o pão e o vinho que para Deus
não tinham, é claro, nem valor nem significado por si mesmos. Agora, na
consagração, é Cristo que coloca aquele valor que eu não posso colocar na minha
oferta. Neste momento pão e vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo que se
entrega à morte em um supremo ato de amor ao Pai.
Eis
então o que aconteceu : o meu pobre dom
privado de valor tornou-se o dom perfeito para o Pai. Jesus não dá somente a si
mesmo no pão e no vinho, também nos pega e nos transforma (misticamente, não
realmente) em si mesmo, também nos dá o valor que tem o seu dom de amor ao Pai.
Naquele pão e naquele vinho estamos também nós; ‘Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma’, escreve
Agostinho (12).
Gostaria
de resumir, com a ajuda de exemplo humano, o que acontece na celebração
eucarística. Pensemos em uma grande família em que há um filho, o primogênito,
que admira e ama desmedidamente seu próprio pai. Para o seu aniversário deseja
fazer-lhe um presente precioso. Antes, porém, de apresenta-lo pede, em segredo,
a todos os seus irmãos e irmãs que coloquem a sua assinatura nesse dom. Este
chega, portanto, nas mãos do pai como sinal do amor de todos os seus filhos,
sem distinção, mesmo que, na verdade, só um pagou o preço dele.
É o
que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama infinitamente o Pai
Celestial. A ele quer fazer a cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso
que se possa pensar, aquele da sua própria vida. Na Missa ele convida todos os
seus ‘irmãos’ a colocarem a sua
assinatura no dom, de modo que ele chega a Deus Pai como o dom indistinto de
todos os seus filhos, mesmo que só um tenha pagado o preço de tal dom. E que
preço!
A
nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no
cálice; a nossa assinatura, explica Agostinho, é especialmente o amém que os
fieis pronunciam no momento da comunhão : ‘Àquilo
que sois respondeis : Amém e respondendo o assinais. Ouves, de fato : O corpo
de Cristo, e respondes : Amém. Sejas membro do corpo de Cristo, para que seja
verdadeiro o seu Amém... Sejais aquilo que vês e recebeis aquilo que sois’ (13). Toda a eclesiologia eucarística
de Agostinho que lembramos semana passada encontra aqui o seu campo de
aplicação. Se não é possível dizer que a Eucaristia é a igreja (como chegam a
afirmar alguns dos seus discípulos), pode-se e deve-se dizer que a Eucaristia
faz a Igreja.
Sabemos
que quem assinou um compromisso tem o dever de honrar a própria firma. Isso
significa que, saindo da Missa, temos que fazer também nós da nossa vida um dom
de amor ao Pai e aos irmãos. Temos que dizer também nós, mentalmente, aos
irmãos : ‘Tomai, comei; este é o meu
corpo’. Tomai o meu tempo, as minhas capacidades, a minha atenção. Tomai
também o meu sangue, ou seja, os meus sofrimentos, tudo o que me humilha, me
mortifica, limita as minhas forças, a minha mesma morte física. Quero que toda
a minha vida seja, como aquela de Cristo, pão partido e vinho derramado pelos
outros. Quero fazer de toda a minha vida uma eucaristia.
Recordei
a Didaqué, como o texto que documenta a fase de transição da liturgia hebraica
para aquela cristã. Terminamos com uma oração sua que inspirou tantas orações
eucarísticas subsequentes :
‘Como este pão partido estava
espalhado sobre as colinas e recolhido tornou-se
uma só coisa,
Assim a tua Igreja se recolha dos
confins da terra no teu reino
porque tua é a glória e a potência
por Jesus Cristo nos séculos’.
Amem
Fonte :
*Artigo na íntegra
http
: //www.zenit.org/pt/articles/texto-completo-da-terceira-pregacao-de-advento-do-pe-raniero-cantalamessa-ofmcap
------------------------
(1) Cf. J. Kelly, Il
pensiero cristiano delle origini, cit., pp. 415 ss
(2) Ambrósio, De sacramentis, IV,14-16
(3) Ambrósio,
De mysteriis, 52-53
(4) Guglielmo
di Saint-Thierry, PL 184, 403
(5) Cf. S.
Th., III, q.LXXV. aa. 1 ss
(6) É o processo reconstruído por H. de Lubac, in Corpus
Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au Maoyen Age, Aubier, Paris
1949
(7) Denzinger-Schoenmetzer,
Enchiridion Symbolorum, nr. 690
(8) Ignacio de Antiquioa, Epístola aos Magnésios, 10,3
(9) J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol .II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie.
Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966
(10) Além do livro citado de L. Bouyer, cf. A. Baumstark, Liturgie comparée,
Chevetogne 1953; L. Alonso
Schoekel, Meditaciones biblicas sobre la
Eucaristia, Sal Terrae, Santander 1986 ; Seung Ai Yang, ‘Les repas sacrés dans
le Judaisme de l’époque hellénistique’, in
Encyclopedie de l’Eucaristie, du Cerf, Paris 2000, pp. 55-59
(11) Cf. Conc. Tridentino, Canon 1 de SS. Eucharistiae sacramento
(DS, 1651)
(12) Agostinho, De civitate Dei, X, 6 (CCL 47, 279 (‘ In ea re
quam offert, ipsa offertur’)
(13) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 s.)
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