Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo do Padre Enrique Bayo,
Missionário Comboniano
‘Caminha normalmente. Nada sugere
que, há sete meses, tenha sido atingido por quatro balas de uma Kalashnikov nas
pernas. Felizmente, as balas não tocaram nos seus ossos, nervos ou
articulações. Este providencial – quase milagroso – acontecimento não foi o
único : «Um avião da Cruz Vermelha estava disponível no dia do ataque para
me transferir para um hospital em Nairobi, Quênia. A Providência tornou ainda
possível que, rapidamente, se encontrasse um dador de sangue compatível e,
assim, fazer a transfusão que eu precisava. Providencial, também, foi que uma
das pessoas que me atacou perdeu o seu telemóvel no meu quarto, o que forneceu
pistas que permitiram descobrir os autores do ataque e lançar as bases para que
algo semelhante não volte a acontecer. Muitas circunstâncias felizes para me
fazer ver que o Senhor estava no domínio do que me aconteceu», sublinha
Christian Carlassare, bispo eleito de Rumbek.
«Eu compreendi – refere D.
Carlassare – que o ataque foi para me intimidar, para me assustar e para me
manter afastado de Rumbek. A minha impressão é que, durante os dez anos em que
esteve vacante, a diocese foi ficando refém de um pequeno grupo de poder, com
interesses específicos, a quem a minha presença incomodou.»
Poucos dias após o ataque, 41
pessoas foram presas. Seis estão atualmente na prisão e cerca de 20 estão
acusadas, incluindo alguns padres e agentes pastorais. O processo judicial
continua e ainda não há sentença, pelo que o bispo eleito apela à prudência,
consciente da situação incerta em que se encontra. «Como posso trabalhar se
ainda não está tudo esclarecido? Em qualquer caso, em diálogo com a nunciatura,
estamos à procura de uma data para regressar ao Sudão do Sul. Pela minha parte,
estou determinado a levar esta responsabilidade até ao fim, como um pai que não
pode abandonar os seus filhos. O ataque teve lugar no Domingo do Bom Pastor e
guardo na minha mente este ícone do Bom Pastor que se preocupa e dá a vida
pelas suas ovelhas.»
Perdoar
Embora esteja consciente da
oposição inevitável que qualquer pessoa que exerça autoridade, como um bispo,
pode enfrentar, D. Carlassare nunca imaginou que seria alvo de uma ação tão
violenta. No entanto, impressiona a sua forma de interiorizar o que aconteceu.
«Desde o primeiro momento, abandonei-me nas mãos de Deus, sabendo que Ele
poderia beneficiar a missão com o que me aconteceu. Nos primeiros dias acordei
a pensar que tudo tinha sido um pesadelo, mas quando fui entrevistado na cama
do hospital, do meu coração brotaram palavras de reconciliação e perdão que eu
não tinha preparado. Conceder o perdão naquele momento foi para mim uma
libertação do medo, ressentimento, desconfiança e desconforto e, assim,
continuar a acreditar no processo que a Igreja está a levar a cabo no Sudão do
Sul, para que este povo possa viver em paz. Com o passar do tempo, vejo o que
me aconteceu como uma forma de eu carregar na minha carne as feridas deste
país. Demasiados sul-sudaneses sofrem injustamente com a violência, são
atacados nas estradas ou forçados a fugir das suas terras, por isso, é para mim
um dom fazer causa comum com a situação de tantas pessoas.»
O ciclo
de violência
O conflito interno no Sudão do
Sul rasgou o tecido social e dividiu grupos étnicos. Um acordo de paz foi
assinado em 2019 entre o Governo e o grupo maioritário da oposição, mas ainda
há muito a fazer. Para Christian Carlassare, «a assinatura do acordo é um
passo em frente para a paz porque permitiu partilhar alguns poderes e cargos
governamentais, mas é necessário passar de um acordo entre ‘grandes atores’
para um acordo que chegue aos territórios onde os conflitos continuam e as
feridas ainda estão abertas. Há ainda quatro milhões de refugiados ou
deslocados do Sudão do Sul que perderam as suas terras, agora ocupadas por
milícias ou grupos não nativos da área. As armas estão em todo o lado e alguns
utilizam-nas de formas inaceitáveis. Além disso – continua o missionário
comboniano –, certos grupos estão a tirar partido dos recursos de todos
recorrendo a uma corrupção terrível. Fala-se do Sudão do Sul como de uma
cleptocracia, enquanto a população é vítima do roubo dos seus recursos e
privada da possibilidade de desenvolvimento.»
Neste contexto, a Igreja tem
uma missão fundamental para quebrar o ciclo de violência e permitir que o país
se levante : «Está presente em todas as comunidades e fala o Evangelho na
língua de cada povo, com uma mensagem comum de paz, unidade e reconciliação. É
urgente passar da narrativa do medo para uma narrativa positiva, que conduza à
reconciliação.» A este respeito, D. Carlassare considera importante o gesto
profético do Papa Francisco em 2019, quando beijou os pés dos líderes do Sudão
do Sul. «Muitos perguntaram-se como foi possível que o Santo Padre se curvasse
diante destes ‘pais da pátria’, que não são santos. Foi um gesto forte para
pressionar os líderes sul-sudaneses a porém de lado o seu ego e aceitarem um
compromisso, mas também para os fazer compreender que a única autoridade que
pode ser realmente uma ajuda para o povo é a autoridade que está disposta a
servir.»
Ultrapassar inimizades
O P.e Christian chegou ao Sudão
[o Sul tornou-se independente em 2011] aos 28 anos de idade com o entusiasmo da
sua recente ordenação. Foi enviado para trabalhar entre o povo Nuer na
comunidade de Old Fangak, que os Missionários Combonianos tinham aberto nove anos
antes. Durante quinze anos, sem interrupção, realizou o seu serviço pastoral
entre o povo Nuer, visitando as jovens comunidades cristãs e formando agentes
pastorais.
Enquanto estava em Old Fangak
foi nomeado bispo de Rumbek, uma diocese onde os Dincas são o grupo étnico
maioritário, algo que não preocupa muito D. Carlassare, embora reconheça que o
conflito do Sudão do Sul criou muita desconfiança entre os Nueres e os Dincas :
«Penso que as pessoas não identificam o missionário com um determinado grupo
étnico. Trabalhei entre os Nueres, mas não sou um nuer e trabalharei entre os
Dincas em Rumbek sem ser dinca. Nós, missionários, devemos ser pessoas abertas
e trabalhar na Igreja para diminuir a inimizade entre grupos. Os Dincas sabem
que eu amo o povo Nuer, mas também sabem que os posso amar da mesma forma.»
Dom e desafio
A diocese de Rumbek é um
desafio para o jovem prelado. Foi criada em 1975, mas teve de ser encerrada
durante os anos de guerra civil entre o Norte e o Sul do Sudão. Devido ao
conflito, a população sofreu com a fome durante a década de 1980. Nos anos 1990,
a diocese foi reaberta com a presença do bispo comboniano D. Cesare Mazzolari,
que revitalizou todas as estruturas eclesiásticas. «Era verdadeiramente um
santo, um visionário e um profeta, e levantou a Igreja do ponto de vista
pastoral e social», diz com convicção. A morte de D. Mazzolari, em 2011, deixou
a sede vacante até à nomeação de D. Carlassare, que vê o trabalho realizado
pelo seu antecessor como a razão da sua eleição. «Penso que a Santa Sé olhou
para os Missionários Combonianos porque somos uma congregação estável e bem
estabelecida no país, e que pode dar continuidade ao trabalho de D. Mazzolari.
Não foi tanto a minha pessoa em concreto, mas a confiança nos Missionários
Combonianos, que me trouxe a Rumbek.»
A memória de D. Mazzolari faz
com que a grande maioria dos católicos de Rumbek espere a chegada do novo bispo
com expectativa, algo que D. Carlassare vê como uma «espada de dois gumes»,
porque muitos pensam que «um bispo europeu pode dar esperança ao
desenvolvimento da diocese, algo que deve ser continuado, mas nunca sem a
contribuição dos cristãos». D. Mazzolari realizou numerosos projectos
sociais com ajudas que provinham do estrangeiro, razão pela qual o seu sucessor
insiste na necessidade de «passar para uma Igreja que cresça com os recursos
disponíveis no local, que conte com participação de todas as pessoas».
Ao concluir a entrevista, D.
Carlassare convidou os leitores da Além-Mar a superar a imagem
negativa de África que, frequentemente, transparece nos meios de comunicação
social. «Devemos saber olhar para o continente com olhos mais abertos, com
um grande coração, e descobrir tudo o que a África aporta à nossa velha Europa.
Não só recursos, que infelizmente causam conflitos em África, mas sobretudo a
sua cultura e a sua verdadeira riqueza : as pessoas.»’
Fonte : *Artigo
na íntegra
https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/642/o-perdao-libertou-me-do-medo/