Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS,
vice-presidente do Serviço Pastoral
dos Migrantes (SPM)
‘A noção de naufrágio remete ao
Mundo Antigo e à Idade Média, com suas embarcações frágeis e vulneráveis pelos
mares bravios. Lembra de forma toda particular os séculos XV e XVI, época dos
grandes descobrimentos e longas navegações, onde eram frequentes os ataques dos
piratas. Mas remete também à famigerada noite entre 15 e 16 de abril de 1912,
ano em que o imbatível Titanic, gigantesco titã dos mares,
chocou-se com um iceberg, causando a morte de quase 1500 pessoas.
E remete, ainda, às últimas
décadas do século XX e primeiras do século XXI, quando inúmeros imigrantes
perderam a vida, tanto na arriscada travessia das águas do Mediterrâneo, quanto
em outras travessias igualmente temerárias.
O naufrágio de imigrantes,
entretanto, de um ponto de vista figurado, traz à tona as tormentas de um modo
de produção que, em lugar da primazia sobre o trabalho e a pessoa humana,
privilegia a privatização dos lucros e a acumulação do capital. Trabalhadores e
trabalhadoras, num vaivém sucessivo e em sua grande maioria forçado, são vistos
como meras ‘peças de reposição’ de uma engrenagem complexa, impiedosa e
cada vez mais globalizada. Peças que tendem a ser, a um só tempo, desejadas e
rechaçadas.
Peças de reposição
O fato de que expressivos
deslocamentos humanos se põem em movimento pela face da terra, costuma revelar
turbulências ocultas. Representam, a bem dizer, agitação superficial e visível
de correntes subterrâneas invisíveis. Os terremotos ou maremotos provocados
pelas decisões políticas e econômicas, com seus efeitos em cascata, soem
produzir tsunamis populacionais que marcham em todas as direções.
Os imigrantes, considerados
como peças de reposição, são desejados onde e quando escasseiam os braços para
os serviços que, se de um lado requerem grande dispêndio de força e energia, de
outro dispensam especial qualificação técnica, sendo em geral precariamente
remunerados. Mas são igualmente rechaçados onde e quando a crise e o desemprego
rondam as portas. Tornam-se, então, estranhos e intrusos que, nos lugares em
que desembarcam, disputam as oportunidades e as migalhas do trabalho com a
população local.
Com frequência, de resto, a
acolhida e o rechaço ocorrem no mesmo espaço e de forma simultânea, de acordo
com a oscilação cíclica, turbulenta e contraditórias da produção capitalista.
‘Mão invisível’ e ‘dupla
ausência’
Nestes casos, não é difícil
constatar como a ‘mão invisível’ da obra de Adam Smith, Teoria
dos Sentimentos Morais (1759) não dispensa o punho de ferro das forças
da ordem. Numa palavra, quando o liberalismo (ou neoliberalismo) obtém ganhas
vultosos e mão-de-obra abundante, vale o credo da mão invisível. Entretanto,
quando o ciclo da crise vem acompanhado de rajadas de ventos furiosos e
contrários, seus representantes não hesitam em apelar para o punho de ferro da
polícia e do exército, no sentido de conter possíveis desordens sociais e
políticas.
Os senhores que, em tempos de
lucros fáceis e fartos, pregam a liberdade total do mercado, rejeitando toda e
qualquer intervenção do poder público, são os mesmos que, no momento da crise e
de menores taxas de rentabilidade, gritam pelo socorro do Estado autoritário.
Pressionado de um lado e de
outro, entre a terra natal definitivamente deixada para trás e um destino
incerto, os migrantes acabam se configurando como mais atual ‘bode
expiatório’, às vezes tanto na origem como no destino. Tendo abandonado a
própria pátria por não encontrar nela condições dignas de vida, não raro os
migrantes e refugiados são tidos como desordeiros no lugar onde tentam se fixar
e reconstruir o destino interrompido. Os que falham nesse propósito e procuram
retornar ao solo de onde partiram, também ali muitas vezes serão classificados
como estrangeiros e indesejáveis. Discriminados lá e cá, num polo e no outro.
Com o pé em cada lado, não se encontram em pátria alguma. ‘Dupla ausência’,
de que nos fala Abdelmalek Sayad.
Somando os danos ao meio
ambiente, causados pelo uso incorreto e indiscriminado dos recursos naturais,
por uma parte, e a superexploração da força humana, por outra, cabe-nos perguntar
até quando a Terra prosseguirá sua navegação sem risco de um colossal naufrágio
planetário?!’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://migramundo.com/um-olhar-sobre-o-naufragio-do-mundo-antigo-as-migracoes-contemporaneas/
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