Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Queremos com estas simples
reflexões evocar nossa vida espiritual na sua riqueza e complexidade. Trazer de
volta sentimentos vividos, memórias fortes de experiências marcantes de
encontros e desencontros, saudades e esperanças. Apesar de defendermos que
nossa vida espiritual é ‘nossa’, ‘pessoal’, se queremos ser
sinceros temos que admitir que não vivemos nossa vida sozinhos. E que o que dá
sabor, gosto, prazer à vida é que ela é vivida com muitas outras pessoas! Na
nossa tradição cristã desde tempos longínquos encontramos a figura dos mestres
das escolas filosóficas gregas, seguidos pelos ‘Padres e Madres do deserto’,
pelos ‘staretz’ russos, pelos ‘gurus’ do Oriente, e que hoje
conhecemos como acompanhantes ou orientadores espirituais. Eles se tornam
companheiros e companheiras imprescindíveis no caminho.
Se quiséssemos escolher três
palavras para evocar atitudes fundamentais básicas para nossa vida espiritual,
poderíamos tomar estas : Escutar – Acompanhar – Amar. Poderíamos inclusive
dizer que a última (ou seria a primeira?) – AMAR – engloba as outras duas? Só
ama de verdade quem sabe escutar e está disposto(a) a acompanhar! E não pode
acompanhar de verdade quem não escuta o outro autenticamente!
Essas reflexões terão um efeito
diferenciado conforme o público que as vai ler. Para aqueles e aquelas que já
provaram de uma orientação espiritual, seja como acompanhantes ou acompanhados,
terá a marca de uma renovação nesta importante missão. E para quem ainda não
teve essa oportunidade, quiçá seja um estímulo para abrir-se à importância que
cada uma destas 3 palavras tem na vida de todos nós!
Comecemos pelo ESCUTAR.
Começando pelo ‘escutar’
Creio que se há algo importante
a ser levado a cabo por nós, é aprimorar nossa capacidade de escuta. Pode vir
em nosso socorro o famoso texto de Rubem Alves intitulado ‘Escutatória’1.
Sigamos alguns trechos e os comentemos oportunamente.
‘Sempre vejo
anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo
mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei
em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se
matricular. Escutar é complicado e sutil […]
Vivemos em um mundo
onde todo mundo quer falar e não somente. Quer que a ‘sua’ fala prevaleça sobre
as demais. Já ‘aprender a escutar’
não parece ter muita atração realmente num planeta onde a grande maioria já se
considera ‘preparados e preparadas’ para falar sobre tudo sem precisar ouvir
ninguém.
Parafraseio Alberto
Caeiro : ‘Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É
preciso também que haja silêncio dentro da alma.’ Daí a dificuldade : a
gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite
melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como
se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse
ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor […]’
Quantas conversações
transformam-se em disputas onde só um alcança a vitória! Não aguentamos ouvir o
que a outra pessoa diz sem interpor imediatamente nossas ideias!
Estamos muito longe da ‘liberdade
interior’ e da ‘humildade de coração’ do discípulo e da discípula
que quer realmente aprender do outro um ensinamento para a vida!
É preciso tempo para entender
o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades.
Primeira : ‘Fiquei em
silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto
você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua
(tola) fala. Falo como se você não tivesse falado’.
Segunda : ‘Ouvi o que você
falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É
coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.’
Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma
bofetada.
Uma das piores experiências que
podemos ter na vida é nos abrirmos a alguém de corpo e alma e notar que a
pessoa não está nos escutando em profundidade. As marcas ficarão gravadas para
sempre, afetando negativamente futuras tentativas de abertura a um familiar, a
um amigo e inclusive a Jesus e a Deus Pai.
‘Quando se faz o
silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a
ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve
nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia
que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no
silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas
de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral
submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do
mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos
olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da
experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos
do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que
de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto : a beleza que se ouve no
silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros : a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num
contraponto…’ (Rubem Alves, O amor que acende a lua, pág. 65.)
Começar a ouvir coisas que não
ouvíamos! Eis o desafio e a meta diante de nós na vida espiritual e no trato
com as pessoas!
Ouvir, ouvir-se : as
audições que dão sentido à existência
Só tomamos consciência de si
através do sentir, experimentamos nossa existência pelas ressonâncias
sensoriais e perceptivas que não cessam de nos atravessar.
Sentir é ao mesmo tempo
desdobrar-se como sujeito e acolher a profusão do exterior.
Só aquilo que faz sentido, de
maneira ínfima ou essencial, penetra o campo da consciência, suscitando assim
um instante de atenção2.
O homem abre uma passagem na
sonoridade incessante do mundo ao emitir sons ou provocando-os por suas
palavras, por seus feitos e gestos. Mesmo fechando os olhos, os sons
circunstantes o desguarnecem quando ele pretende se defender deles, e eles
superam os obstáculos fazendo-se ouvir, indiferentemente da intenção do
indivíduo. Os ouvidos sempre se abrem ao mundo, ‘não respeitando nem porta nem
clausura alguma, como de fato acontece com o olho, com a língua e com outras
aberturas do corpo. Por isso me esforço para que sempre, todas as noites,
continuamente, eu possa ouvir, e através do ouvir, perpetuamente aprender’3.
Diante da palavra escutada,
penetrado por ela não obstante a sua vontade, o homem está sempre em posição de
acolhida ou de recusa. Ele entra ou não em ressonância. O som é mais enigmático
que a imagem, já que ele se dá no tempo e no fugaz, aí onde a visão permanece
impassível e explorável. Para identificá-lo é necessário permanecer na escuta,
e ele não se renova permanentemente, e desaparece no exato instante em que é
ouvido4.
A sonoridade do mundo lembra
sua contingência, lá onde os outros sentidos são dóceis a novas solicitações :
rever uma paisagem de outono ou um pôr de sol sobre a colina, degustar hoje e
amanhã o sabor de um prato ou de um vinho, recorrer ao mesmo perfume, acariciar
novamente a face da pessoa amada. O som se perde e foge ao nosso controle bem
como à vontade sua de ouvi-lo novamente, salvo através do recurso a
instrumentos técnicos que o controlam e o difundem à vontade5.
Ser ouvido significa ser
compreendido. A audição penetra para além do olhar, ela imprime um relevo aos
contornos dos acontecimentos, povoa o mundo com uma soma inesgotável de
presenças, habita as existências defraudadas. Ela sinaliza o sussurro das
coisas aí onde nada seria decifrável de outro modo. O som, assim como o odor,
revela o que está para além das aparências, forçando as coisas a testemunharem
suas presenças inacessíveis ao ouvido.
Ao escutar o relato da vida de
alguém, na perspectiva de poder participar dessa vida oferecendo o ouvido e o
coração, fazemos a experiência de comunhão e solidariedade com o outro. O que
terá um impacto ainda maior quando se tratar de ‘dar ouvidos’ aos
clamores dos mais frágeis e descartados da nossa sociedade.
Querer ouvir o outro, desejar
profundamente ouvir a si mesmo, sempre no intuito de penetrar ainda mais
profundamente no sentido que reveste a nossa existência e as dos nossos irmãos
e irmãs, faz-nos encarnar a atitude existencial fundamental do próprio Cristo,
homem-para-os-demais, Encarnação do Amor inesgotável de Deus por toda a
humanidade sofredora.’
Notas :
[1] Fonte: http://rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwpct3/newfiles/escutatoria.php. Acesso em
19/11/2021.
[2] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, Petrópolis:
Vozes 2016, 27.
[3] F. Rabelais, «Le tiers livre », Ouvres Completes.
Paris: Seuil 1979, 429.
[4] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 129-130.
[5] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 134.
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1553628/2021/12/escutar-acompanhar-amar-um-percurso-repleto-de-gratidao/
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