Por Eliana
Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
‘Mais do que em
uma ‘época de crises’, nos
encontramos diante de uma ‘crise de época’,
caracterizada fundamentalmente por grandes transformações. Esta descrição, que não se resume a um
simples jogo de palavras, remete-nos a uma maior sensibilidade face ao caráter
inusitado dos tempos atuais. Trata-se, de fato, de uma crise dos próprios
paradigmas que orientam as distintas relações que compõem nossa vida
quotidiana. Vivemos, em nossa opinião, uma situação caracterizada pela presença
simultânea entre o que se tem definido como ‘eclipse’ do divino e sua ‘epifania’.
Surpresos e perplexos, na verdade, testemunhamos fenômenos de uma desenfreada
perda de sentido e de um visível excesso de crença. A própria alternância ou
simultaneidade leva a crer que, para além da aparente oposição entre ambos,
tais fenômenos constituem no fundo dois lados da mesma moeda.
A experiência da
perda do sentido ou de auto-suficiência. Não se pode ignorar que muitos de nós
vivemos, na prática, como se Deus não existisse. Isto significa, em outras
palavras, que Deus não participa mais dos projetos pessoais e sociais do ser
humano contemporâneo. Tudo parece girar, agora, em torno de si próprio. Tudo
parece depender ora das suas possibilidades ora dos seus limites. O ser humano
se sente cada vez mais posto ao centro da vida e do mundo. Projeta e constrói,
faz planos e os realiza segundo seus próprios critérios e parâmetros sem a
necessidade de recorrer a Deus. Depois de ter tomado consciência das
potencialidades mais recônditas da própria razão, é capaz de solucionar os
problemas mais diversos e de encontrar respostas para as questões mais
difíceis. Deus tornou-se, de fato, dispensável e até supérfluo. Não se
necessita mais da sua constante presença experimentada como graça nem da sua generosa
e gratuita providência. A providência divina tornou-se desnecessária, uma vez
que tudo, praticamente, pode ser previsto e planejado pelo ser humano mediante
cálculos cada vez mais precisos.
A grande conquista
efetuada pelo ser humano moderno talvez tenha sido aquela de organizar a
própria vida e o próprio destino sem ter que contar com a ajuda de Deus. O ser
humano descobriu-se como sujeito autônomo passando, assim, a alimentar a ilusão
da própria onipotência. Julga-se, enfim, autônomo e finalmente liberto de toda
sorte de elo que o mantinha antes preso a tantas correntes. A religião passa a
ser vista como a maior das correntes que o mantinha enredado nas suas muitas
malhas doutrinais, rituais e míticas. Por esta razão, de alguma forma ainda
predomina na cultura contemporânea o pressuposto que, para ser ainda mais
humano, ele deve expulsar Deus da própria vida. Pois, na verdade, o Deus dos
catecismos e das igrejas o oprime tanto a ponto de ele se sentir sufocado e sem
espaço. Convém, pois, que o ser humano se liberte dessa situação em vistas da
realização de sua própria identidade. Acredita-se que Deus e ser humano se
encontrem em uma situação de contínua competição. Para que um se afirme, é
necessário que o outro se anule. Deste modo, o ser humano adulto e emancipado,
consciente de si e das suas ilimitadas possibilidades, emerge cada vez mais no
cenário da cultura e da história fazendo de tudo para anular a presença
incômoda de Deus.
Estão, assim,
colocadas as premissas para o ateísmo, fenômeno que emergiu com um vigor
particular no mundo ocidental contemporâneo. É esta ainda a razão pela qual o
ateísmo esteve sempre de mãos dadas com as várias vertentes do humanismo dos
séculos XIX e XX. Em tal contexto, ser humanista implicava naturalmente ser ateu
ou, ao menos, anti-religioso.
O fenômeno do
excesso de crença constitui, em nossa opinião, a atmosfera vital da condição
pós-moderna. Neste contexto, consideramos que os principais desafios com
relação à experiência do crer são provocados pela ‘subjetivação da fé’, ou ainda, pela ‘privatização do religioso’.
A ‘subjetivação da fé’ ou ‘privatização do religioso’ se caracteriza
fundamentalmente por uma religiosidade difusa, cujo resultado mais
significativo parece ser a instrumentalização da religião em função de
interesses e de necessidades individuais. Constata-se assim uma religiosidade sem nenhuma exigência de
conversão, sem qualquer intervenção externa capaz de provocar no fiel um
processo de adesão incondicional a Deus, expresso na busca de conformidade
maior à sua vontade. Perde-se o sentido da fé como atitude obediencial a Deus.
Esta específica
experiência do sagrado toca antes a superficialidade dos sentimentos e das
emoções, deixando, ao contrário, intactas aquelas estruturas existenciais mais
íntimas do ser humano. Trata-se, ademais, de uma religiosidade sem nenhuma
objetividade; os preceitos objetivos das tradições religiosas são considerados
por demais hard. Deseja-se agora, neste novo quadro referencial, uma
religiosidade de caráter mais light, na qual as necessidades e carências
individuais passam a ocupar lugar de relevo. Se, no
passado, a profissão religiosa provocava transformações, verdadeiras
conversões, na vida dos crentes, prefere-se, hoje, mudar de religião para não
se ter que mudar de vida.
Esta situação
agrava-se ainda mais quando considerada na sua estreita relação com o
consumismo. A ‘privatização da fé’
serviu como uma luva aos interesses econômicos da sociedade de consumo. A
testemunhar esta espécie de ‘instrumentalização
consumista do religioso’ estão tantas iniciativas propostas com frequência
em tais ambientes. Apesar do aparente otimismo do ponto de vista religioso, o
fenômeno do ‘retorno do sagrado’ traz
consigo um novo e desconcertante desafio constituído pelo ‘excesso de crença’. Mais que a perda do sentido, talvez seja o ‘excesso de crença’ a recolocar com
gravidade e urgência a questão do Deus verdadeiro contra possíveis e eventuais
manipulações do religioso em função de interesses individuais e egoístas.
Isso posto, o que significa
concretamente crer nos dias de hoje? Diríamos, em primeiro lugar, que o Pai de
Jesus Cristo não abandona jamais seus filhos e que, portanto, é preciso
desentranhar sua singular presença para além desta sua aparente ausência. Isto
significa que a tão propalada ausência de Deus deve ser interpretada mediante
outros critérios que não aqueles geralmente utilizados. Na verdade, é Deus quem
se deixa expulsar do mundo para que o ser humano se torne adulto e emancipado.
É Ele que, de fato, se revela na sua desconcertante fraqueza para que o ser
humano se descubra forte. É Deus quem se retira do cenário do mundo e da
história para que o ser humano se torne sujeito. É Ele, enfim, quem se deixa
vencer para que o ser humano realize todas as suas virtuais possibilidades. Por
mais escandaloso que tudo isso possa parecer, encontramo-nos frente à
inusitada, porém livre, decisão paterna e amorosa de Deus.
Deste modo, Deus
se revela não como um competidor, como alguém que está aí para tolher ao ser
humano a liberdade. Pelo contrário, Ele é o primeiro a se interessar pelas
criaturas humanas e, para tanto, engaja-se pessoalmente a favor do bem delas.
No entanto, ao invés de interferir de maneira brusca e repentina, violentando
desta forma a liberdade humana, Deus prefere apelar sutilmente para sua
consciência. Neste sentido, Ele não perde uma oportunidade sequer para
convencer o ser humano daqueles valores que julga serem importantes. E isto se
chama respeito pela liberdade do outro. E o que é mais importante: Deus respeita
a liberdade de cada ser humano sem, contudo, mostrar-se indiferente ou
insensível. Deus continua presente, mas sua presença é particularmente
respeitosa. Aguarda o momento justo para interpelá-lo. Não força, nem
desrespeita o ritmo de cada um. Está ali à espreita, aguardando a ocasião mais
propícia para oferecer sua proposta de diálogo e para dirigir-lhe sua
interpelação. E o faz de maneira tal a não lesar a inviolável liberdade humana.
Só um Deus concebido como autêntico Pai alcança uma tal atitude de respeito e
de cuidado para com seus próprios filhos e filhas.
Em Jesus Cristo
contemplamos a emergência do Deus solidário. Esta singular dimensão do Deus
cristão transparece na sua original beleza no itinerário existencial de Jesus
de Nazaré. Tem razão, de fato, o autor do quarto evangelho quando escreve: ‘Tendo amado os seus, amou-os até o fim’.
O testemunho oferecido por Jesus é o de quem nunca se furta ao diálogo,
valorizando sempre as questões postas por seus interlocutores,
independentemente de quem sejam. Procura sempre dialogar e o faz até o fim. Não
impõe jamais sua vontade nem obriga os outros a aceitar sem mais seus
ensinamentos. Como sua maneira de ser e de agir, Ele retira as pessoas do
anonimato causado por relações desumanas para que elas tenham sua dignidade
respeitada e, consequentemente, se assumam como sujeito da própria história. Em
sua relação para com os doentes, pecadores e demais pessoas marginalizadas tem
o cuidado de, primeiro, estimulá-los à recuperação da própria dignidade negada lançando
mão de gestos singelos e significativos para com o corpo delas para, depois,
somente depois, começar a falar-lhes de Deus e de seu Reino.
Apesar de tudo,
vale dizer, diante do fechamento de seus interlocutores e da mais abjeta
rejeição à sua pessoa e missão, assume coerentemente as consequências desta sua
decisão. Deixa-se assim crucificar, pagando o altíssimo preço do respeito à
liberdade humana e da sujeição aos ditames das decisões históricas. Assume
sobre os próprios ombros o enorme peso do fechamento humano e das iníquas
estruturas sociais. Prefere pagar com a própria vida a desrespeitar a liberdade
humana e violentar as coordenadas históricas que lhe eram adversas.
Não pretende que
seu Pai intervenha para debelar de vez a perversidade humana e a iniquidade de
suas decisões, reduzindo assim o ser humano a uma espécie de marionete, alguém
destituído de vontade livre e de capacidade de decisão. Consciente de ter recebido
a missão de realizar em tudo a vontade do Pai, custe o que custar, Ele obedece.
E o faz sem pretender nada em troca. Comunga desta forma do desígnio amoroso do
Pai e, movido pelo Espírito Santo, leva a cumprimento a missão que lhe fora por
Deus confiada.
Em seu Espírito,
Deus se revela como interioridade da história. Fiel a seu desígnio de
estabelecer uma proximidade sempre maior com relação ao ser humano, à sua
história e à inteira realidade criada, Deus age no mundo interiormente, a
partir de dentro. Sua ação se realiza, portanto, de dentro para fora e não, ao
contrário, de fora para dentro. Por essa razão é que Deus não intervém
magicamente, desrespeitando assim a história e suas coordenadas próprias. Agir
de dentro para fora significa, em outros termos, não violentar o ser humano
naquilo que ele tem de mais nobre e próprio, sua liberdade. Deus não fere a
dignidade humana, mas a respeita até o fim. Por isso mesmo, nunca imporá ao ser
humano sua vontade e nem o constrangerá a realizá-la.
A maneira peculiar
do Deus cristão se fazer presente na história é aquela própria do Espírito. Por
esta razão, ele se nos revelou também como Espírito Santo. Trata-se de uma
presença sutil, porém eficaz. Ele jamais abandona a pessoa humana : Ele a
in-habita, vale dizer, vem habitar no íntimo dela e, a partir de sua
interioridade mais íntima, Ele sugere, inspira atitudes e mentalidades
condizentes com seus desígnios. E o modo peculiar através do qual ele assim age
é o da sedução: Ele perscruta os corações e cria as condições para que suas
sugestões sejam acolhidas e encontrem seu espaço de realização.
Não perde uma
ocasião sequer para interpelar a pessoa humana, potencializando ao máximo suas
virtualidades em termos de decisões e de engajamentos históricos. No entanto, o
faz de maneira discreta, sutil, íntima. E a inspiração que ele deseja comunicar
a cada pessoa privilegia vias indiretas. Sua interpelação atinge cada um
através de outras pessoas, situações alheias e acontecimentos em geral. Porque
Espírito, Deus se serve sempre de sinais para interpelar o ser humano a um
processo de discernimento dos mesmos. Ele fala através das criaturas, mediante
os acontecimentos históricos e, sobretudo, através de sua imagem viva por
excelência que é o pobre, o marginalizado, o excluído.
Por se revelar
como a interioridade da história, o Deus de Jesus Cristo potencializa as
mediações humanas, históricas e cósmicas como possíveis vias de sua presença e
interpelação. Entre tantas mediações escolhidas pelo Deus bíblico, uma merece
ser destacada. Trata-se da mediação do pobre, concebido como sacramento
primordial do Deus comunhão, revelado por Jesus Cristo. Ao se revelar
preferencialmente no pobre, no excluído e no marginalizado, Deus revela um de
seus segredos mais recônditos. E o segredo é este: que Deus ama tudo o que é
desprezível, insignificante, simples. Deus ama a todos e se serve de toda e
qualquer situação para se fazer presente e comunicar-lhes os desígnios de sua
vontade. No entanto, manifesta um carinho especial para com os pequenos,
desprezados e últimos deste mundo, e ama particularmente aquelas situações mais
desprezíveis e insignificantes. Numa palavra, Deus ama o abandonado e faz dele
seu sacramento por excelência.
Francisco de
Assis, o Poverello, e Teresa de Calcutá, entre outros, intuíram este segredo de
Deus. Foi assim que, descobrindo o valor recôndito das situações
insignificantes, realizaram a experiência singular do encontro com o Deus de
Jesus Cristo e, em comunhão com os pobres, aprenderam a cultivar e a apreçar a
beleza desta intimidade. Assim vivendo, portanto, ensinam que o caminho que
conduz o ser humano a Deus passa inevitavelmente pelo irmão ou pela irmã e, de
modo especial, por aquele que se encontra caído à margem, vale dizer, excluído
de toda e qualquer convivência social.
Deste modo, no
rosto desfigurado do pobre transparece o Deus-comunhão que nos foi revelado por
Jesus Cristo. E esta se configura numa transfiguração escandalosa. Presente no
rosto sofrido do pobre, Deus clama urgentemente por relações sociais novas,
mais humanas e fraternas. Esta presença inusitada e paradoxal do Deus de Jesus
Cristo constitui por si só uma desafiante convocação dirigida a todos e a cada
pessoa em particular.’
Fonte :