*Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano
‘... A vocação nasce do olhar. Um olhar que toca o coração. Mas o olhar torna-se ‘visível’ na palavra, pronunciada e
escutada. Por isso a ‘vocação’ parece
privilegiar o sentido da ‘audição’.
Pronunciada pela boca, é acolhida pelo ouvido. No entanto, a Escritura não
estabelece um contraste entre a audição e a visão. No Sinai, ‘todo o povo viu as vozes’ (Êxodo 20,18
segundo o texto hebraico). De acordo com a tradição judaica, podemos dizer que
a palavra de Deus se torna visível na Escritura, e segundo a tradição cristã,
encarna-se na Pessoa de Jesus. Há, pois, uma sinergia entre ver e ouvir. A
palavra habita no olhar. A solicitação a prestar ouvidos é acompanhada pelo
convite a levantar os olhos.
Ouvido idolátrico
Podemos dizer que cada sentido colhe
uma dimensão das coisas e nos abre a uma contemplação e compreensão diversa da
realidade. Naturalmente, os sentidos devem ser despertados e purificados pois
correm o risco de se tornarem idolátricos. O olhar deve permanecer aberto ao
invisível e o ouvido ao inefável. O nosso ouvido pode tornar-se idolátrico
quando se apodera da palavra, manipulando-a, de maneira que ela já não ‘chama’ mas narcotiza, não interpela mas
acomoda, não põe em caminho mas imobiliza.
Hoje vivemos numa
época em que é dada uma importância primordial à comunicação, mas,
paradoxalmente, todos querem falar e poucos estão dispostos a escutar. Pelo que hoje parece que já não sabemos
escutar. Esta é sem dúvida uma das razões da escassez de vocações. É, pois,
preciso recuperar a arte da escuta. Quem poderia ensinar-no-la?
Jesus, o Logos de Deus, é apresentado
como ‘o homem da Palavra’, que sente
a urgência de anunciar a todos e por todo o lado o ‘evangelho’, que encanta as multidões e desarma até os próprios
adversários com a novidade da sua palavra. Mas esquecemos, por vezes, que a
palavra de Jesus vem de uma escuta profunda. Ele diz simplesmente ‘aquilo que ele ouviu do seu Pai’. Antes
dos seus três breves anos de ministério, Jesus frequentou a ‘escola’ de Nazaré, escutando durante
trinta anos, num ritmo de vida marcado pelo ‘Shema Israel’.
Percorrendo o evangelho, eu diria que
poderíamos formular um ‘septenário’
de características que ilustram a ‘arte
de escutar’ segundo Jesus. Ou seja, sete maneiras de descrever a qualidade
da escuta praticada por Jesus, que é também a do bom ouvinte, a de todo
vocacionado.
Escuta SILENCIOSA
Uma escuta silenciosa, ou seja que
nasce do silêncio! Jesus é uma pessoa que procura o silêncio, para reflectir e
meditar, para escutar o Pai. Recordemos os 40 dias de escuta no deserto, ao
início do seu ministério, e as noites que passava em oração. Não é alguém que
se precipita a falar. Os seus adversários devem insistir para que ele se
pronuncie no caso da mulher adúltera (João 8).
O silêncio é o sal
de uma boa escuta e de uma sensata conversação. Sal em justa medida! Quando erramos na
quantidade, tornamo-nos insossos ou intragáveis! Neste sentido podemos
distinguir três tipos de pessoas.
Há os que não conhecem o silêncio,
senão o estritamente necessário para retomar o fôlego durante a enxurrada de
palavras que vomitam pela boca fora. Determinam o tema da conversa, monopolizam
a discussão, impõem a própria opinião, acabando por silenciar toda a gente,
naturalmente sem serem escutados por ninguém. Mas há também os que impõem o
próprio silêncio, como uma pesante pedra tumular, que se faz sentir como forte
dissensão e crítica, como mortificação e castigo, que desencoraja e impede
qualquer diálogo e impõe um silêncio de cortar à faca!...
E há os que procuram tempos de silêncio
para cultivar a interioridade. São momentos de fecundidade humana e espiritual
que tornam uma vida sensata e saborosa! São pessoas capazes de ouvir e cuja
palavra escutamos com respeito e atenção porque transmitem sabedoria. Estas
pessoas são capazes também de guardar silêncio, de calar-se, de esperar
pacientemente pela disponibilidade dos demais, sem imporem os próprios tempos
ou ritmos. São pessoas com quem nos sentimos bem, nas quais silêncio e palavra
se harmonizam, sem provocarem tensão ou embaraço.
Escuta SINCERA
Uma escuta sincera, ou seja, aberta e
disponível. Jesus não parte de preconceitos ou prejuízos. Por isso, os
publicanos e os pecadores procuram-no (Marcos 2). Porque não se sentem
julgados, encerrados numa categoria, etiquetados. Sentem-se acolhidos,
escutados e compreendidos. Por isso mesmo escutam Jesus. As pessoas podem
aproximar-se e falar livremente com ele. Sabem que o Mestre tem um bom ouvido,
não presume de tudo saber. Ele até é capaz de soltar a língua dos mudos e abrir
os ouvidos aos surdos.
O preconceito e o prejuízo são o
caruncho da escuta. Minam a capacidade de compreensão, antepõem um filtro,
erguem barreiras entre as pessoas. Ninguém está livre deles. São os vermes que,
silenciosa e sorrateiramente, comprometem a consistência da comunicação.
Escuta HUMILDE
Uma escuta humilde, que é feita ‘desde abaixo’. Para bem escutar é
preciso sentar-se, como Maria aos pés de Jesus na casa de Marta. Também Jesus
se senta à borda do poço para bem escutar a samaritana (João 4). Debruça-se por
terra para olhar e escutar a mulher adúltera, que os seus adversários olham com
desdém e condenam desde uma posição altiva e farisaica.
A altivez torna a escuta uma sessão de
tribunal. Pretende escutar, mas na realidade constitui-se juiz à espera de
apanhar o outro em falso. O espírito crítico deturpa o sentido das palavras. No
melhor dos casos, o que o outro diz tem pouca importância e portanto não merece
a atenção. Não vale o nosso tempo. Podemos continuar de pé ou a tratar dos
nossos afazeres. Dar-lhe meio ouvido é mais que suficiente.
Escuta ATENTA
Uma escuta atenta, feita com o ouvido
do coração. Jesus é capaz de ouvir e ler no silêncio das profundidades dos
corações. Sabe captar quanto de bom, de belo e de verdade existe no outro. Por
isso mesmo em casa de Simão o Leproso toma a defesa da mulher que vem chorar
aos seus pés escutando o grito sufocado no seu coração (Lucas 7). Jesus tem um
ouvido tão fino que é capaz de ouvir o desejo do coração de Zaqueu ao passar
debaixo da árvore onde ele se tinha empoleirado (Lucas 19) e de detectar o
grito de Bartimeu no meio da gritaria da multidão que o rodeia à saída de
Jericó (Marcos 10).
Só o coração é capaz de ouvir. Ouvir
tanto no silêncio de uma palavra não dita, de um pedido não expresso, de um
brado não exalado, como também no clamor sufocado pela indiferença, no berro
reclamando justiça, no fragor do grito de revolta…
Escuta LIVRE
Uma escuta livre, que reconhece o
direito fundamental do outro à palavra. Jesus tem confiança nos seus, e por
isso deixa-os falar, não lhes tira esse direito. Quando se dá conta que os
apóstolos durante o caminho confabulam entre eles (sobre quem deles seria o
maior), não se intromete e deixa-os continuar. Não fica perturbado ou intrigado
pelo animado cochicho. Em casa retomará a conversa, mas com muita serenidade
(Marcos 9).
A desconfiança é como uma serpente que
infiltrando-se no coração envenena qualquer relação. Talvez seja este um dos
maiores limites na nossa escuta : a falta de confiança nos demais. Apenas vemos
duas pessoas que cochicham vem-nos a suspeita que possam estar falando mal de
nós. Desconfiar dos outros é limitar o direito deles à palavra. Os outros são
livres de pensar e dizer o que bem lhes aprouver. São livres também de me
criticarem. Reconhecer esse direito liberta o coração!
Escuta DESAFIANTE
Uma escuta desafiante, que ajuda o
outro a crescer. Um exemplo muito elucidativo é o caso da aparente surdez de
Jesus ao pedido e aos gritos da mulher cananeia, que choca até os próprios
apóstolos (Mateus 15). Jesus ‘ignora’
o pedido da mulher, não escuta a intercessão dos apóstolos e, por fim, até
parece provocá-la quando usa a imagem do pão dos filhos que não deve ser dado
aos cachorros. Ele puxa tanto pela fé da mulher que é um autêntico milagre que
ela tenha aguentado tal esticão. Assim Jesus pôs em ressalto a grandeza da sua
fé.
A nossa escuta, ao contrário, peca
muitas vezes por complacência. É medrosa, não quer incomodar ninguém, para não
criar problemas. Não calcar os calos uns dos outros, é a regra do jogo. Viver e
deixar viver. Mas isto significa também não assumir responsabilidade, não
importar-se com o outro!
Escuta FERIDA
Uma escuta ferida, ou seja, marcada
pelo limite e pelo pecado. Jesus, a Palavra de Deus incarnada, aceita ter uma
palavra débil, humilde como uma semente, com o risco de não ser ouvido, de ser
semente pisada, de ser ridicularizado e objecto de chacota, como acontece
durante a paixão. A Palavra é capaz de ficar em silêncio, sem defender-se a
todo o custo. Sabe esperar com paciência e confiança a lentidão do ritmo de
crescimento do Reino. É isto que o torna capaz de escutar o grito do ‘bom ladrão’ crucificado ao seu lado
(Lucas 23).
Não existe uma
escuta sem cruz. É a
circuncisão do ouvido (Actos 7,51). Hoje o sofrimento mete medo. Pretendemos
construir um mundo ideal, sem espaço para ele. Mas pode haver amor autêntico
quando não se aceita sofrer? Acabamos por fechar o ouvido quando a palavra do
outro fere o coração.
Por isso mesmo a Escritura apresenta o
Servo de Javé, o Sofredor, como o modelo do discípulo que escuta : ‘O Senhor deu-me a graça de falar como um
discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam
abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar, como
escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem
recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam, e a face aos que
me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam…’
(Isaías 50).’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAAFlFyuyyBPolAgC