*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito
‘...Hoje
gostaria de vos falar de outro santo que, na mesma época (de Francisco de
Assis), ofereceu uma contribuição fundamental para a renovação da Igreja do seu
tempo. Trata-se de São
Domingos, fundador da Ordem dos
Pregadores, também conhecidos como Padres Pregadores.
O seu
sucessor na orientação da Ordem, Beato Jordão da Saxónia, oferece um retrato
completo de São Domingos no texto de uma oração famosa : ‘Inflamado de zelo por Deus e de ardor sobrenatural, pela tua caridade
sem confins e o fervor do espírito veemente, consagraste-te inteiramente com o
voto da pobreza perpétua à observância apostólica e à pregação evangélica’.
É ressaltada precisamente esta característica fundamental do testemunho de
Domingos : ele falava sempre com Deus e de Deus. Na vida dos santos, o amor
pelo Senhor e pelo próximo, a busca da glória de Deus e da salvação das almas
caminham sempre juntos.
Domingos
nasceu em Caleruega, na Espanha, por volta de 1170. Pertencia a uma nobre
família da Velha Castilha e, ajudado por um tio sacerdote, formou-se numa
célebre escola de Palência. Distinguiu-se imediatamente pelo interesse no
estudo da Sagrada Escritura e pelo amor aos pobres, a tal ponto que chegou a
vender os livros, que na sua época constituíam um bem de grande valor, para
socorrer com o lucro as vítimas de uma carestia.
Tendo
sido ordenado sacerdote, foi eleito cónego do cabido da Catedral na sua Diocese
de origem, Osma. Embora esta nomeação pudesse representar para ele algum motivo
de prestígio na Igreja e na sociedade, ele não a interpretou como um privilégio
pessoal, nem como o início de uma carreira eclesiástica brilhante, mas como um
serviço a prestar com dedicação e humildade. Não é porventura uma tentação, a
da carreira, do poder, uma tentação da qual não estão imunes nem sequer aqueles
que desempenham um papel de animação e de governo na Igreja? Recordei-o há
alguns meses, durante a consagração de alguns Bispos : ‘Não procuremos o poder, o prestígio e a estima para nós mesmos...
Sabemos como as coisas na sociedade civil e, com frequência, também na Igreja
sofrem pelo facto de que muitos deles, aos quais foi conferida uma
responsabilidade, trabalham para si mesmos e não para a comunidade’
(Homilia durante a Capela Papal para a Ordenação episcopal de cinco
Excelentíssimos Prelados, 12 de Setembro de 2009).
O
Bispo de Osma, que se chamava Diogo, um pastor verdadeiro e zeloso, observou
depressa as qualidades espirituais de Domingos, e quis valer-se da sua
colaboração. Juntos, partiram para o Norte da Europa a fim de realizar missões
diplomáticas que lhes eram confiadas pelo rei de Castilha. Viajando, Domingos
descobriu dois desafios enormes para a Igreja do seu tempo : a existência de
povos ainda não evangelizados, nas extremidades setentrionais do continente
europeu, e a laceração religiosa que debilitava a vida cristã no Sul da França,
onde a acção de alguns grupos heréticos criava confusão e o afastamento da
verdade da fé. A acção missionária a favor daqueles que não conheciam a luz do
Evangelho e a obra de reevangelização das comunidades cristãs tornaram-se assim
as metas apostólicas que Domingos se propôs alcançar. O Papa, que o Bispo Diogo
e Domingos visitaram para pedir conselho, pediu a este último que se dedicasse
à pregação aos Albigenses, um grupo herético que defendia uma concepção
dualista da realidade, ou seja, com dois princípios criadores igualmente
poderosos, o Bem e o Mal. Por conseguinte, este grupo desprezava a matéria como
proveniente do princípio do mal, rejeitando até o matrimónio, chegando mesmo a
negar a encarnação de Cristo, os sacramentos em que o Senhor nos ‘toca’ através da matéria, e a
ressurreição dos corpos. Os Albigenses apreciavam a vida pobre e austera –
neste sentido, eram também exemplares – e criticavam a riqueza do Clero daquela
época. Domingos aceitou com entusiasmo esta missão, que realizou precisamente
com o exemplo da sua existência pobre e austera, com a pregação do Evangelho e
com debates públicos. A esta missão de pregar a Boa Nova ele dedicou o resto da
sua vida. Os seus filhos teriam realizado inclusive os outros sonhos de São
Domingos : a missão ad gentes, ou seja, àqueles que ainda não conheciam Jesus,
e a missão àqueles que viviam nas cidades, sobretudo nas universitárias, onde
as novas tendências intelectuais eram um desafio para a fé dos cultos.
Este
grande santo recorda-nos que no coração da Igreja deve sempre arder um fogo
missionário, que impele incessantemente a fazer o primeiro anúncio do Evangelho
e, onde for necessário, a uma nova evangelização : com efeito, Cristo é o bem
mais precioso que os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares têm o
direito de conhecer e de amar! E é consolador ver que até na Igreja de hoje são
muitos – pastores e fiéis leigos, membros de antigas ordens religiosas e de
novos movimentos eclesiais – que com alegria despendem a sua vida por este
ideal supremo : anunciar e testemunhar o Evangelho!
Depois,
a Domingos de Gusmão uniram-se outros homens, atraídos pela mesma aspiração.
Deste modo, progressivamente, da primeira fundação de Toulouse teve origem a
Ordem dos Pregadores. Com efeito, Domingos em plena sintonia com as directrizes
dos Papas do seu tempo, Inocêncio III, Honório III, adoptou a antiga Regra de
Santo Agostinho, adaptando-a às exigências de vida apostólica que o levaram,
bem como os seus companheiros, a pregar passando de um lugar para outro, mas
depois voltando aos próprios conventos, lugares de estudo, oração e vida
comunitária. De modo particular, Domingos quis dar relevo a dois valores
considerados indispensáveis para o bom êxito da missão evangelizadora : a vida
comunitária na pobreza e o estudo.
Antes
de tudo, Domingos e os Padres Pregadores apresentavam-se como mendicantes, isto
é, sem vastas propriedades de terrenos para administrar. Este elemento
tornava-os mais disponíveis ao estudo e à pregação itinerante, e constituía um
testemunho concreto para as pessoas. O governo interno dos conventos e das
províncias dominicanas estruturou-se segundo o sistema de cabidos, que elegiam
os seus próprios Superiores, sucessivamente confirmados pelos Superiores
maiores; portanto, uma organização que estimulava a vida fraterna e a
responsabilidade de todos os membros da comunidade, exigindo fortes convicções
pessoais. A escolha deste sistema nascia precisamente do facto que os
Dominicanos, como pregadores da verdade de Deus, tinham que ser coerentes com
quanto anunciavam. A verdade estudada e compartilhada na caridade com os irmãos
constitui o fundamento mais profundo da alegria. O Beato Jordão da Saxónia diz
de São Domingos : ‘Ele acolhia cada homem
no grande seio da caridade e, dado que amava todos, todos o amavam. Fez para si
uma lei pessoal de se alegrar com as pessoas felizes e de chorar com aqueles
que choravam’ (Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum autore Iordano
de Saxonia, ed. H. C. Scheeben [Monumenta Historica Sancti Patris Nostri
Dominici, Romae, 1935]).
Em
segundo lugar, com um gesto intrépido, Domingos quis que os seus seguidores
adquirissem uma formação teológica sólida e não hesitou em enviá-los às
Universidades dessa época, embora não poucos eclesiásticos vissem com
desconfiança estas instituições culturais. As Constituições da Ordem dos Pregadores
atribuem muita importância ao estudo como preparação para o apostolado.
Domingos queria que os seus Padres se dedicassem a isto sem poupar esforços,
com diligência e piedade; um estudo fundado na alma de todo o saber teológico,
ou seja, na Sagrada Escritura, e respeitador das interrogações formuladas pela
razão. O desenvolvimento da cultura impõe àqueles que desempenham o ministério
da Palavra, a vários níveis, que sejam bem preparados. Portanto exorto todos,
pastores e leigos, a cultivar esta ‘dimensão
cultural’ da fé, a fim de que a beleza da verdade cristã possa ser melhor
compreendida e a fé seja verdadeiramente alimentada, fortalecida e também
defendida...
Domingos,
que quis fundar uma Ordem religiosa de pregadores-teólogos, lembra-nos que a
teologia tem uma dimensão espiritual e pastoral, que enriquece a alma e a vida.
Os presbíteros, os consagrados e também todos os fiéis podem encontrar uma
profunda ‘alegria interior’ na
contemplação da beleza da verdade que vem de Deus, verdade sempre actual e
viva. O lema dos Padres Pregadores – contemplata aliis tradere – ajuda-nos a
descobrir, além disso, um anseio pastoral no estudo contemplativo de tal
verdade, pela exigência de comunicar aos outros o fruto da própria
contemplação.
Quando
Domingos faleceu, em 1221 em Bolonha, a cidade que o declarou padroeiro, a sua
obra já tinha alcançado grande sucesso. A Ordem dos Pregadores, com o apoio da
Santa Sé, difundiu-se em muitos países da Europa, em benefício da Igreja
inteira. Domingos foi canonizado em 1234, e é ele mesmo que, com a sua santidade,
nos indica dois meios indispensáveis a fim de que acção apostólica seja
incisiva. Em primeiro lugar, a devoção mariana, que ele cultivou com ternura e
deixou como herança preciosa aos seus filhos espirituais, que na história da
Igreja tiveram o grande mérito de difundir a recitação do santo Rosário, tão
querida ao povo cristão e tão rica de valores evangélicos, uma autêntica escola
de fé e de piedade. Em segundo lugar Domingos, que assumiu o cuidado de alguns
mosteiros femininos na França e em Roma, acreditou até ao fundo no valor da
oração de intercessão pelo bom êxito do afã apostólico. Só no Paraíso
compreenderemos quão eficazmente a oração das irmãs claustrais acompanham a
obra apostólica! A cada uma delas dirijo o meu pensamento grato e carinhoso.
Estimados
irmãos e irmãs, a vida de Domingos de Gusmão estimule todos nós a sermos
fervorosos na oração, corajosos na vivência da fé e profundamente apaixonados
por Jesus Cristo. Por sua intercessão, peçamos a Deus que enriqueça sempre a
Igreja com autênticos pregadores do Evangelho.’
Fonte
:
*
Artigo na íntegra de
Nenhum comentário:
Postar um comentário