*Artigo de Dom Irineu Rezende Guimarães,
OSB
Caro Irmão,
Pax!
Em nosso
diálogo comunitário com os monges mais jovens de nossa abadia, você me
perguntou como poderia renovar seu entusiasmo pela ‘Lectio Divina’. Com a sua sinceridade, você confessou mesmo a
fadiga e a tentação de sempre procurar outra atividade para preencher o tempo
que sobra. Você quer se consagrar à leitura das Escrituras como nos indica a
Santa Regra (RB 48), você quer deixar-se guiar pelo Evangelho (RB Prol 21), mas
não sabe como.
Ao se
expressar assim, você toca no âmago da questão e na raiz de sua (e nossas)
incompreensões a respeito da ‘Lectio
Divina’. Quando queremos responder à questão : ‘Que é a Lectio Divina’, em geral, dizemos como é praticada. Muitas
vezes utilizamos os quatro graus de
Guigo, o Cartuxo : leitura, meditação, oração, contemplação. Assim
agindo, corremos o risco de fazer da ‘Lectio
Divina’ o que ela não é : uma técnica para ler as Escrituras. Por esse
motivo, e porque a ‘Lectio Divina’ é
compreendida como uma técnica, isto é, uma maneira entre outras de ler as
Escrituras, podemos abandoná-la ou nos cansarmos dela.
A bela
síntese de Guigo, o Cartuxo, na metade do século XII, é fruto de toda uma
tradição. Quando Guigo apresenta sua visão, a Igreja já tem mais de mil anos de
experiência da ‘Lectio Divina’.
Podemos até trair o espírito de Guigo se fizermos uma leitura instrumental de
sua carta, compreendendo-a como um ‘modo
de emprego’- o que ela não é – e desprezando sua dimensão de orientação
espiritual. A contribuição de Guigo é um dedo que aponta para o céu : não
podemos concentrar nossa atenção no dedo!
Portanto,
essa dificuldade de dizer o que é a ‘Lectio
Divina’, esse embaraço que todo pai espiritual experimenta ao tentar
ensinar a ‘Lectio Divina’ aos seus
filhos espirituais, é precisamente nosso grande trunfo! Creio que podemos
aplicar à ‘Lectio Divina’ os
princípios da teologia apofática. Essa teologia nos lembra a dificuldade de
dizer quem é Deus, e prefere dizer o que Deus não é. Talvez não possamos dizer
o que é a ‘Lectio Divina’ e devamos
resignar-nos a dizer o que ela não é. É um bom sinal se chegarmos a dominar a ‘Lectio Divina’ como que domina uma
técnica ou uma arte. É um bom sinal se não paramos de tentar descrevê-la,
justamente porque ela tem algo de inefável. É preciso compreender a ‘Lectio Divina’ como um sinal do
Espírito, do Espírito do qual ouvimos o ruído, mas não sabemos donde vem nem
para onde vai (cf. Jo 3, 8).
A ‘Lectio Divina’ não é um exercício que eu
possa escolher praticar ou não. É um componente fundamental da consagração do
discípulo de Jesus, conforme o que nos diz São João referindo-nos à oração do
Cristo a seu Pai na noite da Paixão : ‘Consagra-os
na verdade : tua palavra é a verdade’ (Jo 17, 17). Nossa consagração
monástica encontra na Palavra um elemento vital : nossa busca de Deus, e o faz
por intermédio da Palavra. São Bento nos diz claramente no Prólogo de sua Regra
que nossa vocação nasceu da resposta à Palavra (Prol 8-20) e que toda a
existência monástica é guiada pelo Evangelho (Prol 21).
A essência
da ‘Lectio Divina’ está em ser ela
uma relação com Deus por sua Palavra. É a Palavra que nos estabelece na relação com o Cristo : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que
escutam a Palavra de Deus e a põem em prática’ (Lc 8, 21). O acolhimento da
Palavra é a expressão de nosso amor ao Senhor : ‘Se alguém me ama, guardará minha Palavra’ (Jo 14, 23). Melhor do
que um modo de emprego, a ‘Lectio Divina’
é uma maneira de ser. O discípulo do Cristo é aquele que é habitado pela
Palavra e que está mergulhado na Palavra. A ‘Lectio Divina’ consiste em dar uma existência concreta às palavras
do Salmista : Sobre mim está escrito no livro : ‘Com prazer faço a vossa vontade, guardo em meu coração vossa lei!’(Sl
39, 8-9).
Ouso dizer
que a ‘Lectio Divina’ pode ser
compreendida numa perspectiva sacramental, como expressão e realização de nossa
relação com Deus e com sua Palavra. Desejando entreter uma relação com a
Palavra, faço a ‘Lectio Divina’ e, ao
mesmo tempo, ela concretiza essa relação.
Como sinal de nossa relação com Deus creio que se pode descrever a ‘Lectio Divina’ antes por imagens
relacionais do que por etapas mecânicas. Pela e através da ‘Lectio Divina’, alimento minha amizade
com Deus, tal como Moisés que conversava com o Senhor como um amigo fala a seu
amigo (Ex 33, 11); eu me dou na relação amorosa, tal como a esposa do Cântico
dos Cânticos; eu me consagro como discípulo para aprender tudo de meu Mestre.
Compreendendo
a ‘Lectio Divina’ como uma relação,
podemos identificar alguns pontos de referência. Mas
essas balizas são muitas vezes contraditórias. Por esse motivo, é importante
apresentar a ‘Lectio Divina’, mesmo
para os iniciantes, como uma atividade complexa, cheia de tensões,
compreendendo-se a palavra tensão não
no seu aspecto negativo, mas em um sentido de vitalidade e de dinamismo. Pode-se
mesmo falar de ‘aporias’ ou de ‘paradoxos’ ou ainda, de ‘antinomias’ da ‘Lectio Divina’ para abordar esses aspectos contraditórios que
resultam de um impasse e que exigem uma tomada de posição. Penso mesmo que
esses aspectos estão na raiz de nossas dificuldades em relação à ‘Lectio Divina’. Ao longo desta carta,
quero refletir sobre esses pontos contraditórios ou complexos da ‘Lectio Divina’...
Leitura e Oração
A ‘Lectio Divina’ é primeiramente uma
oração, isto é, uma maneira de estabelecer uma relação e uma comunicação com
Deus. Dom Jacques Dupont nos adverte que a oração (‘oratio’) é mais do que uma etapa, é o próprio quadro de toda ‘Lectio Divina’. Cito o texto desta
importante observação : ‘A palavra
‘oratio’ é assim tomada no sentido limitado de oração de pedido, expressão
diante de Deus do desejo que anima o exercício da ‘Lectio Divina’. (...) Minha
questão é saber se essa atitude de ‘oratio’ não está presente e suposta desde o
ponto de partida da ‘Lectio Divina’, se não é sobre ela que repousa diretamente
o empenho da ‘lectio’, depois o da ‘meditatio’. Em vez de apresentar a ‘oratio’
como uma etapa particular da ‘Lectio Divina’, não seria melhor sublinhar que
ela qualifica todo o processo?’ (1).
A ‘Lectio Divina’ tem pois todas as
características de uma oração cristã, de um diálogo com Deus pleno e
verdadeiro. Os Padres da Igreja sempre valorizaram essa dimensão dialogal da ‘Lectio Divina’ : ‘É a ele que nos dirigimos quando rezamos; é a ele que escutamos quando
lemos os oráculos divinos’ (2);
‘Tu rezas, és tu que falas ao Esposo; tu
lês, é ele quem te fala’ (3).
Leitura e oração estavam sempre associadas, como pares que se completam
reciprocamente. Neste sentido, podemos compreender esta recomendação da ‘Dei Verbum’ :
‘O Santo Concílio exorta com força e de modo
especial todos os cristãos, sobretudo os membros dos institutos religiosos,
a adquirir pela leitura frequente das
divinas Escrituras ‘uma ciência eminente de Jesus Cristo’ (Fl 3, 8). (...) Que
eles se lembrem todavia que a oração deve acompanhar a leitura da Sagrada Escritura para que estabeleça um diálogo entre Deus e o homem’ (4).
É por essa
unidade essencial entre leitura e oração que a ‘Lectio Divina’ é chamada também ‘leitura orante da Escritura’ ou ‘a oração que nasce da escritura’ (5).
A própria
denominação de ‘Lectio Divina’
permanece problemática. A ‘Lectio Divina’
não é uma ‘lectio’, uma leitura, como
a leitura de qualquer outro texto. Nesse sentido, ela não é uma simples
aquisição de informações, como quando lemos um texto qualquer. Não obstante,
uma vez que é uma ‘lectio’, ela
utiliza a leitura do texto sagrado para criar a oportunidade de um encontro com
o sagrado. A leitura se torna uma oportunidade para encontrar o Senhor, como os
Padres da Igreja já nos advertiam : ‘É
ele, o Cristo, que procuro nos livros’ (6).
A ‘Lectio Divina’ como atividade da Igreja,
participa também da estrutura sacramental da Igreja. Da mesma forma que pela
água entramos na vida nova do batismo, ou que pelo pão e o vinho entramos numa
comunhão com o Cristo, a ‘Lectio Divina’,
pela leitura nos permite entrar em uma comunicação com o Cristo. As realidades
materiais se tornam portas ou janelas para as realidades sobrenaturais. Mas
elas podem também permanecer como muros... É por isso que a tradição espiritual
nos diz : Usus non lectio prodentes facit
(É a vida e não a leitura que torna as pessoas sábias). Ler é um marco no
caminho do crescimento espiritual.
Prazer e Esforço
O
vocabulário que São Bento emprega em relação à ‘Lectio Divina’ revela bem essa complexidade. Ele utiliza duas
expressões que são aparentemente contraditórias : ‘vacare’ e ‘intentus’.
Utilizando
uma expressão clássica da tradição cristã – ‘vacare lectionibus’ (RB 48,4.10.13-14) -, São Bento quer insistir
no lado lúdico, talvez mesmo prazeroso e de lazer que deve caracterizar a ‘Lectio Divina’. A palavra ‘vacare’ pode-nos fazer pensar em um
vazio, mas também em vacância (férias). Para São Bento a expressão tem o
sentido de estar disponível para a leitura, isto é, de deixar tudo para que
possamos estar plenamente desocupados para Deus e sua Palavra. Mas é evidente
que a expressão evoca essa dimensão de gratuidade que a Palavra assume em
alguns textos bíblicos, como por exemplo, nos Salmos. Lá nós encontramos a ‘Lectio Divina’ associada a uma atividade
agradável : ‘Feliz aquele que encontra
seu prazer na lei de Deus’ (Sl 1, 2); a Palavra do Senhor ‘é mais doce que o mel, que o mel que sai dos
favos’ (Sl 18, 11), etc.
Mas São
Bento utiliza também a expressão ‘intentus’
para descrever a ‘Lectio Divina’ (RB
48, 18). Podemos traduzir esta palavra latina pela palavra ‘aplicação’. Ela evoca também atenção,
diligência, vigilância, com a idéia de ação e de trabalho, às vezes mesmo
exigente. Em primeiro lugar, São Bento nos pede para evitar o demônio supremo
da vida monástica, a acédia (RB 48, 17). Esta expressão, por sua vez, está
ligada a uma longa tradição bíblica que põe em relevo a responsabilidade humana
face à Palavra de Deus, como por exemplo, Samuel que não deixava cair por terra
as Palavras do Senhor (1Sm 3, 19). Esta dimensão que a palavra ‘intentus’ exprime será desenvolvida
principalmente pelos Padres do deserto : Santo Atanásio conta que Santo Antão ‘lia o texto sagrado com tanta atenção que
não esquecia jamais nada do que tinha lido, sua memória lhe servia de livros’
(Vida de Santo Antão, 11). Os antigos diziam que é preciso aplicar-se
inteiramente à Escritura para que a Escritura possa se aplicar inteiramente a
nós, que ‘a pessoa inteira esteja
inclinada à Escuta do Verbo’ (7).
Se São Bento
emprega a respeito da ‘Lectio Divina’
duas expressões que podem parecer contraditórias é porque ele as concebe na sua
complexidade, como uma atividade que deve ser ao mesmo tempo, plena de prazer e
de esforço. A ‘Lectio Divina’ não é
uma atividade simples. Como fazer dela um momento agradável sem cair na
ociosidade? Como fazer com ela um esforço sem que ela seja um fardo?
Ato e Atitude
Uma outra
dificuldade ou contradição que podemos encontrar na ‘Lectio Divina’ é que ela é, ao mesmo tempo um ato e uma atitude.
A ‘Lectio
Divina’ é primeiramente um ato bem definido e inscrito no cotidiano de cada
um de nós. Ela exige, antes do mais, um tempo fixado, com um começo, um
desenvolvimento e um fim : é preciso tempo para por nos deixar atingir pela
Palavra. A ‘Lectio Divina’ sem deixar
de ser uma ação pessoal e íntima, exige também um espaço sagrado. E como uma
liturgia divina que se realiza no santo templo de nossa interioridade, ela
exige também um rito, bem como uma preparação. O que São Bento nos propõe em
relação a qualquer boa ação, ou seja, pedir a Deus pela oração, para acabá-la
(aperfeiçoá-la) (RB Prol 4), aplica-se também à ‘Lectio Divina’. Sem o auxílio e a presença do Espírito Santo, ela
será apenas uma leitura de um texto qualquer. Só com a ajuda e a presença do
Espírito Santo é que a nossa leitura será propriamente ‘divina’.
Esse ato se
projeta sobre o conjunto e a totalidade de nossa vida. Nossa relação com a
Palavra não se reduz aos momentos nos quais temos em mãos o Livro que a contém.
Por isso, podemos dizer que a ‘Lectio
Divina’ é também uma atitude, isto é, que ela ocupa as 24 horas do dia, fazendo o esforço de guardar o mesmo espírito de uma escuta gratuita de Deus
igualmente em todas as nossas outras atividades que fazem parte de nossa
jornada. Mais do que uma seteira horária em nossos dias, a ‘Lectio Divina’ torna-se uma dimensão de
nossa vida cristã, como uma obra de toda nossa vida. A essência da ‘Lectio Divina’ é essa atitude espiritual
de consentir e permitir que a Palavra de Deus possa questionar nossa vida e
formar nossa consciência, é a disponibilidade de nossa alma e de nosso ser ao
Espírito de Deus a fim de se deixar ‘interrogar
por Deus, deixar-se interpelar’ (8).
Como dizem os Padres, ‘não são palavras
que Deus espera de ti, e sim, teu coração’ (9).
Para nós a
questão será equilibrar essas duas dimensões. Se a ‘Lectio Divina’ não tiver consequência sobre o nosso comportamento,
se não atingir ‘os critérios de
julgamento, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de
pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos da vida da humanidade’ (10), correrá o risco de ser um
exercício piedoso, mas jamais o eixo de nossa vida de consagração a Deus. Se
ela não entrar em nossa vida como um ato diariamente bem realizado, não terá a força de influenciar e de mudar a qualidade de nossa vida espiritual.
Para
assegurar o justo equilíbrio entre essas duas dimensões, os Padres do deserto
tinham por prática povoar seu pensamento com pequenos trechos da Palavra de
Deus que lhes permitiam guardar o espírito concentrado na Palavra. A Regra de
São Bento é um eloquente testemunho de uma alma que conseguiu fazer da ‘Lectio Divina’ um ato e uma atitude.
Quantas afirmações capitais na Regra, além das citações explícitas da
Escritura, constituem a expressão de alguém que de fato mastigou a Palavra de
Deus. A célebre afirmação ‘que em tudo
seja Deus glorificado’ não é por acaso um eco e uma aplicação de 1Pd 4, 11?
Ou ainda, a menção que, na salmodia ‘nosso
espírito concorde com nossa voz’ (RB 19, 7) não é uma paráfrase do
versículo final do salmo 18 : ‘Que vos
agrade o cantar dos meus lábios e a voz da minha alma’ (Sl 18, 15)? Na
verdade, São Bento podia colocar a questão : ‘Que página, com efeito, ou que palavra de autoridade divina no Antigo e
no Novo Testamento não é uma norma retíssima da vida humana?’ (RB 73, 3).
Graça e Combate
Uma outra
aporia ou aspecto contraditório da ‘Lectio
Divina’ é que ela é, ao mesmo tempo, uma graça e um combate, ação de Deus
em nós, mas também esforço pessoal.
Por um lado
a ‘Lectio Divina’ é uma graça, uma
irrupção de Deus em nossas vidas, uma espécie de teofania cotidiana : Deus vem
ao nosso encontro nas páginas do Livro Santo. Pode-se compreender o adjetivo ‘divina’ nesse sentido : a ‘lectio’ é feita por Deus, é Deus seu
autor e seu assunto! Assim como a chuva que vem dessedentar a terra e fazer
germinar a semente, o Pai faz ressoar em nós sua Palavra de vida (cf Is 55,
10-11). Como no caminho de Emaús, Cristo Ressuscitado inflama nossos corações
e nos revela o sentido das Escrituras! (cf Lc 24, 32). E o Espírito Santo vem
em ajuda às nossas fraquezas e atinge nossas almas para que tenhamos o mesmo
Espírito que inspirou os autores sacros. Sem dúvida, a ‘Lectio Divina’ é um espaço e um momento privilegiado de nosso
cotidiano, onde Deus age em nós e nos diviniza! Um espaço e um tempo nos quais
a Santíssima Trindade vem habitar em nós!
Esta alta
dimensão teológica e teologal da ‘Lectio
Divina’ faz dela também um lugar de combate espiritual. Se Deus revela
plenamente na ‘Lectio Divina’ como
Deus-conosco, o homem também se revela plenamente no que tem de melhor e de
pior! As dificuldades que temos em relação à ‘Lectio Divina’ podem nos revelar as dificuldades e os combates de
nossa vida espiritual. Em primeiro lugar permanecer em sua cela como um
exercício cotidiano de estabilidade. Dominar nossos pensamentos para orientar
todas as nossas energia para Aquele que quer nos falar ao coração. Lutar contra
o sono para guardar a vigilância. Evitar a dispersão para dar tempo e uma
qualidade de relação ao Senhor. Na ‘Lectio’
efetuamos nossa travessia do Jaboc, lutamos contra o Anjo, sós, num face a face
com o nosso Deus e permitimos que ele
deixa sua marca em nós (cf Gn 32, 23-33).
Foi a
compreensão desse aspecto soteriológico da ‘Lectio
Divina’, isto é, uma atividade onde nossa salvação está também em jogo, que
levou São Bento a propor que os mais velhos percorram o mosteiro nas horas em
que os irmãos se entregam à leitura (RB 48, 17) : para não desprezar a graça
divina, entregando-se ao ócio ou às conversas (RB 48, 18). Podemos traduzir
hoje essa advertência de nosso santo fundador como uma exortação à vigilância
em relação a nós mesmos. Nos outros momentos do dia, estamos com frequência com
nossos irmãos, como por exemplo no Ofício, no capítulo e no trabalho. Mas
durante a ‘Lectio Divina’ estamos sós
com Deus, numa solidão que expõe e revela a verdade de nosso ser. Na ‘Lectio Divina’ não podemos fugir de
nossa realidade : ela nos convida a habitar conosco mesmo na Aliança com o Deus
de amor!
Dimensão Interior e Exterior
Uma última
aporia à qual convido a refletir é a dimensão interior e exterior dessa maneira
de ler a Escritura.
Em primeiro
lugar, a ‘Lectio Divina’ tem uma
claríssima dimensão de interioridade. Começando pelo espaço no qual ela se
desenvolve : ‘Quando rezares, entra em
teu quarto, fecha tua porta e reza a teu Pai’ (Mt 6, 6). A ‘Lectio Divina’ se oculta ao olhar dos
homens para mergulhar numa solidão do homem, solidão que é habitada pela
presença de Deus. Mas solidão! E solidão que é a própria condição da leitura.
Como afirmava o dinamarquês Soren Kierkegaard, ‘Se alguém não fica só com a Palavra de Deus, ele não lê!’ E
acrescenta : ‘numa solidão onde nenhuma
ilusão se interpõe’ (11). Compreende-se
que essa dimensão de solidão seja para algumas pessoas a própria razão de seu
entusiasmo pela ‘Lectio Divina’, e
para outras, a própria razão do seu medo dessa prática. Compreende-se também a dificuldade
de toda uma geração em cavar esse espaço interior, condição sine qua non de toda leitura da
Escritura que quer receber o nome de ‘Lectio
Divina’’.
Mas essa
interioridade não pode ser compreendida como fechamento ou alienação. Se a ‘Lectio Divina’ é um ato espiritual, isso
significa que ela se abre e se projeta sobre os outros e sobre o mundo. Sobre
isso podemos lembrar, em ‘Vida e Milagres
de São Bento’ o episódio de Zala, o godo (12). Vocês se lembram : Zala era um godo que certo dia, inflamado
pelo ardor da avareza e sequioso de rapina, afligia um camponês com tormentos
cruéis e o torturava com suplícios diversos. Este, vencido pela dor, declarou
que tinha confiado seus bens ao servidor de Deus, Bento. Então Zala, depois de
lhe ter amarrado os braços, se pôs a empurrá-lo diante de seu cavalo com a
ordem de lhe mostrar quem era esse Bento a quem ele tinha confiado seus bens. Quando
chegou ao mosteiro, com o camponês amarrado, Bento estava lendo, - pode-se
compreender que estava fazendo sua ‘Lectio
Divina’ – aos gritos do godo, o homem de Deus levantou os olhos do seu
livro e quando eles param, as cordas que o amarravam caem. E São Gregório
acrescenta : ‘Este homem santo não
abandona sua leitura e sem se levantar, chama os irmãos’. Foi porque São
Bento estava de tal modo concentrado na leitura que esta teve consequências
concretas sobre os homens de seu tempo.
Com esse
percurso, tentei mostrar como a ‘Lectio
Divina’ é humana, muito humana. Estou certo de que uma concepção por demais
idealista da ‘Lectio Divina’ não
ajuda as pessoas; elas têm sempre o sentimento de uma incompletude. Ao
contrário, uma descrição da ‘Lectio
Divina’, em seu claro-escuro pode ajudar as pessoas a integrá-la em sua
vida que é também, cheia de contradições.
Que essas
reflexões nos ajudem em nossa vida espiritual : que pela constante prática da ‘Lectio Divina’ possamos nos tornar ‘pneumatóforos’, isto é, habitados pelo
mesmo o Espírito que inspirou as Escrituras. Demos carne a essas palavras de
São Gregório Magno, extraídas de uma carta que escreveu a seu afilhado,
exortando-o a não negligenciar a leitura das Escrituras :
‘Aplique-se então a isso, peço-lhe, e medite
cada dia as palavras de seu Criador. Estude o coração de Deus nas palavras de
Deus a fim de suspirar mais ardentemente pelos bens eternos, a fim de que seu
espírito seja inflamado pelos maiores desejos das alegrias celestes. Pois seu
repouso será então tanto maior quanto agora ele não dará qualquer repouso ao
amor de seu Criador. Para chegar aí, o Deus todo-poderoso derramou em você seu
Espírito Consolador. Que ele encha sua alma com sua presença e que ao enchê-la,
ele o eleve (13).’
Com toda
minha amizade,
Dom
Irineu.
Fonte
:
*
Dom Irineu Rezende
Guimarães, OSB, é monge da Abadia Nossa Senhora de Tournay,
França, Congregação Subiaco-Monte Cassino.
Revista Beneditina nrº 51, Julho/Setembro
de 2013, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de
Fora/Minas Gerais.
------------------------
Notas
:
(1) DUPONT
Jacques, ‘Réflexion d’un exegete sur La
‘Lectio Divina’ dans la vie du moine’, in POUPARD Bernard; KAHN Jacques, Lire et ‘prier les Écritures’: la tradition
monastique de la ‘Lectio Divina’, Bruxelles, Lumen Vitae, 2010, p. 13.
(2) AMBRÓSIO DE
MILÃO, De officiis ministeriorum, I,
20, 88.
(3) JERÔNIMO, Carta a Eustochium 22, 25.
(4) CONCÍLIO
VATICANO II, Dei Verbum, 25.
(5) Ver, por
exemplo : CARDEAL MARTINI, ‘Les fruits de la prière qui naît de
l’Écriture’ in : Prier la Bible,
Sources Vives, 113, p. 5-9.
(6)
AGOSTINHO,
Confissões, XVI, 2, 3-7.
(7) AMBRÓSIO DE
MILÃO, Sobre o Salmo 118, VI, 8. PL
15, 1270B.
(8) VEILLEUX
Armand, La Lectio divina como école de
prière chez lês Peres du désert, in http://users.skynet.be/scourmont/Armand/wri/lecti-fra.htm, Acés: le
29 août 2011.
(9) AGOSTINHO, Sobre o Salmo 134, II, PL 37, 1746.
(10) PAULO VI, Evangelii nuntiandi, 19.
(11) KIERKEGAARD,
Soren, Pour um examen de conscience
recommandé aux contemporains.
(12) GREGÓRIO
MAGNO, Diálogos, II, 31.
(13) GREGÓRIO
MAGNO, Carta a Teodósio, PL 77, col.
706.
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