sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Carta sobre a 'Lectio Divina'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo de Dom Irineu Rezende Guimarães, OSB


Caro Irmão,

Pax!

Em nosso diálogo comunitário com os monges mais jovens de nossa abadia, você me perguntou como poderia renovar seu entusiasmo pela ‘Lectio Divina’. Com a sua sinceridade, você confessou mesmo a fadiga e a tentação de sempre procurar outra atividade para preencher o tempo que sobra. Você quer se consagrar à leitura das Escrituras como nos indica a Santa Regra (RB 48), você quer deixar-se guiar pelo Evangelho (RB Prol 21), mas não sabe como.

Ao se expressar assim, você toca no âmago da questão e na raiz de sua (e nossas) incompreensões a respeito da ‘Lectio Divina’. Quando queremos responder à questão : ‘Que é a Lectio Divina’, em geral, dizemos como é praticada. Muitas vezes utilizamos os quatro graus de Guigo, o Cartuxo : leitura, meditação, oração, contemplação. Assim agindo, corremos o risco de fazer da ‘Lectio Divina’ o que ela não é : uma técnica para ler as Escrituras. Por esse motivo, e porque a ‘Lectio Divina’ é compreendida como uma técnica, isto é, uma maneira entre outras de ler as Escrituras, podemos abandoná-la ou nos cansarmos dela.

A bela síntese de Guigo, o Cartuxo, na metade do século XII, é fruto de toda uma tradição. Quando Guigo apresenta sua visão, a Igreja já tem mais de mil anos de experiência da ‘Lectio Divina’. Podemos até trair o espírito de Guigo se fizermos uma leitura instrumental de sua carta, compreendendo-a como um ‘modo de emprego’- o que ela não é – e desprezando sua dimensão de orientação espiritual. A contribuição de Guigo é um dedo que aponta para o céu : não podemos concentrar nossa atenção no dedo!

Portanto, essa dificuldade de dizer o que é a ‘Lectio Divina’, esse embaraço que todo pai espiritual experimenta ao tentar ensinar a ‘Lectio Divina’ aos seus filhos espirituais, é precisamente nosso grande trunfo! Creio que podemos aplicar à ‘Lectio Divina’ os princípios da teologia apofática. Essa teologia nos lembra a dificuldade de dizer quem é Deus, e prefere dizer o que Deus não é. Talvez não possamos dizer o que é a ‘Lectio Divina’ e devamos resignar-nos a dizer o que ela não é. É um bom sinal se chegarmos a dominar a ‘Lectio Divina’ como que domina uma técnica ou uma arte. É um bom sinal se não paramos de tentar descrevê-la, justamente porque ela tem algo de inefável. É preciso compreender a ‘Lectio Divina’ como um sinal do Espírito, do Espírito do qual ouvimos o ruído, mas não sabemos donde vem nem para onde vai (cf. Jo 3, 8).

A ‘Lectio Divina’ não é um exercício que eu possa escolher praticar ou não. É um componente fundamental da consagração do discípulo de Jesus, conforme o que nos diz São João referindo-nos à oração do Cristo a seu Pai na noite da Paixão : ‘Consagra-os na verdade : tua palavra é a verdade’ (Jo 17, 17). Nossa consagração monástica encontra na Palavra um elemento vital : nossa busca de Deus, e o faz por intermédio da Palavra. São Bento nos diz claramente no Prólogo de sua Regra que nossa vocação nasceu da resposta à Palavra (Prol 8-20) e que toda a existência monástica é guiada pelo Evangelho (Prol 21).

A essência da ‘Lectio Divina’ está em ser ela uma relação com Deus por sua Palavra. É a Palavra que nos estabelece na relação com o Cristo : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática’ (Lc 8, 21). O acolhimento da Palavra é a expressão de nosso amor ao Senhor : ‘Se alguém me ama, guardará minha Palavra’ (Jo 14, 23). Melhor do que um modo de emprego, a ‘Lectio Divina’ é uma maneira de ser. O discípulo do Cristo é aquele que é habitado pela Palavra e que está mergulhado na Palavra. A ‘Lectio Divina’ consiste em dar uma existência concreta às palavras do Salmista : Sobre mim está escrito no livro : ‘Com prazer faço a vossa vontade, guardo em meu coração vossa lei!’(Sl 39, 8-9).

Ouso dizer que a ‘Lectio Divina’ pode ser compreendida numa perspectiva sacramental, como expressão e realização de nossa relação com Deus e com sua Palavra. Desejando entreter uma relação com a Palavra, faço a ‘Lectio Divina’ e, ao mesmo tempo, ela concretiza essa relação.  Como sinal de nossa relação com Deus creio que se pode descrever a ‘Lectio Divina’ antes por imagens relacionais do que por etapas mecânicas. Pela e através da ‘Lectio Divina’, alimento minha amizade com Deus, tal como Moisés que conversava com o Senhor como um amigo fala a seu amigo (Ex 33, 11); eu me dou na relação amorosa, tal como a esposa do Cântico dos Cânticos; eu me consagro como discípulo para aprender tudo de meu Mestre.

Compreendendo a ‘Lectio Divina’ como uma relação, podemos identificar alguns pontos de referência. Mas essas balizas são muitas vezes contraditórias. Por esse motivo, é importante apresentar a ‘Lectio Divina’, mesmo para os iniciantes, como uma atividade complexa, cheia de tensões, compreendendo-se a palavra tensão não no seu aspecto negativo, mas em um sentido de vitalidade e de dinamismo. Pode-se mesmo falar de ‘aporias’ ou de ‘paradoxos’ ou ainda, de ‘antinomias’ da ‘Lectio Divina’ para abordar esses aspectos contraditórios que resultam de um impasse e que exigem uma tomada de posição. Penso mesmo que esses aspectos estão na raiz de nossas dificuldades em relação à ‘Lectio Divina’. Ao longo desta carta, quero refletir sobre esses pontos contraditórios ou complexos da ‘Lectio Divina’...



Leitura e Oração

A ‘Lectio Divina’ é primeiramente uma oração, isto é, uma maneira de estabelecer uma relação e uma comunicação com Deus. Dom Jacques Dupont nos adverte que a oração (‘oratio’) é mais do que uma etapa, é o próprio quadro de toda ‘Lectio Divina’. Cito o texto desta importante observação : ‘A palavra ‘oratio’ é assim tomada no sentido limitado de oração de pedido, expressão diante de Deus do desejo que anima o exercício da ‘Lectio Divina’. (...) Minha questão é saber se essa atitude de ‘oratio’ não está presente e suposta desde o ponto de partida da ‘Lectio Divina’, se não é sobre ela que repousa diretamente o empenho da ‘lectio’, depois o da ‘meditatio’. Em vez de apresentar a ‘oratio’ como uma etapa particular da ‘Lectio Divina’, não seria melhor sublinhar que ela qualifica todo o processo?(1).

A ‘Lectio Divina’ tem pois todas as características de uma oração cristã, de um diálogo com Deus pleno e verdadeiro. Os Padres da Igreja sempre valorizaram essa dimensão dialogal da ‘Lectio Divina’ : ‘É a ele que nos dirigimos quando rezamos; é a ele que escutamos quando lemos os oráculos divinos(2); ‘Tu rezas, és tu que falas ao Esposo; tu lês, é ele quem te fala(3). Leitura e oração estavam sempre associadas, como pares que se completam reciprocamente. Neste sentido, podemos compreender esta recomendação da ‘Dei Verbum’ :

O Santo Concílio exorta com força e de modo especial todos os cristãos, sobretudo os membros dos institutos religiosos, a adquirir pela leitura frequente das divinas Escrituras ‘uma ciência eminente de Jesus Cristo’ (Fl 3, 8). (...) Que eles se lembrem todavia que a oração deve acompanhar a leitura da Sagrada Escritura para que estabeleça um diálogo entre Deus e o homem(4).

É por essa unidade essencial entre leitura e oração que a ‘Lectio Divina’ é chamada também ‘leitura orante da Escritura’ ou ‘a oração que nasce da escritura(5).

A própria denominação de ‘Lectio Divina’ permanece problemática. A ‘Lectio Divina’ não é uma ‘lectio’, uma leitura, como a leitura de qualquer outro texto. Nesse sentido, ela não é uma simples aquisição de informações, como quando lemos um texto qualquer. Não obstante, uma vez que é uma ‘lectio’, ela utiliza a leitura do texto sagrado para criar a oportunidade de um encontro com o sagrado. A leitura se torna uma oportunidade para encontrar o Senhor, como os Padres da Igreja já nos advertiam : ‘É ele, o Cristo, que procuro nos livros(6).

A ‘Lectio Divina’ como atividade da Igreja, participa também da estrutura sacramental da Igreja. Da mesma forma que pela água entramos na vida nova do batismo, ou que pelo pão e o vinho entramos numa comunhão com o Cristo, a ‘Lectio Divina’, pela leitura nos permite entrar em uma comunicação com o Cristo. As realidades materiais se tornam portas ou janelas para as realidades sobrenaturais. Mas elas podem também permanecer como muros... É por isso que a tradição espiritual nos diz : Usus non lectio prodentes facit (É a vida e não a leitura que torna as pessoas sábias). Ler é um marco no caminho do crescimento espiritual.



Prazer e Esforço

O vocabulário que São Bento emprega em relação à ‘Lectio Divina’ revela bem essa complexidade. Ele utiliza duas expressões que são aparentemente contraditórias : ‘vacare’ e ‘intentus’.

Utilizando uma expressão clássica da tradição cristã – ‘vacare lectionibus’ (RB 48,4.10.13-14) -, São Bento quer insistir no lado lúdico, talvez mesmo prazeroso e de lazer que deve caracterizar a ‘Lectio Divina’. A palavra ‘vacare’ pode-nos fazer pensar em um vazio, mas também em vacância (férias). Para São Bento a expressão tem o sentido de estar disponível para a leitura, isto é, de deixar tudo para que possamos estar plenamente desocupados para Deus e sua Palavra. Mas é evidente que a expressão evoca essa dimensão de gratuidade que a Palavra assume em alguns textos bíblicos, como por exemplo, nos Salmos. Lá nós encontramos a ‘Lectio Divina’ associada a uma atividade agradável : ‘Feliz aquele que encontra seu prazer na lei de Deus’ (Sl 1, 2); a Palavra do Senhor ‘é mais doce que o mel, que o mel que sai dos favos’ (Sl 18, 11), etc.

Mas São Bento utiliza também a expressão ‘intentus’ para descrever a ‘Lectio Divina’ (RB 48, 18). Podemos traduzir esta palavra latina pela palavra ‘aplicação’. Ela evoca também atenção, diligência, vigilância, com a idéia de ação e de trabalho, às vezes mesmo exigente. Em primeiro lugar, São Bento nos pede para evitar o demônio supremo da vida monástica, a acédia (RB 48, 17). Esta expressão, por sua vez, está ligada a uma longa tradição bíblica que põe em relevo a responsabilidade humana face à Palavra de Deus, como por exemplo, Samuel que não deixava cair por terra as Palavras do Senhor (1Sm 3, 19). Esta dimensão que a palavra ‘intentus’ exprime será desenvolvida principalmente pelos Padres do deserto : Santo Atanásio conta que Santo Antão ‘lia o texto sagrado com tanta atenção que não esquecia jamais nada do que tinha lido, sua memória lhe servia de livros’ (Vida de Santo Antão, 11). Os antigos diziam que é preciso aplicar-se inteiramente à Escritura para que a Escritura possa se aplicar inteiramente a nós, que ‘a pessoa inteira esteja inclinada à Escuta do Verbo(7).

Se São Bento emprega a respeito da ‘Lectio Divina’ duas expressões que podem parecer contraditórias é porque ele as concebe na sua complexidade, como uma atividade que deve ser ao mesmo tempo, plena de prazer e de esforço. A ‘Lectio Divina’ não é uma atividade simples. Como fazer dela um momento agradável sem cair na ociosidade? Como fazer com ela um esforço sem que ela seja um fardo?



Ato e Atitude

Uma outra dificuldade ou contradição que podemos encontrar na ‘Lectio Divina’ é que ela é, ao mesmo tempo um ato e uma atitude.

A  ‘Lectio Divina’ é primeiramente um ato bem definido e inscrito no cotidiano de cada um de nós. Ela exige, antes do mais, um tempo fixado, com um começo, um desenvolvimento e um fim : é preciso tempo para por nos deixar atingir pela Palavra. A ‘Lectio Divina’ sem deixar de ser uma ação pessoal e íntima, exige também um espaço sagrado. E como uma liturgia divina que se realiza no santo templo de nossa interioridade, ela exige também um rito, bem como uma preparação. O que São Bento nos propõe em relação a qualquer boa ação, ou seja, pedir a Deus pela oração, para acabá-la (aperfeiçoá-la) (RB Prol 4), aplica-se também à ‘Lectio Divina’. Sem o auxílio e a presença do Espírito Santo, ela será apenas uma leitura de um texto qualquer. Só com a ajuda e a presença do Espírito Santo é que a nossa leitura será propriamente ‘divina’.

Esse ato se projeta sobre o conjunto e a totalidade de nossa vida. Nossa relação com a Palavra não se reduz aos momentos nos quais temos em mãos o Livro que a contém. Por isso, podemos dizer que a ‘Lectio Divina’ é também uma atitude, isto é, que ela ocupa as 24 horas do dia, fazendo o esforço de guardar o mesmo espírito de uma escuta gratuita de Deus igualmente em todas as nossas outras atividades que fazem parte de nossa jornada. Mais do que uma seteira horária em nossos dias, a ‘Lectio Divina’ torna-se uma dimensão de nossa vida cristã, como uma obra de toda nossa vida. A essência da ‘Lectio Divina’ é essa atitude espiritual de consentir e permitir que a Palavra de Deus possa questionar nossa vida e formar nossa consciência, é a disponibilidade de nossa alma e de nosso ser ao Espírito de Deus a fim de se deixar ‘interrogar por Deus, deixar-se interpelar(8). Como dizem os Padres, ‘não são palavras que Deus espera de ti, e sim, teu coração (9).

Para nós a questão será equilibrar essas duas dimensões. Se a ‘Lectio Divina’ não tiver consequência sobre o nosso comportamento, se não atingir ‘os critérios de julgamento, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos da vida da humanidade(10), correrá o risco de ser um exercício piedoso, mas jamais o eixo de nossa vida de consagração a Deus. Se ela não entrar em nossa vida como um ato diariamente bem realizado, não terá a força de influenciar e de mudar a qualidade de nossa vida espiritual.

Para assegurar o justo equilíbrio entre essas duas dimensões, os Padres do deserto tinham por prática povoar seu pensamento com pequenos trechos da Palavra de Deus que lhes permitiam guardar o espírito concentrado na Palavra. A Regra de São Bento é um eloquente testemunho de uma alma que conseguiu fazer da ‘Lectio Divina’ um ato e uma atitude. Quantas afirmações capitais na Regra, além das citações explícitas da Escritura, constituem a expressão de alguém que de fato mastigou a Palavra de Deus. A célebre afirmação ‘que em tudo seja Deus glorificado’ não é por acaso um eco e uma aplicação de 1Pd 4, 11? Ou ainda, a menção que, na salmodia ‘nosso espírito concorde com nossa voz’ (RB 19, 7) não é uma paráfrase do versículo final do salmo 18 : ‘Que vos agrade o cantar dos meus lábios e a voz da minha alma’ (Sl 18, 15)? Na verdade, São Bento podia colocar a questão : ‘Que página, com efeito, ou que palavra de autoridade divina no Antigo e no Novo Testamento não é uma norma retíssima da vida humana?’ (RB 73, 3).



Graça e Combate

Uma outra aporia ou aspecto contraditório da ‘Lectio Divina’ é que ela é, ao mesmo tempo, uma graça e um combate, ação de Deus em nós, mas também esforço pessoal.

Por um lado a ‘Lectio Divina’ é uma graça, uma irrupção de Deus em nossas vidas, uma espécie de teofania cotidiana : Deus vem ao nosso encontro nas páginas do Livro Santo. Pode-se compreender o adjetivo ‘divina’ nesse sentido : a ‘lectio’ é feita por Deus, é Deus seu autor e seu assunto! Assim como a chuva que vem dessedentar a terra e fazer germinar a semente, o Pai faz ressoar em nós sua Palavra de vida (cf Is 55, 10-11). Como no caminho de Emaús, Cristo Ressuscitado inflama nossos corações e nos revela o sentido das Escrituras! (cf Lc 24, 32). E o Espírito Santo vem em ajuda às nossas fraquezas e atinge nossas almas para que tenhamos o mesmo Espírito que inspirou os autores sacros. Sem dúvida, a ‘Lectio Divina’ é um espaço e um momento privilegiado de nosso cotidiano, onde Deus age em nós e nos diviniza! Um espaço e um tempo nos quais a Santíssima Trindade vem habitar em nós!

Esta alta dimensão teológica e teologal da ‘Lectio Divina’ faz dela também um lugar de combate espiritual. Se Deus revela plenamente na ‘Lectio Divina’ como Deus-conosco, o homem também se revela plenamente no que tem de melhor e de pior! As dificuldades que temos em relação à ‘Lectio Divina’ podem nos revelar as dificuldades e os combates de nossa vida espiritual. Em primeiro lugar permanecer em sua cela como um exercício cotidiano de estabilidade. Dominar nossos pensamentos para orientar todas as nossas energia para Aquele que quer nos falar ao coração. Lutar contra o sono para guardar a vigilância. Evitar a dispersão para dar tempo e uma qualidade de relação ao Senhor. Na ‘Lectio’ efetuamos nossa travessia do Jaboc, lutamos contra o Anjo, sós, num face a face com o  nosso Deus e permitimos que ele deixa sua marca em nós (cf Gn 32, 23-33).

Foi a compreensão desse aspecto soteriológico da ‘Lectio Divina’, isto é, uma atividade onde nossa salvação está também em jogo, que levou São Bento a propor que os mais velhos percorram o mosteiro nas horas em que os irmãos se entregam à leitura (RB 48, 17) : para não desprezar a graça divina, entregando-se ao ócio ou às conversas (RB 48, 18). Podemos traduzir hoje essa advertência de nosso santo fundador como uma exortação à vigilância em relação a nós mesmos. Nos outros momentos do dia, estamos com frequência com nossos irmãos, como por exemplo no Ofício, no capítulo e no trabalho. Mas durante a ‘Lectio Divina’ estamos sós com Deus, numa solidão que expõe e revela a verdade de nosso ser. Na ‘Lectio Divina’ não podemos fugir de nossa realidade : ela nos convida a habitar conosco mesmo na Aliança com o Deus de amor!



Dimensão Interior e Exterior

Uma última aporia à qual convido a refletir é a dimensão interior e exterior dessa maneira de ler a Escritura.

Em primeiro lugar, a ‘Lectio Divina’ tem uma claríssima dimensão de interioridade. Começando pelo espaço no qual ela se desenvolve : ‘Quando rezares, entra em teu quarto, fecha tua porta e reza a teu Pai’ (Mt 6, 6). A ‘Lectio Divina’ se oculta ao olhar dos homens para mergulhar numa solidão do homem, solidão que é habitada pela presença de Deus. Mas solidão! E solidão que é a própria condição da leitura. Como afirmava o dinamarquês Soren Kierkegaard, ‘Se alguém não fica só com a Palavra de Deus, ele não lê!’ E acrescenta : ‘numa solidão onde nenhuma ilusão se interpõe(11). Compreende-se que essa dimensão de solidão seja para algumas pessoas a própria razão de seu entusiasmo pela ‘Lectio Divina’, e para outras, a própria razão do seu medo dessa prática. Compreende-se também a dificuldade de toda uma geração em cavar esse espaço interior, condição sine qua non de toda leitura da Escritura que quer receber o nome de ‘Lectio Divina’’.

Mas essa interioridade não pode ser compreendida como fechamento ou alienação. Se a ‘Lectio Divina’ é um ato espiritual, isso significa que ela se abre e se projeta sobre os outros e sobre o mundo. Sobre isso podemos lembrar, em ‘Vida e Milagres de São Bento’ o episódio de Zala, o godo (12). Vocês se lembram : Zala era um godo que certo dia, inflamado pelo ardor da avareza e sequioso de rapina, afligia um camponês com tormentos cruéis e o torturava com suplícios diversos. Este, vencido pela dor, declarou que tinha confiado seus bens ao servidor de Deus, Bento. Então Zala, depois de lhe ter amarrado os braços, se pôs a empurrá-lo diante de seu cavalo com a ordem de lhe mostrar quem era esse Bento a quem ele tinha confiado seus bens. Quando chegou ao mosteiro, com o camponês amarrado, Bento estava lendo, - pode-se compreender que estava fazendo sua ‘Lectio Divina’ – aos gritos do godo, o homem de Deus levantou os olhos do seu livro e quando eles param, as cordas que o amarravam caem. E São Gregório acrescenta : ‘Este homem santo não abandona sua leitura e sem se levantar, chama os irmãos’. Foi porque São Bento estava de tal modo concentrado na leitura que esta teve consequências concretas sobre os homens de seu tempo.

Com esse percurso, tentei mostrar como a ‘Lectio Divina’ é humana, muito humana. Estou certo de que uma concepção por demais idealista da ‘Lectio Divina’ não ajuda as pessoas; elas têm sempre o sentimento de uma incompletude. Ao contrário, uma descrição da ‘Lectio Divina’, em seu claro-escuro pode ajudar as pessoas a integrá-la em sua vida que é também, cheia de contradições.

Que essas reflexões nos ajudem em nossa vida espiritual : que pela constante prática da ‘Lectio Divina’ possamos nos tornar ‘pneumatóforos’, isto é, habitados pelo mesmo o Espírito que inspirou as Escrituras. Demos carne a essas palavras de São Gregório Magno, extraídas de uma carta que escreveu a seu afilhado, exortando-o a não negligenciar a leitura das Escrituras :

Aplique-se então a isso, peço-lhe, e medite cada dia as palavras de seu Criador. Estude o coração de Deus nas palavras de Deus a fim de suspirar mais ardentemente pelos bens eternos, a fim de que seu espírito seja inflamado pelos maiores desejos das alegrias celestes. Pois seu repouso será então tanto maior quanto agora ele não dará qualquer repouso ao amor de seu Criador. Para chegar aí, o Deus todo-poderoso derramou em você seu Espírito Consolador. Que ele encha sua alma com sua presença e que ao enchê-la, ele o eleve (13).’

Com toda minha amizade,

                                   Dom Irineu.


Fonte : 
* Dom Irineu Rezende Guimarães, OSB, é monge da Abadia Nossa Senhora de Tournay, França, Congregação Subiaco-Monte Cassino.
 
Revista Beneditina nrº 51, Julho/Setembro de 2013, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais.

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Notas : 

(1) DUPONT Jacques, ‘Réflexion d’un exegete sur La ‘Lectio Divina’ dans la vie du moine’, in POUPARD Bernard; KAHN Jacques, Lire et ‘prier les Écritures’: la tradition monastique de la ‘Lectio Divina’, Bruxelles, Lumen Vitae, 2010, p. 13.
(2) AMBRÓSIO DE MILÃO, De officiis ministeriorum, I, 20, 88.
(3) JERÔNIMO, Carta a Eustochium 22, 25.
(4) CONCÍLIO VATICANO II, Dei Verbum, 25.
(5) Ver, por exemplo : CARDEAL  MARTINI, ‘Les fruits de la prière qui naît de l’Écriture’ in : Prier la Bible, Sources Vives, 113, p. 5-9.
(6) AGOSTINHO, Confissões, XVI, 2, 3-7.
(7) AMBRÓSIO DE MILÃO, Sobre o Salmo 118, VI, 8. PL 15, 1270B.
(8) VEILLEUX Armand, La Lectio divina como école de prière chez lês Peres du désert, in http://users.skynet.be/scourmont/Armand/wri/lecti-fra.htm, Acés: le 29 août 2011.
(9) AGOSTINHO, Sobre o Salmo 134, II, PL 37, 1746.
(10) PAULO VI, Evangelii nuntiandi, 19.
(11) KIERKEGAARD, Soren, Pour um examen de conscience recommandé aux contemporains.
(12) GREGÓRIO MAGNO, Diálogos, II, 31.
(13) GREGÓRIO MAGNO, Carta a Teodósio, PL 77, col. 706.


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