*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte
‘A sociedade contemporânea é,
contraditoriamente, marcada pelos grandes avanços e flagelos. Guerras
fratricidas, fome, catástrofes de todo tipo configuram uma lista que desenha
cenários preocupantes de avassaladora desumanização. Estas e outras chagas
precisam ser duramente enfrentadas com respostas adequadas e mais velozes sob
pena de testemunharmos a derrocada das tradições e narrativas, sustentáculos do
respeito aos princípios fundamentais que tornam possível a vida humana no
planeta. Para enfrentar o flagelo da desumanização, devem ser priorizadas a
paixão pela justiça e o gosto pela verdade.
O Papa Francisco, na sua Exortação
Apostólica sobre a Alegria do Evangelho, faz preciosa advertência que precisa
tocar mais fundo os corações. Ele sublinha a gravíssima responsabilidade de
todos, quando se consideram situações que estão produzindo, em velocidade
assombrosa, um processo de desumanização. Esse percurso nos leva a uma herança
de realidades difíceis de serem revertidas. Trata-se de sentença de morte, pois
nenhum progresso material é capaz de superar e recuperar estragos humanitários.
São perdas que desfiguram a condição humana, afasta-a de sua identidade e
missão próprias.
A era do poder e da informação que
caracteriza este tempo inicial do terceiro milênio está produzindo,
lamentavelmente, um caminho na contramão da indispensável humanização, único
pilar capaz de sustentar a vida nas sociedades contemporâneas. Basta navegar
pelo ambiente digital, o domínio determinante e poderoso das redes sociais,
para que se chegue a essa constatação. Uma referência comum é o tratamento
jocoso e debochado da dor alheia, do luto desrespeitado. Não menos grave é o
anonimato covarde na internet para manipular situações e confundir as pessoas
sobre a verdade, condição fundamental para o bem.
Este processo
crescente de desumanização envenena as relações interpessoais e as interfaces de
instâncias da sociedade. Empurra pessoas, grupos, famílias e igrejas para a
condição de lobos uns dos outros, com aparência de cordeiros. Vive-se uma realidade em que
propaganda enganosa, artimanhas políticas, mentirinhas e outros mecanismos são
adotados pela convicção de que os fins justificam os meios. É terrível o nível
de hipocrisia e conveniência nas falas, atitudes e apoios, gerando conivências
tácitas com o mal, trazendo prejuízos irreparáveis a instituições como a
família, igrejas, governos, e a terrível neutralização dos mais pobres e dos
indefesos. Hipocrisia que partidariza ao extremo as relações e conduz a
atitudes de descarte do outro, ignorando o compromisso interpessoal, ensinado
pelo Evangelho, de ajuda ao próximo.
O flagelo
da desumanização está alimentando, com perversidade, a formação dos guetos
e as consequentes segregações que incapacitam para o diálogo, via única para a
urgente construção de relações qualificadas na sociedade contemporânea. As
contradições são muitas e tecem um emaranhado inexplicável que obscurece os
corações do sentido de amar. O que se faz é por conveniência, sem escrúpulos.
Manipulam-se escolhas, juízos equivocados encontram justificativas, sempre.
A sociedade desumanizada opera no
submundo dos interesses mesquinhos, do uso das instituições como lugares de
satisfação de interesses particulares. Tudo funciona num ‘faz de conta’ que corrói o sentido e a alegria de se viver com
liberdade e com autenticidade. Conta sempre o patológico desejo de ser
reconhecido como quem tem poder. Assim, a hipocrisia e a arrogância comprometem
a humanização da sociedade. Elas passam a nortear decisões determinantes à
sobrevivência dos mais pobres, especialmente na área econômica. O crescimento e
o equilíbrio da economia mundial e nacional não podem ser perseguidos apenas
com os mecanismos matemáticos, nem só pelas esperadas escolhas daqueles que
governam e constroem, de modo decisivo, a sociedade plural. Parafraseando o
economês, humanismo é um capital determinante para a sustentabilidade da
sociedade mundial.
A crise de sentido e de valores se
sobressai entre aquelas que ameaçam a humanização. Ela fere um legado básico
que, comprometido, produz os cenários aviltantes presenciados pelo mundo. São
guerras estarrecedoras, apoiadas por conivências e interesses espúrios, que
atentam contra a nobreza da humanidade. Uma realidade que condena os pobres ao
isolamento, consequência da incompetência de governos e da insensibilidade
daqueles que têm poder para dialogar, encontrar soluções, sem o uso da força
policial e sem o comodismo de contentar-se com a segregação.
Transformar esta realidade, contudo,
exige mais do que esperar ser convocado para o diálogo. É preciso agir e, no
atual contexto, o pleito eleitoral é oportunidade singular. Outras coisas são
urgentes, mas urgentíssimo é enfrentarmos, juntos, a tarefa de transformar as
causas do devastador flagelo da desumanização.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.news.va/pt/news/flagelo-da-desumanizacao
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