segunda-feira, 31 de março de 2014

Encontros da Campanha da Fraternidade 2014

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ


‘O tempo quaresmal, propício e salutar tempo de conversão, possibilita o caminho da verdadeira liberdade. Os exercícios quaresmais do jejum, da oração e da esmola nos abrem silenciosamente para o encontro com Aquele que é a plenitude da vida, com Aquele que é a luz e a vida de toda pessoa que vem a este mundo (Jo 1, 10). Jejum, muito mais do que uma privação, é esvaziamento, uma expropriação; tentativa de deixar-nos atingir pela graça da liberdade com que Cristo nos presenteou. O jejum abre o nosso ser para a receptividade da vida nova, da liberdade. A oração é a exposição de quem espera ser atingido pela misericórdia d’Aquele que nos amou primeiro e até o fim. (Jo 4,10). A esmola é o amor partilhado; é deixar-se tomar pela dinâmica da caridade; é sair de si mesmo; é deixar-se tocar pela presença do outro, especialmente do mais necessitado.

O período quaresmal convida os discípulos missionários a uma verdadeira conversão, para que o testemunho da liberdade em Jesus Cristo seja edificante e sustente a Igreja em sua missão de anunciar o Evangelho. A conversão implica recomeçar a partir de Jesus Cristo. Então, tenhamos os olhos fitos em Jesus Cristo, que, na cruz se fez solidário aos que sofrem em nosso meio, especialmente com as injustiças. Nosso caminhar quaresmal não pode ser insensível a situações que atentam contra a dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais, como o tráfico humano, tema da Campanha da Fraternidade deste ano.

No caminho de conversão quaresmal, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos apresenta a Campanha da Fraternidade como itinerário de libertação pessoal, comunitário e social. Tráfico humano e fraternidade é o lema da Campanha para a Quaresma em 2014. O lema é inspirado na carta aos Gálatas: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (5,1).

O tráfico humano viola a grandeza de filhos, destrói a imagem de Deus, cerceia a liberdade daqueles que foram resgatados por Cristo. As comunidades, as família, as pessoas certamente buscarão superar a globalização da indiferença em relação ao tráfico humano.

O tráfico humano é um crime que atenta contra a dignidade da pessoa humana, já que explora o filho e a filha de Deus, limita suas liberdades, despreza sua honra, agride seu amor próprio, ameaça e subtrai sua vida, quer seja da mulher, da criança, do adolescente, do trabalhador ou da trabalhadora – de cidadãs e cidadãos que, fragilizados por sua condição socioeconômica e/ou por suas escolhas, tornam-se alvo fácil para as ações criminosas de traficantes.

Quanto ao tráfico humano, o Papa Francisco se referiu assim a essa prática: “o tráfico de pessoas é uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas! O tráfico humano é uma das questões sociais mais graves da atualidade. Não há país livre do tráfico de pessoas, seja como ponto de origem do crime, seja como destino dos traficados".

O Concílio Ecumênico Vaticano II trata do tema na Gaudium et Spes nº 27: “a escravidão, a prostituição, o mercado de mulheres e de jovens, ou ainda as ignominiosas condições de trabalho, com as quais os trabalhadores tratados como simples instrumentos de ganho, e não como pessoas livres e responsáveis” são “infames”, prejudicam a civilização humana, desonram aqueles que assim se comportam” e ofendem grandemente a honra do Criador”.

Com esta Campanha da Fraternidade, a Igreja Católica se une a essas iniciativas no intuito de potencializá-las e suscitar, em suas comunidades, reflexões e ações de combate a esta chaga social, de superação de situações de vulnerabilidade ao tráfico, de prevenção, proteção e inserção, observando-se o respeito à dignidade  do ser humano e o implemento dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais no convívio familiar, comunitário e social. No entanto, a superação do silêncio das pessoas em situação de tráfico requer a valorização da palavra, da voz e da experiência vivenciada pelas vítimas, da nossa escuta qualificada e ativa, enquanto irmãos e irmãs em Cristo.

Dessa maneira, a Campanha da Fraternidade nos convida a fazer uma reflexão sobre o tema da Quaresma e sobre o tráfico humano. Assim, a proposta é que façamos a reflexão sobre este tema em nossas paróquias, nos grupos de reflexão, nos círculos bíblicos, nas pequenas comunidades e em nossas casas, acompanhando o livro de encontro da CF 2014. É vivendo, intensamente, estes encontros, nas nossas casas, com grupos de reflexão, saindo em procissão com a Via Sacra pelas ruas de nossa cidade do Rio de Janeiro que iremos conscientizar a sociedade da necessidade de superar o tráfico humano e todas as situações que atentam contra a vida humana, a liberdade de ir e de vir, e a prisão que muitos vivem iludidos pelas paixões desordenadas!

Que estes encontros sejam momentos de verdadeira e autêntica partilha e fraternidade, apanágios do amor e do perdão que todos devemos não só viver, mas testemunhar!’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/encontros-da-campanha-da-fraternidade-2014


sábado, 29 de março de 2014

Santo Ambrósio e a Fé na Eucaristia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano),
reflete sobre a terceira pregação da quaresma de 2014


1. A reflexão sobre os sacramentos

Junto do tema da Igreja, outro tema sobre o qual se nota um progresso na passagem dos Padres gregos aos latinos é aquele dos sacramentos. Nos primeiros tinha faltado uma reflexão sobre os sacramentos em si, ou seja, sobre a ideia de sacramento, embora tendo tratado de forma excelente de cada mistério : batismo, unção, eucaristia (1).

O iniciador da teologia sacramental – daquilo que, a partir do século XII, será o ‘De sacramentis’ – é ainda mais uma vez Agostinho. Santo Ambrósio com as suas duas séries de discursos ‘Sobre os sacramentos’ e ‘Sobre os mistérios’, antecipa o nome do tratado, mas não o seu conteúdo. Também ele, de fato, se ocupa de cada sacramento e não ainda dos princípios comuns a todos os sacramentos : ministro, matéria, forma, modo de produzir a graça...

Então, por que escolher Ambrósio como mestre de fé de um tema sacramental como é aquele da Eucaristia sobre o qual queremos hoje meditar? A razão é que Ambrósio é aquele que mais do que qualquer outro tem contribuído para o fortalecimento da fé na presença real de Cristo na Eucaristia e lançou as bases para a futura doutrina da transubstanciação. No ‘De sacramentis’ escreve :

Este pão é pão antes das palavras sacramentais; quando acontece a consagração, de pão torna-se carne de Cristo (...) Com quais palavras se realiza a consagração e de quem são essas palavras? (...) Quando se realiza o venerável sacramento, já não é mais o sacerdote que usa as suas palavras, mas usa as palavras de Cristo. É, portanto, a palavra de Cristo que realiza este sacramento(2).

No outro escrito, sobre os mistérios, o realismo eucarístico é ainda mais explícito. Diz :

A palavra de Cristo que pôde criar do nada o que não existia, não pode transformar em algo diferente aquilo que existe? De fato, não é algo menor dar às coisas uma natureza totalmente nova do que mudar aquela que já tem (...). Este corpo que produzimos (conficimus) sobre o altar é o corpo nascido da Virgem. (...) Com certeza é a verdadeira carne de Cristo que foi crucificada, que foi sepultada; é, portanto, realmente o sacramento da sua carne (...). O próprio Senhor Jesus proclama :  'Este é o meu corpo’. Antes da bênção das palavras celestes usa-se o nome de outro objeto, depois da consagração significa corpo(3).

Sobre este ponto a autoridade de Ambrósio, no desenvolvimento posterior da doutrina eucarística, prevaleceu sobre aquela de Agostinho. Este certamente acredita na realidade da presença de Cristo na Eucaristia, mas, como vimos na meditação passada, acentua ainda mais fortemente o seu significado simbólico e eclesial. Alguns dos seus discípulos chegarão a afirmar não só que a Eucaristia faz a Igreja, mas que a Eucaristia é a Igreja : ‘Comer o corpo de Cristo, não é nada mais do que tornar-se o corpo de Cristo(4).  A reação à heresia de Berengário de Tours que reduzia a presença de Jesus na Eucaristia a uma presença só dinâmica e simbólica, provocou uma reação unânime na qual as palavras de Ambrósio tiveram um papel importante. Ele é a primeira autoridade que Santo Tomás de Aquino cita na sua Somma em favor da tese da presença real (5).

A expressão ‘corpo místico’ de Cristo, que até agora tinha servido para designar a Eucaristia, passou aos poucos a indicar a Igreja, enquanto que a expressão ‘verdadeiro corpo’ normalmente foi reservada somente à Eucaristia (6). Esta particular inversão marca, de certa forma, o triunfo da herança de Ambrósio sobre aquela de Agostinho. Expressões como aquelas do hino Ave verum, onde o corpo eucarístico de Cristo é saudado como ‘o verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria, que foi imolado na cruz e de cujo lado jorraram água e sangue’, parecem tiradas quase totalmente das palavras mencionadas acima por Ambrósio.

Podemos resumir dessa forma a diferença entre as duas perspectivas. Dos três corpos de Cristo – o corpo verdadeiro ou histórico de Jesus nascido de Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial – Agostinho une estreitamente o segundo e o terceiro, o corpo eucarístico e aquele da Igreja, diferenciando-os do corpo real e histórico de Jesus; Ambrósio une, de fato identifica, o primeiro com o segundo, ou seja, o corpo histórico de Cristo e aquele eucarístico, distinguindo-os do terceiro, ou seja, do corpo eclesial.

Neste sentido, se poderia ir muito além, caindo em um realismo exagerado, quase que – como dizia uma fórmula contrária à heresia de Berengário - o corpo e o sangue de Cristo estivessem presentes no altar ‘sensivelmente e fossem, na verdade, tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fieis’ (7). Mas o remédio de tal perigo estava na mesma noção de sacramento já claro na teologia. Que a Eucaristia não é uma presença física, mas sacramental, mediada por sinais que são, de fato, o pão e o vinho.


2. A Eucaristia e a Beraka judaica

Se existe um limite na visão de Ambrósio, esse é a ausência de qualquer referência à ação do Espírito Santo na produção do corpo de Cristo sobre o altar. Toda a eficácia reside nas palavras da consagração. Elas são para ele palavras criativas, ou seja, palavras que não se limitam a afirmar uma realidade existente, mas produzem a realidade que significam, como a frase ‘fiat lux’ da criação. Isso influenciou na pouca importância que teve na liturgia latina a epiclese do Espírito Santo, que desempenha, pelo contrário, nas liturgias orientais um papel essencial como aquele das palavras da consagração.

As novas Orações Eucarísticas fizeram explícito, sobre esse ponto, o que no Cânone romano somente era mencionado implicitamente. A frase : ‘Santifica, oh Deus, esta oferta com a potência da tua benção’, equivale na verdade a dizer : ‘Santifica, Oh Deus, esta oferta com a potência do teu Santo Espírito’, e talvez teria sido melhor, no momento de traduzir o Cânone romano nas línguas modernas, explicitar neste sentido o significado da frase, de modo que nem sequer esta venerável oração eucarística ficasse sem uma verdadeira epiclese ao Espírito Santo.

Mas há uma lacuna maior, da qual se começa a dar-se conta, e que não diz respeito só a Ambrósio e nem sequer somente aos Padres latinos, mas à explicação do mistério eucarístico no seu todo. Mais do que nunca, vemos aqui como o estudo dos Padres não só nos ajuda a recuperar tesouros antigos, mas também a abrir-nos ao novo que emerge na história; a imitá-los não só no conteúdo, mas também no método que era o de colocar a serviço da palavra de Deus todos os recursos e os conhecimentos disponíveis no seu contexto cultural.

O novo recurso que temos hoje para compreender a Eucaristia é a aproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiros dias da Igreja, vários fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre o cristianismo e o judaísmo, até contrapô-los entre si, como faz já Ignácio de Antioquia (8). Destacar-se dos hebreus – na data da Páscoa, nos dias de jejum, e em tantas outras coisas – se torna uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente direcionada aos próprios adversários e aos hereges é aquela de ‘judaizar’.

A respeito da Eucaristia, o novo clima de diálogo com o judaísmo tornou possível uma melhor compreensão da sua matriz hebraica. Como não é possível entender a Páscoa cristã, a menos que seja considerada como o cumprimento do que a Páscoa hebraica prenunciava, assim não é possível compreender completamente a Eucaristia se ela não é vista como o cumprimento do que os hebreus faziam e diziam ao longo da sua refeição ritual. O próprio nome Eucaristia não é nada mais do que a tradução de Beraka, a oração de bênção e agradecimento feita durante esta refeição. Um primeiro resultado importante dessa mudança foi que hoje nenhum estudioso sério avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tem tentado fazer por mais de um século.

Os Padres da Igreja conservam as Escrituras do povo hebraico, mas não a sua liturgia, à qual não podiam mais participar, depois da separação da Igreja da Sinagoga. Assim, para a Eucaristia utilizaram as figuras contidas nas Escrituras – o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná -, mas não o concreto contexto litúrgico no qual o povo hebraico celebrava todas estas memórias que era a refeição espiritual celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e semanalmente no culto da sinagoga. O primeiro nome pelo qual a Eucaristia foi designada por Paulo no Novo Testamento é o de ‘refeição do Senhor’ (kuriakon deipnon) (1 Cor 11, 20), com evidente referência à refeição hebraica pela qual se diferencia já pela fé em Jesus.

É a perspectiva em que se coloca também Bento XVI no capítulo dedicado à Instituição da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião agora predominante dos estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de adeus; com Lous Bouyer, também Bento XVI acredita que seja possível ‘traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânone, da beraka hebraica(9).

Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica, tentou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, especialmente das noções aristotélicas de substância e acidente. Também isso era um colocar a serviço da fé os conhecimentos novos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Nos nossos dias, temos que fazer o mesmo com os novos conhecimentos de ordem, desta vez, históricas e litúrgicas mais do que filosóficas.

Com base nos estudos já realizados nessa direção, especialmente o de L. Bouyer (10), gostaria de mostrar a luz intensa que recai sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrações evangélicas da instituição sobre o fundo do que sabemos da refeição espiritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não será diminuída, mas exaltada ao máximo.


3. O que aconteceu naquela noite

Um texto que mostra os laços estreitos entre a liturgia judaica e a ceia cristã é a Didaqué. Este texto não é nada mais do que uma coleção de orações da sinagoga, com o acréscimo, aqui e ali, das palavras ‘pelo teu servo Jesus Cristo’; o resto é idêntico à liturgia da sinagoga. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas ‘berakah’ que em grego é traduzido por ‘Eucaristia’. A beraka resume a espiritualidade da antiga Aliança e é a resposta de benção e de ação de graças que Israel dá à palavra de amor dirigida-lhe pelo seu Deus.

O rito seguido por Jesus ao instituir a Eucaristia acompanhava todas as refeições dos Hebreus, mas assumia uma particular importância nas refeições em família ou em comunidade no sábado e nos dias festivos. No início da refeição, cada um por sua vez tomava pela mão uma taça de vinho e, antes de leva-la aos lábios, repetia uma benção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório : ‘Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei dos séculos, que nos destes este fruto da videira’. É o primeiro cálice de vinho.

Mas a refeição começava oficialmente só quando o pai de família ou o chefe da comunidade tinha partido o pão que tinha que ser distribuído entre os convidados. E, de fato, Jesus, logo após a frase, toma o pão, recita a benção, parte-o e o distribui dizendo : ‘Este é o meu corpo...’ E aqui o rito, que era somente uma preparação, se torna realidade. Depois da benção do pão, que era considerada como uma benção geral por todo o alimento, serviam-se os pratos de costume.

Se os precedentes da Eucaristia se encontram na refeição ritual dos Judeus, então não tem mais significado especial saber se a festa da Páscoa coincidia com a Quinta-feira Santa ou com a Sexta-feira Santa. Jesus não associou a Eucaristia com nada particular próprio do alimento da Páscoa (deixando de lado a incompatibilidade da data, não há qualquer referência ao consumo do cordeiro e das ervas amargas), mas apenas com aqueles elementos que fazem parte do rito de cada dia : ou seja, a fração do pão no começo e com a grande oração de ação de graças no final. O caráter pascal da última ceia é inegável, mas é independente destas discussões e se explica com o nexo que Jesus coloca entre a Eucaristia (‘o meu sangue derramado por vós’) e a sua morte de cruz. É ali que se realiza, de acordo com João, a figura do cordeiro pascal ao qual ‘não se quebra nenhum osso’ (Jo 19,36).

Mas voltando ao ritual hebraico. Quando o jantar está acabando e as iguarias foram consumidas, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no começo. Estava prescrito que o presidente recebesse a água do mais jovem dos presentes e talvez João a tenha dado a Jesus. Mas, o Mestre, em vez de deixar-se servir, dá uma lição de humildade, lavando os seus pés. Terminado isso, tendo diante de si uma taça convida a fazer as três orações de agradecimento : a primeira por Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira para que continue no presente a sua obra. Concluída a oração, a taça passava de mão em mão e cada um bebia. Eis o rito antigo, realizado tantas vezes por Jesus em vida.

Lucas diz que depois de ter ceado Jesus tomou o cálice dizendo : ‘Este cálice é a nova aliança no meu Sangue que é derramado por vós’. Algo decisivo acontece quando Jesus acrescenta a estas palavras a fórmula das orações de agradecimento, ou seja, a beraka hebraica. Aquele rito era um banquete sacro no qual se celebrava e se agradecia um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. O alimento cotidiano abençoava a Deus por aquela Aliança, mas agora, do momento em que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela antiga Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.

Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele abre, oferece e estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Quando Jesus passa aquele cálice é como se dissesse :  ‘Até agora, todas as vezes que tivestes celebrado esta refeição ritual tivestes comemorado o amor de Deus Salvador que vos redimiu do Egito. A partir de agora, toda vez que repetirdes o que fizemos hoje, o fareis não mais em comemoração de uma salvação da escravidão material no sangue de um animal; o fareis em memória de mim, filho de Deus que dá o seu Sangue para redimir-vos dos vossos pecados. Até aqui tivestes comido alimento normal para celebrar uma libertação material; agora comereis a mim, alimento divino sacrificado por vós, para fazer-vos uma só coisa comigo. E me comereis e bebereis o meu Sangue, no mesmo ato em que eu me sacrifico por vós. Esta é a nova e eterna Aliança no meu amor’.

Acrescentando as palavras ‘fazei isto em memória de mim’, Jesus dá um alcance ilimitado ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo o que ele fez até agora na ceia é colocado nas nossas mãos. Repetindo o que ele fez, se renova aquele ato central da história humana que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que sobre a cruz se torna evento, na ceia nos é dado como sacramento, ou seja, como memorial perene do evento. O evento acontece apenas uma vez (semel).  (Hb 10,12), o sacramento, sempre que o quisermos (quotiescumque) (1 Cor 11,26).

A idéia do ‘memorial’ que Jesus retoma do ritual hebraico do sábado e dos dias festivos, referida em Êxodos 12, 14 contém a própria essência da Missa, a sua teologia, o seu significado íntimo para a salvação. O memorial bíblico é muito mais do que uma simples comemoração, do que uma simples lembrança subjetiva do passado. Graças a ele, intervém, fora da mente do orante, uma realidade que tem uma existência própria, que não pertence ao passado, mas existe e obra no presente e continuará a obrar no futuro. O memorial que até agora era o compromisso da fidelidade de Deus a Israel, agora é o corpo partido e o sangue derramado do Filho de Deus; é o sacrifício do Calvário ‘representado’ (ou seja, tornado novamente presente) para sempre e para todos.

Aqui descobre-se o significado e a preciosidade da insistência de Ambrósio e, atrás dele, de forma mais evoluída, dos teólogos escolásticos e do concílio de Trento, sobre a presença ‘verdadeira, real e substancial de Cristo’ na Eucaristia (11).  Só assim, de fato, é possível manter no ‘memorial’ instituído por Jesus o seu caráter objetivo de dom absoluto, sem condições, independente de tudo, até mesmo da fé de quem o recebe.


4. A nossa assinatura no dom

Qual é o nosso lugar no drama humano-divino que temos lembrado? A nossa reflexão sobre a Eucaristia deve levar-nos a descobrir justamente isso. É para nós, de fato, para envolver-nos na sua ação, que Jesus fez do seu dom um ‘sacramento’.

Na Eucaristia acontecem dois milagres : um é aquele que faz do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo, o outro é aquele que faz de nós ‘um sacrifício vivo agradável a Deus’, que nos une ao sacrifício de Cristo, como autor, e não apenas como espectadores. No ofertório oferecemos o pão e o vinho que para Deus não tinham, é claro, nem valor nem significado por si mesmos. Agora, na consagração, é Cristo que coloca aquele valor que eu não posso colocar na minha oferta. Neste momento pão e vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo que se entrega à morte em um supremo ato de amor ao Pai.

Eis então o que aconteceu : o meu pobre dom privado de valor tornou-se o dom perfeito para o Pai. Jesus não dá somente a si mesmo no pão e no vinho, também nos pega e nos transforma (misticamente, não realmente) em si mesmo, também nos dá o valor que tem o seu dom de amor ao Pai. Naquele pão e naquele vinho estamos também nós; ‘Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma’, escreve Agostinho (12).

Gostaria de resumir, com a ajuda de exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos em uma grande família em que há um filho, o primogênito, que admira e ama desmedidamente seu próprio pai. Para o seu aniversário deseja fazer-lhe um presente precioso. Antes, porém, de apresenta-lo pede, em segredo, a todos os seus irmãos e irmãs que coloquem a sua assinatura nesse dom. Este chega, portanto, nas mãos do pai como sinal do amor de todos os seus filhos, sem distinção, mesmo que, na verdade, só um pagou o preço dele.

É o que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama infinitamente o Pai Celestial. A ele quer fazer a cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso que se possa pensar, aquele da sua própria vida. Na Missa ele convida todos os seus ‘irmãos’ a colocarem a sua assinatura no dom, de modo que ele chega a Deus Pai como o dom indistinto de todos os seus filhos, mesmo que só um tenha pagado o preço de tal dom. E que preço!

A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice; a nossa assinatura, explica Agostinho, é especialmente o amém que os fieis pronunciam no momento da comunhão : ‘Àquilo que sois respondeis : Amém e respondendo o assinais. Ouves, de fato : O corpo de Cristo, e respondes : Amém. Sejas membro do corpo de Cristo, para que seja verdadeiro o seu Amém... Sejais aquilo que vês e recebeis aquilo que sois(13). Toda a eclesiologia eucarística de Agostinho que lembramos semana passada encontra aqui o seu campo de aplicação. Se não é possível dizer que a Eucaristia é a igreja (como chegam a afirmar alguns dos seus discípulos), pode-se e deve-se dizer que a Eucaristia faz a Igreja.

Sabemos que quem assinou um compromisso tem o dever de honrar a própria firma. Isso significa que, saindo da Missa, temos que fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Temos que dizer também nós, mentalmente, aos irmãos : ‘Tomai, comei; este é o meu corpo’. Tomai o meu tempo, as minhas capacidades, a minha atenção. Tomai também o meu sangue, ou seja, os meus sofrimentos, tudo o que me humilha, me mortifica, limita as minhas forças, a minha mesma morte física. Quero que toda a minha vida seja, como aquela de Cristo, pão partido e vinho derramado pelos outros. Quero fazer de toda a minha vida uma eucaristia.

Recordei a Didaqué, como o texto que documenta a fase de transição da liturgia hebraica para aquela cristã. Terminamos com uma oração sua que inspirou tantas orações eucarísticas subsequentes  :

Como este pão partido estava

espalhado sobre as colinas e recolhido tornou-se

uma só coisa,

Assim a tua Igreja se recolha dos

confins da terra no teu reino

porque tua é a glória e a potência

por Jesus Cristo nos séculos’. Amem


Fonte  :

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(1) Cf.  J. Kelly, Il pensiero cristiano delle origini, cit., pp. 415 ss

(2) Ambrósio, De sacramentis, IV,14-16

(3) Ambrósio, De mysteriis, 52-53

(4) Guglielmo di Saint-Thierry, PL 184, 403

(5) Cf. S. Th., III, q.LXXV. aa. 1 ss

(6) É o processo reconstruído por H. de Lubac, in Corpus Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au Maoyen Age, Aubier, Paris 1949

(7) Denzinger-Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, nr. 690

(8) Ignacio de Antiquioa, Epístola aos Magnésios, 10,3

(9) J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré,  vol .II, LEV, Roma  2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966

(10) Além do livro citado de L. Bouyer,  cf. A. Baumstark, Liturgie comparée, Chevetogne 1953;  L. Alonso Schoekel,  Meditaciones biblicas sobre la Eucaristia, Sal Terrae, Santander 1986 ; Seung Ai Yang, ‘Les repas sacrés dans le Judaisme de l’époque hellénistique’, in  Encyclopedie de l’Eucaristie, du Cerf, Paris 2000, pp. 55-59

(11) Cf. Conc. Tridentino, Canon 1 de SS. Eucharistiae sacramento (DS, 1651)

(12) Agostinho, De civitate Dei, X, 6 (CCL 47, 279 (‘ In ea re quam offert, ipsa offertur’)

(13) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 s.)




sexta-feira, 28 de março de 2014

Não é possível manter conceitos como "não praticante"

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

‘Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá" (Ef 5, 14). A luz e o dia que vencem a escuridão são imagens que perpassam as culturas e as épocas, presentes também em várias concepções da vida humana em diversas religiões. Também a Sagrada Escritura recorre com frequência a esta polarização entre a luz e as trevas, como apresenta a Igreja durante estes dias de Quaresma. 

A Igreja vive uma estação claramente catecumenal, proporcionando aos que já são batizados acompanharem os irmãos e irmãs que serão batizados na Vigília Pascal e renovarem seus compromissos. Neste percurso formativo, todos os cristãos são convidados a se confrontarem com Cristo, Água viva que sacia a humanidade, Luz do Mundo, vencedor das trevas do pecado, Cristo, Ressurreição e vida. Na presente etapa, o convite é dirigido a todas as pessoas que querem deixar-se tocar por Jesus, acompanhados por um certo cego de nascença, na narrativa esplendorosa do Evangelho de São João (Jo 9, 1-38). Jesus realiza uma obra nova, recria o cego, que alcança o ponto mais alto de sua existência: "Quando Jesus o encontrou, perguntou-lhe: 'Tu crês no Filho do Homem?' Ele respondeu: 'Quem é, Senhor, para que eu creia nele?' Jesus disse: 'Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo. Ele exclamou: 'Eu creio, Senhor!' E ajoelhou-se diante de Jesus" (Jo 9,35-38).

Ouvi de uma mulher, cega de nascença, na autoridade de seus mais de oitenta anos, uma afirmação desconcertante: "Agradeço a Deus por ser cega, pois a maior parte dos pecados começa com a vista! Não enxergando, posso pecar menos, dizia magistralmente esta senhora que nunca leu uma letra, diante de alguém que se tinha debruçado várias vezes diante da palavra do Evangelho: "Se teu olho direito te leva à queda, arranca-o e joga para longe de ti! De fato, é melhor perderes um de teus membros do que todo o corpo ser lançado ao inferno" (Mt 5,29). Trata-se uma revolução na escala de valores que pode orientar a vida, na qual importa efetivamente uma vida distante do pecado! É que Deus não nos fez para o egoísmo e a maldade, mas para a virtude e para o bem!

O presente de Deus que nos foi confiado no Batismo, a iluminação da fé, abre horizontes diferentes para a vida inteira. O próprio Batismo já foi chamado "iluminação". Os cristãos hão de aproveitar a graça da purificação quaresmal, lavar seus olhos, ou quem sabe passar um bom colírio (Cf. Ap 3,18), para enxergar de novo e de forma renovada a vida e os acontecimentos. Cabe-lhes mudar o rumo da vida e contribuir para que o mundo se conforme aos valores do Reino de Deus. Ora, trata-se de fazer opções diferentes, afastando-se da escuridão do pecado, buscando lá dentro, no Batismo recebido, as forças para lutar contra a correnteza.

A Igreja nos oferece, através das leituras da Escritura escolhidas para o Tempo Quaresmal, indicações precisas, para que a luz de Deus, que um dia brilhou em nós pelo Batismo, jamais se esconda e não se apague em nós o seu fulgor, como muitas vezes cantamos num hino de renovação do Sacramento da iluminação! Sim, queremos que o amor plantado em nossos corações ajude os irmãos a caminharem, guiados pelas mãos de Deus, na nova Lei do Evangelho. É na escola de São Paulo (Ef 5, 8-14) que encontramos os frutos da luz!

A luz de Deus resplandece na bondade com que os cristãos são chamados a agir. Pequenos gestos de atenção, olhares feitos de simplicidade, iniciativas comunitárias, compromisso com o bem. Mesmo quando nos sentimos limitados, ou quando efetivamente pecamos pela fraqueza que nos acompanha, ser filhos da luz significa não compactuar com as más intenções, mas purificar-nos decididamente, comprometendo-nos com o bem.

Os homens e as mulheres marcados pela graça batismal se comprometem com a justiça e não aceitam qualquer vínculo com meios ilícitos em vista de objetivos como o lucro, a projeção social ou qualquer outro proveito a ser alcançado indignamente. Consequências? Palavra dada, lisura nos negócios, retidão na administração dos bens, irrepreensibilidade no comportamento social.

Mais ainda, no programa de vida decorrente do Batismo: a opção pela verdade. A história da Igreja e da humanidade está repleta de exemplos de homens e mulheres retilíneos em seu comportamento, capazes de suscitar santa inveja em gerações que os sucedem. É claro que tal escolha tem consequências, inclusive sofrimento ou derramamento do próprio sangue para serem coerentes com a verdade. São pessoas das quais "o mundo não era digno"(Hb 11,38), que enfrentaram todos os desafios, sem jamais ceder no compromisso assumido. E escolheram a Verdade que é Jesus Cristo, sem inventar suas próprias verdades ou meias-verdades.

Para alcançar tais alturas, as quais todos somos destinados, quem se descobre filho da luz, no sentido que São Paulo, na Carta aos Efésios (5, 8-14) e a Igreja entendem, busca o discernimento do que agrada ao Senhor. Um dos pontos de referência se encontra nos mandamentos, resumidos no amor a Deus e ao próximo. Outra ajuda preciosa no discernimento é a chamada "regra de ouro" (Cf. Mt 7,12), que propõe fazer aos outros aquilo que desejamos que seja feito a nós mesmos. Vale também escutar as outras pessoas, conselheiros e conselheiras que nos ajudam a ver ângulos diferentes quando se trata de tomar decisões. Mais ainda, é na escuta da Palavra de Deus e na oração que se identifica cada passo a ser dado na vida.

A seriedade com que o cristão assume sua vida exige ainda que ele não se associe com as obras das trevas. De fato, tudo o que precisa ficar escondido, resistindo à luz da verdade, traz consigo suspeita e desconfiança, pelo que a prática das virtudes evangélicas acrescenta ainda a exigência de radicalidade. Não dá para ser meio cristão e meio pagão. Se quisermos ser honestos com a própria consciência e com a verdade, não será possível manter conceitos como "não praticante", referindo-se a cristãos que entenderam a beleza da graça recebida no Batismo.

O apelo feito pela Igreja é, sim, pela seriedade na vivência cristã. E este é o tempo oportuno, a hora da graça e da salvação. Cresça em número e qualidade o povo amado por Deus. E como, graças a Deus, a maioria das pessoas que se envolvem conosco recebeu o Batismo, é hora de dizer: ninguém fique de fora!’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/nao-e-possivel-manter-conceitos-como-nao-praticante


quinta-feira, 27 de março de 2014

Maria Madalena



Este artigo, gentilmente cedido por Dom Lourenço Palata Viola, OSB,
monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo,
faz parte de sua palestra proferida no retiro anual dos oblatos 
(capítulo 5 de 5)


         Saindo do livro dos Atos dos Apóstolos, seremos acompanhados neste nosso momento de meditação pela figura de Maria Madalena, a grande anunciadora da Ressurreição, primeira testemunha da vida nova em Cristo.  “É precisamente a Maria Madalena que Santo Tomás de Aquino reserva o título singular de Apóstola dos Apóstolos (apostolorum apostola), dedicando-lhe este belíssimo comentário: “como uma mulher havia anunciado ao primeiro homem palavras de morte, assim também uma mulher foi a primeira a anunciar aos Apóstolos palavras de vida” (S. Tomás de Aquino, Super Ioannem, em Bento XVI, Catequese do dia 14/02/07).

Maria Madalena é um exemplo claríssimo de que a fé em Deus limpa nosso coração dando-nos possibilidades de o contemplar e o anunciar a nossos irmãos.

É um pouco obscura a história de Maria, a discípula de Jesus originária de Magdala, um povoado de pescadores junto ao lago de Tiberíades, pois quase nada se sabe dela, apenas especulações. Sua figura tem sido submetida a uma série de equívocos e recentemente várias confusões tem se gerado em torno de sua vida. Mas, o fato que vamos refletir é muito claro e nos é relato no Evangelho de São João: Maria Madalena diante do sepulcro onde há poucas horas haviam depositado o corpo do morto de Jesus. É meio contraditório o erro em que cai Maria ao confundir Jesus ressuscitado com o suposto jardineiro guardião do cemitério. Como ela poderia enganar-se?

Maria engana-se porque para conhecer ao ressuscitado não bastam os  nossos simples olhos, nem tampouco ter caminhado com ele e escutado sua palavra ao “vivo e a cores” ou termos ceado com ele; é necessário um canal de conhecimento superior, a fé.

Madalena reconhece Jesus quando Ele a chama pelo nome e os olhos de sua alma se abrem, a luz da fé incendeia seu coração que estava obscurecido pela tristeza da morte.  Mestre! (Jo 20,16) Eis a profissão de fé imediata do coração que logo ao reconhecer o amor recebe a missão de ser testemunha da ressureição: “Vai e anuncia a meus irmãos ...” (Jo 20, 17). E ela foi imediatamente.

Como nos diz o Papa Francisco: “Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos » (2 Cor 4, 13); a palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer. Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem » (2 Cor 3, 18); é uma luz que se reflete de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés cujo rosto refletia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2 Cor 4, 6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e refletir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a forma de contato, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos.

 A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus” (Francisco, LF, 37,38).

O exemplo de Maria Madalena nos mostra que ‘quem faz um encontro Jesus é transformado interiormente; não se pode "ver" o Ressuscitado sem "crer" nele. A fé nasce do encontro pessoal com Cristo ressuscitado, e torna-se impulso de coragem e de liberdade que faz gritar ao mundo:  Jesus ressuscitou e vive para sempre. Eis a missão dos discípulos do Senhor de todas as épocas e também deste nosso tempo:  "Já que fostes ressuscitados com Cristo exorta São Paulo procurai as coisas do alto... Aspirai às coisas do alto e não às coisas da terra" (Cl 3, 1-2). Isto não significa desinteressar-se dos compromissos quotidianos, afastar-se das realidades terrenas; significa ao contrário recomeçar todas as atividades humanas como um respiro sobrenatural, significa tornarmo-nos jubilosos anunciadores e testemunhas da ressurreição de Cristo, vivo eternamente (cf. Jo 20, 25; Lc 24, 33-34)’ (cf. Bento XVI, 19/04/06).

  
- Jo 20, 1-18

* Como tem sido meu encontro com Jesus Ressuscitado?

* Tenho sido transformado interiormente pela força do amor da vida nova que brota da fé em Cristo Ressuscitado?

* Como anuncio a ressureição ao mundo? Sou testemunha como o foi Madalena?



quarta-feira, 26 de março de 2014

Filipe e o Eunuco



Este artigo, gentilmente cedido por Dom Lourenço Palata Viola, OSB,
monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo,
faz parte de sua palestra proferida no retiro anual dos oblatos 
(capítulo 4 de 5)


 Nossos companheiros de caminhada serão duas pessoas totalmente distintas, que jamais se encontraram ou ouviram falar uma da outra, com estados de vida totalmente diferentes porém com um grande ponto em comum: a fé.

O “diácono” Filipe e o Eunuco etíope, funcionário de Candace, rainha da Etiópia são personagens de extrema importância no contexto da propagação da Boa Nova da Salvação. Este etíope, do qual não sabemos o nome, mas apenas conhecemos o desejo de seu coração, é o primeiro gentil a transpor os umbrais da porta da fé. Ao explicar-lhe a passagem de Isaías, Filipe desperta-lhe o coração para Jesus Cristo, verdadeiro Cordeiro de Deus.

“A porta da fé (cf. At 14,27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar esse limiar quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma” (Bento XVI, PF 1). Anunciar a Palavra, eis a grande missão que nos é proposta, para que assim como o eunuco várias pessoas que ainda não compreendem e não tem quem as oriente cheguem ao conhecimento da verdade.

Todos nós temos em nosso coração um desejo misterioso de Deus, uma lacuna que só pode ser preenchida pelo amor onipotente. O Catecismo da Igreja Católica nos diz que “desejar a Deus é um sentimento inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus. Deus não cessa de atrair o homem a si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que não se cansa de procurar” (CICA 27). 

“Assim, pela prontidão e pelo desejo ardente de sua fé o eunuco é digno de toda nossa admiração. Ele não viu Jesus Cristo nem presenciou nenhum prodígio, e qual é a razão de sua mudança? A razão é que, sendo ele observante dos preceitos aplica-se ao estudo dos livros santos e faz deles seu livro de meditação e leitura” (S. João Crisóstomo, Hom. Sobre os At. Dos Ap. 19).

De fato este etíope era verdadeiramente alguém muito culto, pois não somente sabia ler, mas o fazia também em aramaico. São Lucas nos narra que ele lia um rolo de pergaminho com o texto do profeta Isaías, provavelmente adquirido em Jerusalém. Suas atitudes: empreender uma longa viagem para peregrinar até o Templo de Jerusalém e permanecer no átrio dos pagãos, comprar um rolo de Isaías e voltar lendo-o, deixam claro o quão grande era seu amor pela fé de Israel, mesmo que não tenha se circuncidado.

Filipe porém, ao explicar-lhe toda a escritura partindo da páscoa de Jesus contemplada no texto lido encaminha-o através do desejo de seu próprio coração ao encontro com o Deus vivo e verdadeiro revelado por Jesus.

Com o Batismo o eunuco professará a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo, e tornar-se-á participante da natureza divina, filho adotivo de Deus Pai, membro e discípulo de Cristo, templo e morada do Espírito Santo.

Como conclusão desta meditação gostaria de destacar através do trecho de uma homilia de São João Crisóstomo outro aspecto relevante neste texto e neste etíope: seu interesse e fidelidade a leitura da Sagrada Escritura a qual constitui uma necessidade para o redescobrir com nova alegria o caminho da fé e assim fazermos este encontro constante e eficaz com Cristo Jesus. 

“Vinha de volta, sentado no seu carro, a ler o profeta Isaías. Considera que grande coisa é não descuidar da leitura da Escritura nem sequer durante a viagem (...). Pensem isto os que nem sequer em casa as lêem e, porque estão com sua mulher, ou porque militam no exército, ou tem preocupações pelos seus familiares e ocupações em outros assuntos, acreditam que não lhe seja conveniente fazer esse esforço de ler as divinas Escrituras (...).   Este bárbaro etíope é um mestre para todos nós: para os que tem uma vida privada, para os membros do exército, para as autoridades, numa palavra, para todos os homens e também para as mulheres – mais ainda as que estão sempre em casa – e para os que escolheram a vida monástica. Aprendam todos que nenhuma circunstância é impedimento para a leitura da palavra divina, que é possível realizar não só em casa mas na praça, na viagem, em companhia de muitos ou no meio de uma ocupação. Não descuidemos, vos rogo, a leitura das Escrituras” (S. João Crisóstomo, Hom. Sobre o Gen, 35).


- At 8,26-40

* Tenho sido a exemplo de Filipe, anunciador da Boa nova?

* Como tem sido meu contato com a Palavra de Deus?


segunda-feira, 24 de março de 2014

Estevão



Este artigo, gentilmente cedido por Dom Lourenço Palata Viola, OSB,
monge beneditino do Mosteiro de São Bento de São Paulo,
faz parte de sua palestra proferida no retiro anual dos oblatos 
(capítulo 3 de 5)


Seremos acompanhados pelo protomártir Estevão, aquele que primeiro teve a honra de testemunhar sua fé através da efusão de seu sangue a semelhança de Jesus Cristo.

Sabemos pelo relato de São Lucas que o número dos que aderiam à fé aumentava a cada dia e assim os apóstolos já não estavam mais conseguindo atender a todos aqueles que desejavam escutar a Boa Nova da Salvação. Estevão é um dos sete homens cheios de fé e do Espírito Santo que foram escolhidos pela comunidade de Jerusalém tendo em vista auxiliar o grupo apostólico no anúncio da Palavra e na prática da caridade.

Particularmente tudo isso efetuou-se devido ao caso das viúvas de língua grega que diziam “não mais estarem sendo assistidas no serviço diário” (At 6,1), ou seja, sabemos que os apóstolos tinham um maior domínio sobre o aramaico e nessa língua proferiam suas pregações, assim sendo, o serviço diário das viúvas, as quais se reuniam num grupo a parte conforme as divisões e costumes não apenas para comerem, mas também para serem instruídas sofria as consequências dessa disparidade linguística e as mesmas não conseguiam entender as instruções ministradas pelos apóstolos achando-se assim privadas da Boa Nova. 

Estevão, assim como os outros seis “homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria” (At 6,3) são portadores de nomes de origem grega, e ainda mais, um deles, Nicolau era proveniente de Antioquia, e portanto, era um judeu convertido da Diáspora. Esses homens seriam testemunhas da fé, teriam como missão proclamar a Palavra aos não crentes, aqueles que estão às mesas e não no Templo, ofereceriam a Palavra de Deus e professariam a Fé até mesmo com o derramamento de seu sangue, se necessário fosse, como no caso de Estevão.

Coroado, eis o significado do nome daquele que foi a primeira testemunha a destacar-se no Livro dos Atos (citado sete vezes) sem ser do grupo dos apóstolos, e de quem recebemos um claríssimo exemplo de eficaz testemunho da fé (martyria).

Um dos propósitos do Ano da Fé era reascender no coração dos cristãos a necessidade do surgimento e ou uma renovação do testemunho da Fé em nossas vidas. Assim sendo o exemplo deste mártir, o qual deu um valoroso testemunho da divindade de Jesus Cristo diante da Sinagoga dos judeus e ao proclamar a verdade irritou seus ouvidos tornando os inimigos do Evangelho seus próprios inimigos a ponto de o condenarem a uma chuva de pedras mortíferas, nos encoraja a vivenciarmos, como nos diz o Papa Francisco em sua Encíclica Lumen Fidei “a convicção de uma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força de sua graça. Era essa convicção que animava a missão dos primeiros cristãos (...) para os quais a fé, enquanto encontro com Deus vivo que se manifestou em Cristo, era uma “mãe”, porque os fazia vir a luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho até o fim” (Francisco, Lumen Fidei, 5).

Todos nós somos impulsionados pela caridade de Cristo. (cf 2Cor 5,14)

 Ao passarmos pela porta da fé no momento de nosso batismo passamos a fazer parte do rebanho do bom pastor, mas é sempre também através desta porta que somos enviados a testemunhar a fé. 

Pela porta da fé passamos tanto ao entrar quanto ao sair; ao entrar porque decidimos estar com o Senhor para vivermos com Ele; ao sairmos porque a fé exige de nós um testemunho e um compromisso públicos.

Não podemos nunca perder a consciência de que o acreditar não é um fato privado. O Ressuscitado nos constitui testemunhas de sua ressureição dentro de uma comunidade, a Igreja. Por isso acreditamos na Igreja e com a Igreja, tornando-nos assim sal e luz no mundo, imagens de Cristo não temerosas e apagadas, mas sim bem visíveis para todos!         

A vida de Estevão configurou-se plenamente com a de Cristo, todo seu ministério e principalmente o processo injusto e mentiroso feito pelo sinédrio para tramarem sua morte o conduziram a doutrina perfeita da caridade, imitando em tudo o Mestre inclusive sua última oração: “Senhor, não lhes imputeis este pecado” (At 7,60).

O martírio é um ato supremo de coragem e de verdadeira prudência, o qual aos olhos do mundo pode parecer uma loucura. Os mártires revelam-nos as possibilidades da natureza que se abre a força de Deus e assinalam um modelo, real e simbólico ao mesmo tempo, para o comportamento de cada um de nós, discípulos e discípulas de Jesus Cristo.

Nenhum exemplo é mais útil para instruir ao Povo de Deus que o dos mártires. A eloquência é fácil de impetrar, a razão é eficaz para persuadir. Não obstante, valem mais os exemplos que as palavras, e ensina-se melhor com as obras que com as palavras” (S. Leão Magno, Homilia na festa de S. Lourenço).

Encerrando esta meditação, faço presentes as palavras da Lumen gentium que tão belamente nos apresenta o dom do martírio, testemunho de fé para o qual todos devemos estar dispostos: “Como Jesus, Filho de Deus, manifestou o seu amor dando a vida por nós, assim ninguém dá maior prova de amor do que aquele que oferece a própria vida por Ele e por seus irmãos (cfr. 1 Jo. 3,16; Jo. 15,13). Desde os primeiros tempos, e sempre assim continuará a suceder, alguns cristãos foram chamados a dar este máximo testemunho de amor diante de todos, e especialmente perante os perseguidores. Por esta razão, o martírio, pelo qual o discípulo se torna semelhante ao mestre, que livremente aceitou a morte para salvação do mundo, e a Ele se conforma no derramamento do sangue, é considerado pela Igreja como um dom insigne e prova suprema de amor. E embora seja concedido a poucos, todos, porém, devem estar dispostos a confessar a Cristo diante dos homens e a segui-lo no caminho da cruz em meio das perseguições que nunca faltarão à Igreja” (LG 42).

- At 6; 7

* Testemunho verdadeiramente minha Fé? Sou imagem de Jesus Cristo no meio do mundo?

* Minhas atitudes condizem com aquilo que meu coração recebeu e minha boca professa?

* Estou disposto a ser mártir ou sou prefiro ser juiz?