* Artigo de P.E. Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano
‘Propusemo-nos para este
ano um percurso à descoberta dos sentidos. Desejaria, porém, que esta nossa
reflexão vocacional mensal fosse não só uma partilha de ideias, mas também uma
contemplação de vidas, um contato com testemunhas de vidas cheias,
transbordando de sentido e de beleza! Os ideais podem ser apreciados e
admirados, mas entusiasmam e apaixonam só quando os vemos vivos e incarnados
numa pessoa de carne e osso! Como o de Paulo, partilhado com os cristãos de
Filipos.
Toda a vocação cristã é
uma chamada a viver a vida em toda a sua exuberância. A existência do cristão
não é uma vida rebaixada, mas elevada à sua máxima potencialidade. Uma
existência que respira energia por todos os poros da pele, que saboreia de
verdade o gosto de viver. Uma vida profundamente rica de sentido, porque se
alimenta de toda a capacidade sensorial de que Deus nos dotou, com os cinco
sentidos físicos e espirituais. Orígenes diz que «há dois homens em cada um de
nós: como há um homem exterior assim há também um interior». A cada sentido
físico corresponde um «sentido espiritual» da alma, do «homem interior».
Queria apresentar-vos
hoje o testemunho de uma «vida transbordante de sentido»! Trata-se de Ana
Lena (Annalena) Tonelli, uma leiga voluntária, missionária católica italiana,
a «Madre Teresa» do povo somali. Recentemente decorreu o décimo aniversário do
seu martírio. Ana Lena foi uma mulher extraordinária que viveu em silêncio,
durante 33 anos, uma vida de radicalismo evangélico num ambiente completamente
muçulmano, totalmente dedicada aos pobres. Foi assassinada no dia 5 de Outubro
de 2003, precisamente no dia em que foi canonizado S. Daniel Comboni.
Ana Lena nunca gostou de
falar de si mesma, mas em 2001 aceitou o convite insistente para participar em
Roma num encontro sobre o voluntariado. Nessa ocasião, deu um extraordinário e
emocionante testemunho, de que oferecemos alguns extractos.
Viver para os outros
Sou Ana Lena Tonelli.
Nasci na Itália, a 2 de Abril de 1943. Saí da Itália em Janeiro de 1969. Desde
então, tenho vivido ao serviço do povo da Somália. Foram trinta anos de
partilha. Optei por viver para os outros: os pobres, os que sofrem, os
abandonados, os não amados… logo desde criança. Assim tenho vivido e assim espero
continuar a viver até ao fim da minha vida.
Só queria seguir Jesus
Cristo. Nada mais me interessava com tanta força: Ele e os pobres n’Ele. Foi
por Ele que escolhi a pobreza radical… embora jamais possa ser tão pobre como
um verdadeiro pobre… como os pobres de que está cheio cada dia da minha vida.
Eu vivo servindo, sem
nome, sem a segurança de uma ordem religiosa, sem pertencer a nenhuma
organização, sem salário, sem contribuições voluntárias para a minha velhice.
Não sou casada porque assim o escolhi com alegria, desde a juventude. Queria
ser toda para Deus. Era uma exigência da minha maneira de ser, a de não ter
família própria. E foi o que aconteceu, por graça de Deus.
Proclamar o Evangelho com
a vida
Parti da Itália após seis
anos de serviço aos pobres numa favela da minha própria cidade. Convenci-me de
que não poderia entregar-me por completo se ficasse na minha terra… as
fronteiras da minha actividade pareciam-me demasiado apertadas… Compreendi bem
depressa que se pode servir e amar em qualquer lugar, mas, entretanto, já me
encontrava na África e sentia que fora Deus a levar-me para lá – e foi lá que
fiquei, com alegria e com gratidão. Partira na decisão de «proclamar o
Evangelho com a vida», a exemplo de Charles de Foucauld, que tinha incendiado a
minha vida.
Passados trinta e três
anos, continuo a proclamar o Evangelho apenas com a minha forma de vida e
anseio por continuar a proclamá-lo assim até ao fim. É esta a minha motivação
de base, juntamente com a paixão invencível pela pessoa ferida e menosprezada
inocentemente, além da sua raça, da sua cultura e da sua fé. Procuro viver com
respeito extremo por aqueles que Deus me deu. Até onde foi possível, assumi o
seu estilo de vida. Vivo muito sobriamente em termos de habitação, alimentação,
meios de transporte e vestuário. Renunciei espontaneamente aos costumes
ocidentais. Tenho procurado dialogar com todos. Tenho oferecido carinho, amor,
fidelidade e paixão. Que o Senhor me perdoe se estou a usar palavras demasiado
grandes.
Vivo à espera de Deus
Praticamente, vivi sempre
entre o povo da Somália; a princípio com os do Nordeste do Quénia; depois com
os da Somália propriamente dita. Vivo num mundo que é rigorosamente muçulmano.
Não há lá cristão algum com quem eu possa conviver. Duas vezes por ano, pelo
Natal e pela Páscoa, o bispo de Jibuti vem celebrar a Eucaristia para mim e
comigo.
Vivo sozinha porque as
minhas colegas desta caminhada, que tal como os pobres fizeram da minha vida um
paraíso na terra durante os meus dezassete anos de deserto, se dispersaram na
altura em que fui obrigada a sair do Quénia. Aconteceu em 1984. O Governo do
Quénia tentou perpetrar um genocídio contra uma tribo de nómadas do deserto.
Era para eliminar cinquenta mil pessoas. Conseguiram matar mil. Mas eu consegui
impedir que a chacina avançasse e se concretizasse. Por esta razão, fui
deportada um ano mais tarde. Na altura daquela chacina, fui presa e apresentada
a tribunal marcial… As autoridades disseram-me que me tinham feito duas
emboscadas, a que miraculosamente escapara, mas que não teria essa sorte à
terceira vez…
Posso afirmar que,
durante a minha já longa existência, eu verifiquei várias vezes que não há mal
que não venha ao de cima, nem há verdade que não venha a ser descoberta. O que
importa é continuar a lutar como se a verdade já tenha vencido, os abusos não
nos tenham tocado e o mal não tenha triunfado. Um belo dia, o bem haverá de
brilhar. Peçamos a Deus a força de saber esperar, porque poderá tratar-se de
uma longa espera… que poderá durar até depois da nossa morte. Eu vivo à espera
de Deus e compreendo que me pesa menos que a outros à espera pelas coisas
humanas. Vivo intimamente integrada no seio dos pobres, dos doentes, daqueles
que ninguém ama.
O meu primeiro amor
Mas o meu primeiro amor
foram os tuberculosos, as pessoas mais abandonadas, mais rejeitadas, mais
recusadas naquele canto do mundo. O que mais rasgava o meu coração era o seu
abandono, o seu sofrimento, que desconhecia qualquer tipo de conforto. Eu nada
sabia de medicina. Comecei a levar-lhes a água das chuvas que ia recolhendo do
telhado da bela casinha que o Governo me atribuíra na qualidade de docente da
escola secundária. Levava os contentores cheios, esvaziava os deles da água
salgadíssima dos poços de Wajir, e voltava a enchê-los com água doce. Eles
faziam-me sinais de ordens, parecendo perturbados com a falta de jeito daquela
jovenzinha branca de cuja presença pareciam querer ver-se livres o mais
rapidamente possível.
Tudo me andava ao
contrário naquela altura. Eu era jovem e, portanto, não era digna nem de ser
ouvida nem de ser respeitada. Era branca e, portanto, desprezada por aquela
raça que se considerava superior a todas as outras. Era cristã e, portanto,
rejeitada e temida. Todos estavam então convencidos de que eu viera fazer
proselitismo. E para cúmulo dos meus males, não era casada, coisa absurda
naquele mundo em que o celibato não existe e não é um valor para ninguém.
Comecei logo a
estudá-los, a observá-los, pois que estava todos os dias com eles,
prestava-lhes serviço de joelhos, estava ao lado deles quando pioravam e não
havia quem se importasse com eles, os olhasse nos olhos, ou lhes desse coragem…
Passados alguns anos, todo o doente consciente do fim da sua vida só me queria
a seu lado para morrer com o sentimento de que era amado.
Durante cinco anos, eles
tinham-nos atirado à cara que jamais iríamos para o céu por não dizermos a
fórmula de fé muçulmana «Não há Deus senão Deus e Maomé é o Seu profeta». Mas
depois deu-se um episódio grave que pôs em risco a nossa vida e então o povo
começou a dizer que certamente também nós entraríamos no paraíso. E depois
começámos a ser apontadas como exemplo a seguir. O primeiro foi um velho chefe
que gostava muito de nós… «Nós, muçulmanos, possuímos a fé, e vós possuís o
amor», disse ele um dia. E foi como que a altura do grande descongelamento. As
pessoas começaram a dizer cada vez mais que deveriam fazer como nós, que
deveriam aprender a cuidar dos outros, em especial os mais doentes, os mais
abandonados…
Só o amor tem sentido
A minha vida tem passado
por tantos e tantos perigos; arrisquei-me a morrer tantas e tantas vezes. Vivi
anos no meio da guerra. Vivi na carne dos meus, daqueles que eu amava, e
portanto na minha própria carne, a malvadez do ser humano, a sua perversidade,
a sua crueldade, a sua iniquidade. E cheguei a uma convicção inquebrantável, a
de que só o amor conta. Só o amor tem sentido; só o amor liberta o homem de
tudo aquilo que o escraviza. Só o amor nos faz respirar, crescer, florir; só o
amor faz com que não tenhamos medo de nada, que nós apresentemos a face ainda
não ferida ao escárnio e às bofetadas dos que nos batem porque não sabem o que
fazem; que nós arriscamos a vida pelos nossos amigos, que em tudo temos fé,
tudo suportamos e tudo esperamos…
É então que a nossa vida
se torna digna de ser vivida. É ainda então que a nossa vida se transforma em
beleza, graça, bênção. É também então que a nossa vida se torna uma felicidade
até mesmo no sofrimento, porque nós vivemos na nossa carne a beleza do viver e
do morrer.
Sinto vivamente que todos
nós somos chamados ao amor… E eu gosto de pensar assim: só há uma tristeza
neste mundo, a de não amar.’
Fonte :
*Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAEukZykEULtzsFpb
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