Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Padre Manoel Godoy, SJ
‘Por tudo o que o papa
Francisco faz e fala, podemos considerá-lo um aliado importante na luta contra
o racismo. Essa perspectiva precisa ser enquadrada num campo maior, não somente
nas falas diretas contra o racismo. Ele vem insistindo na cultura do ‘encuentro
y cercania’. Com esta cultura, crê Francisco que teremos condições de
entabular diálogos construtivos rumo a uma sociedade mais fraterna.
Na sua mais recente encíclica,
o papa Francisco fez uma análise da conjuntura mundial onde ele destaca
elementos que dificultam essa cultura. No primeiro capítulo, sob o nome de ‘Sombras
de um Mundo Fechado’ ele elenca os principais sinais dos tempos, que
configuram um cenário sombrio contrário à fraternidade. O papa constata que a
conjuntura histórica vem dando passos à atrás, contrários o que se sonhou de um
mundo globalizado e fraterno. Esperava-se um mundo mais integrado, superando
conflitos antigos e criando base para um mundo onde o diálogo marcaria o concerto
entre as nações, porém, o que se vê é o ressurgimento de nacionalismos
fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Neste cenário, o descarte de
seres humanos, a obsessão de cortar custos trabalhistas, a globalização sem
rumo humano, a pandemia, a cruel exploração dos migrantes e o racismo são as
constantes.
Francisco chama a atenção para
a perda da consciência histórica. Diz : uma maneira eficaz de dissolver a
consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os
percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular grandes palavras,
tais como democracia, liberdade, justiça, unidade. Critica a falta de um
projeto que alcance a todos e não somente a alguns privilegiados. Vê como
grande ameaça à fraternidade e à amizade social o mecanismo político em voga de
exasperar, exacerbar e polarizar. Tal política suscita um clima de todos contra
todos, onde o vencer é sinônimo de destruir. Hoje, um projeto com grandes
objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio.
Lembra do projeto do cuidado da casa comum e do desinteresse por ele da parte
dos poderosos do mundo.
Alerta também para a cultura e
política do descarte mundial, onde não só os alimentos ou os bens supérfluos
são objetos de descarte, mas muitas vezes os próprios seres humanos. Nesse
mundo dominado por interesses econômicos, aumentou a riqueza, mas não a
equidade e assim nascem novas formas de pobrezas. E nessa perspectiva, denuncia
que os direitos humanos não são suficientemente universais.
Importante constatação do papa
Francisco também de que a solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas
que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil
para o crime organizado. Este se apresenta como protetor dos esquecidos, cria uma
rede que gera dependências de todo o tipo e fomenta uma sociedade marcada pela
violência sistêmica. Na verdade, multiplicam-se cruelmente situações de
violência em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquele
se poderia chamar uma terceira guerra mundial em pedaços. Nosso mundo avança em
uma dicotomia sem sentido, pretendendo garantir a estabilidade e a paz com base
em uma falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança.
Sobre a pandemia da covid-19, o
papa diz que por algum tempo ela fez perceber que todos estamos no mesmo barco;
que temos um destino comum; que ninguém se salva sozinho. A corrida para um
mundo onde o eixo é o mercado e onde tudo deve estar submetido aos seus
ditames, de repente, com a pandemia teve um pequeno freio. Num parágrafo
extremamente metafórico, Francisco descreve essa situação da seguinte maneira :
alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e
acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de
conexões e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e
seguro, e nos encontramos oprimidos pela impaciência e a ansiedade.
Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade. A pandemia poderia fazer-nos repensar nosso estilo de vida, nossas
relações, a organização de nossas sociedades e, sobretudo, o sentido de nossa
existência. Francisco retoma um conceito tão caro a ele e já desenvolvido na
Laudato Sí – tudo está interligado. Crê que ele se aplique bem nessa realidade
pandêmica.
Um outro tema muito caro ao
papa Francisco é a realidade da migração. Defende o direito dos migrantes de
serem tratados fraternalmente, pois são pessoas dotadas de dignidade intrínseca
de toda e qualquer pessoa. Critica o desenvolvimento de uma mentalidade
xenófoba e lamenta que entre os que praticam esse sentimento haja pessoas que
se dizem cristãs. Retoma sua afirmação de que as migrações constituirão
uma pedra angular do futuro e do mundo. Por isso, é urgente superar sentimentos
racistas e buscar uma convivência integrada entre todos os povos, não deixando
que o medo nos prive do desejo e da capacidade de encontrar o outro.
E diretamente sobre o racismo,
ele afirma : ‘O descarte do ser humano, que hoje se alastra, exprime-se de
variadas maneiras como, por exemplo, na obsessão por reduzir os custos laborais
sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois, o desemprego daí
resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza. Além disso,
o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo
que se dissimula, mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham as
expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade
não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas.’
E em outro momento, afirma : ‘Existem
periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na própria
família. Também há um aspecto da abertura universal do amor que não é
geográfico, mas existencial : a capacidade diária de alargar o meu círculo,
chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de
interesses, embora se encontrem perto de mim. Por outro lado, cada irmã ou cada
irmão que sofre, abandonado ou ignorado pela minha sociedade, é um forasteiro
existencial, embora tenha nascido no mesmo país. Pode ser um cidadão com todos
os documentos em ordem, mas fazem-no sentir como um estrangeiro na sua própria
terra. O racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer,
dissimula-se, mas está sempre à espreita.’
E quando de sua ida a
Lampedusa, onde chegam os navios vindos da África, trazendo fugitivos de regime
de fome e de tortura de alguns países daquele continente, o papa Francisco
denunciou a globalização da indiferença que nos tirou a
capacidade de chorar. Afirmou : ‘a cultura do bem-estar, que nos leva a
pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos
viver como se fôssemos bolas de sabão : estas são bonitas, mas não são nada,
são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à
indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença.
Habituamo-nos ao sofrimento do outro, e dizemos não nos diz respeito, não nos
interessa, não é responsabilidade nossa!’.
E por ocasião dos protestos
contra o assassinato de George Floyd, nos EUA, disse : ‘queridos amigos, não
podemos tolerar nem fechar os olhos para qualquer tipo de racismo ou de
exclusão e pretender defender a sacralidade de cada vida humana.’ E quando
da celebração do Dia Internacional para a eliminação da discriminação racial, o
papa em um tuíte enfatiza que o racismo é um vírus que se transforma facilmente
e, em vez de desaparecer, se esconde, mas está sempre à espreita. As
manifestações de racismo renovam em nós a vergonha, demonstrando que os
progressos da sociedade não estão assegurados de uma vez por todas.
Considerando que o papa
Francisco, na época Cardeal Jorge Bergoglio, coordenava a equipe de redação das
conclusões de Aparecida, podemos assumir a perspectiva da Quinta Conferência
neste texto em que destacamos a questão do racismo e o papa Francisco. ‘A
Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo em suas diferentes
expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade humana criada a ‘imagem e
semelhança de Deus’. Preocupa-nos que poucos afro-americanos cheguem à educação
superior, sem a qual se torna mais difícil seu acesso às esferas de decisão na
sociedade. Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres a Igreja se faz
solidária aos afro-americanos nas reivindicações pela defesa de seus territórios,
na afirmação de seus direitos, na cidadania, nos projetos próprios de
desenvolvimento e consciência de negritude. A Igreja apoia o diálogo entre
cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social, e incentiva a
participação ativa dos afro-americanos nas ações pastorais de nossas Igrejas e
do Celam. A Igreja com sua pregação, vida sacramental e pastoral precisará
ajudar para que as feridas culturais injustamente sofridas na história dos
afro-americanos, não absorvam, nem paralisem a partir do seu interior, o
dinamismo de sua personalidade humana, de sua identidade étnica, de sua memória
cultural, de seu desenvolvimento social nos novos cenários que se apresentam’
(533).
Por tudo isso, podemos
considerar o papa Francisco em um grande aliado na luta pela superação do
racismo e de todas as desigualdades e preconceitos que marcam a sociedade
atual.’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1530447/2021/07/o-magisterio-de-francisco-e-a-questao-racial/
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