Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Evitar o anacronismo é o
mantra de todo historiador. E quando o assunto é história da Igreja, a atenção
para não pender para esse tipo de abordagem precisa ser redobrada, já que estamos
lidando com o fenômeno religioso. Porém, assumir o compromisso de não julgar o
passado com categorias do presente não significa anular ou diminuir os crimes
cometidos em séculos anteriores. O passado precisa ser conhecido e estudado, de
modo que esses erros não sejam repetidos no presente.
Os últimos três papas, através
de gestos e discursos, fizeram questão de enfatizar isso. João Paulo II, ao
pedir perdão pela violência impetrada em nome de Deus por muitos homens da
Igreja; Bento XVI, ao reconhecer que foi ‘providencial’, num dado
momento, a Igreja ter se apartado do poder temporal; e Francisco, que na sua
releitura da colonização da América, pediu perdão pelos abusos da instituição
contra os povos originários. Ou seja, o papado contemporâneo olha para essa
história como um percurso feito de luzes e sombras, de anjos e de demônios.
Os adeptos do positivismo
histórico, do século 19, viam o passado como um celeiro de mitos
nacionais. Historia magistrae vitae? Sim. Mas só era maestra de
vida na medida em que condecorava as personalidades ‘civilizadoras’, os
heróis do Estado (muitas vezes, forçadamente fabricados pelos propagadores da
ideologia dominante).
E muitos grupos sectários da
atualidade têm se debruçado sobre o passado cristão pelas lentes do positivismo
histórico. Há quem romantize a trajetória de Constantino, de Pepino, o jovem,
de Carlos Magno e dos cavaleiros medievais. A ideia é acumular informações ‘gloriosas’
sobre a História da Igreja, não situá-la dentro de um contexto social, político
ou cultural.
Os manuais de história da
Igreja do século 19, que estão sendo republicados por muitas editoras
controladas por esses nichos, estão repletos desses floreios. Não que tais
atores não devam ser investigados e mencionados. O problema está em
ressuscitá-los na pretensão de reconstruir uma ‘Idade de Ouro’ que
sequer existiu. Há quem se recorde da famigerada visão de Constantino, mas não
cita os membros da família que ele executou após sua ‘conversão’. Há
quem superestime as cruzadas como símbolo do triunfo, mas ignora o momento em
que os cavaleiros se aliaram aos muçulmanos e o episódio em que os venezianos
invadiram Constantinopla, em 1204, e profanaram a Basílica de Santa Sofia. E eu
poderia citar tantos outros exemplos.
A maioria desses livros,
principalmente aqueles que foram publicados antes da década de 1930, via a
historiografia como um instrumento capaz de reproduzir uma narração precisa dos
fatos, que era pautada somente pelos documentos oficiais. Ou seja, a história
não era tratada como um processo repleto de nuances e pontos de vista, mas como
uma grande crônica repleta de heróis, cujos feitos foram eternizados pela fonte
escrita.
Sustentar uma visão anacrônica
nem sempre é tão inofensivo quanto parece. O estrago, inclusive, às vezes
acontece a longo prazo. Hitler se apoiou na trajetória de Lutero para criar uma
religião política e nacionalista segundo os parâmetros do catecismo nazista : o
‘cristianismo positivo’. Mussolini evocou Constantino, o primeiro
imperador cristão da história, para legitimar seu imperialismo. O ditador
italiano, que era um anticlerical convicto, mudou o discurso e passou a tratar
o catolicismo como parte integrante da cultura do país para atrair o apoio das
autoridades eclesiásticas.
Em âmbito católico, os
simpatizantes da erudição estéril e anacrônica isolam a história da instituição
em 500 anos. O Concílio de Trento, que no século 16 padronizou o rito latino, é
visto como a tradução mais perfeita da tradição, como se ela se resumisse a uma
lista de rubricas e normas. Nada mais.
Só que a Tradição, para o
catolicismo, escrita em T maiúsculo, se baseia principalmente no ensinamento de
Jesus transmitido aos apóstolos, e não por acaso é chamada de Depositum
Fidei, não de Ritus Romani. Portanto, a visão
reducionista deles contradiz a própria doutrina. Dizer que um único concílio
ecumênico foi capaz de interpretar o catolicismo na sua plenitude é destoar
desse princípio, já que essa confissão cristã acredita na sucessão apostólica.
E se o Concílio Vaticano II, constituído por um colégio de bispos, tomou certas
decisões, que mais à frente foram revistas e chanceladas pelo próprio papa,
deve ser seguido como todos os outros.
Não por acaso, as resistências
em relação ao papa Francisco começaram justamente entre os tridentinos da
internet, que inclusive têm uma visão completamente distorcida em relação ao conceito
de reforma da Igreja Católica. Para eles, muito ligados ao espírito de Trento,
reformar é impor ‘um modelo’, e ter um pontífice – e um concílio, no
caso – que focam na renovação de seus membros, não nos acessórios, que muitas
vezes ofuscam a essência da vida cristã, é demais para a cabeça deles.’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1532139/2021/08/a-saga-dos-catolicos-da-societas-perfecta/
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