sábado, 31 de outubro de 2020

Luto e Covid-19: como se despedir na ausência de ritos?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

*Artigo de Camila Marçal,

psicóloga 


‘Desde o início de 2020, o mundo vive uma grande crise sanitária, provocada pela Covid-19. As diretrizes para minimização dos riscos da pandemia contemplam recomendação sobre uso de máscaras e higienização até orientações que variam entre distanciamento social e isolamento completo, dependendo de variáveis como grupo de risco, profissão, sintomas, entre outros. 

A iminência da morte associada às mudanças no nosso modo de viver e relacionar impactam direta e indiretamente na nossa saúde mental. Se no início da pandemia, o risco do vírus era uma abstração, ele se torna cada vez mais concreto através das contaminações e mortes que se intensificam e se aproximam da nossa realidade.

Cada um de nós, a seu modo, está reagindo a essas mudanças. Da negação ao pânico. Da compaixão à indiferença. Medos, dúvidas e incertezas. A imprevisibilidade da vida bateu à nossa porta. Estamos vivendo um processo de luto compartilhado. Chamamos por luto todo o processo que envolve a elaboração do impacto de mudanças ou morte de alguém, passando desde a aceitação da perda, vivência da dor, adaptação à ausência/mudança até a reconstrução da relação e novos direcionamentos. 

Por ser provocador de tanta angústia, em todos os tempos e culturas, o ser humano criou formas e rituais coletivos para vivenciar o luto : velórios, enterros, missas, homenagens, entre outros. Precisamos de simbolismos que nos ajudem a elaborar as mudanças e perdas existenciais.

Os protocolos de segurança exigidos durante o período de pandemia, além de mudar a nossa forma de viver, mudaram também a nossa forma de morrer. Pessoas diagnosticadas com o vírus são imediatamente isoladas. Velórios foram suspensos. Enterros rápidos e com quantidade limitada de pessoas. Protocolos fúnebres que causam mais incômodos que alívio. Cerimônias religiosas proibidas. Ausência de abraços e conforto adequado e muito mais.

O desamparo existencial dos enlutados está escancarado. Não bastasse a dor da morte, soma-se a ela a dor do ‘não saber’, do não poder se despedir e de não poder receber conforto. ‘Ela foi, mas eu não vi. Não sei como ela estava. Não segurei sua mão. Foi por telefone que soubemos. Foi tudo tão rápido. Às vezes parece que é mentira. Não dá pra acreditar. E se eu pegar esse vírus também? Parece que as pessoas estão com medo de mim’.

A despeito de toda a compreensão racional sobre nossa finitude, a experiência da morte de alguém que amamos dói absurdamente. Ela toca em algo que nos define : não nos fazemos sozinhos. Somos marcados por nossas relações e a vida ganha significado à partir dos nossos afetos. 

A morte se torna, portanto, um evento traumático para os enlutados, abalando as certezas sobre a vida e gerando grandes angústias. Essas dores, profundamente humanas, precisam ser acolhidas e compreendidas tanto no seu aspecto singular quanto comunitário.

A vivência coletiva dos ritos finais são importantes para a concretização e elaboração das perdas, pois criam um espaço de comunhão, cumplicidade e conexão que ajudam na ressignificação daquela experiência, além de serem uma oportunidade de receber afeto, homenagear, despedir, fazer reparações e até mesmo reconciliações com o ente querido. 

A impossibilidade da vivência coletiva dos rituais de despedida, sobretudo nas mortes repentinas, pode impactar de maneira muito negativa as pessoas enlutadas. Deixam a sensação de algo em aberto, já que etapas do processo de construção de sentido são suprimidas, podendo dificultar a elaboração do luto e até mesmo desencadear dificuldades futuras, tais como medos, fobias, ansiedades, depressão, em decorrência do não acolhimento das emoções e angústias despertadas nos enlutados.

O luto não é uma doença, ele é uma resposta natural a um evento traumático da vida. Permita-se viver seu luto. Nesse contexto, da necessidade humana de dar sentido à (cada) morte e da impossibilidade da realização dos rituais fúnebres tradicionais por conta da pandemia, pense formas alternativas de rituais (individuais e coletivos) que te ajude na concretização da experiência da perda e na troca de afetos. 

Expresse sua dor. Ouça seus medos. Converse. Faça encontros pra lembrar. Se reúnam para contar histórias. Escreva cartas. Diários. Veja fotos. Chore. Lembre mais. Das músicas, dos cheiros, dos encontros. Faça uma homenagem. Peça desculpas. Conte como você se sente. Construa caixas de memória. Sinta tudo o que tiver de sentir. Não se isole. Se for necessário, peça ajuda! Estamos órfãos dos nossos ritos, mas não da nossa humanidade. Eu sinto muito!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1479994/2020/10/luto-e-covid-19-como-se-despedir-na-ausencia-de-ritos/

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Francisco e a nomeação de um cardeal em segredo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé 


‘Folheando algumas páginas de um manual de História da Igreja, e depois focando na parte que trata da trajetória dos papas, notei que falta uma coisa : o papa Francisco nomear um cardeal sem que ninguém saiba. Parece estranho, mas é algo previsto pelo Código de Direito Canônico, a ‘Constituição’ da Igreja.

O cânone (artigo) 351,3, diz :

A pessoa promovida à dignidade cardinalícia, cuja criação o Romano Pontífice anunciar, reservando para si o nome in pectore, não fica entretanto obrigada a nenhum dever dos Cardeais nem goza de nenhum dos seus direitos; a partir da publicação do seu nome pelo Romano Pontífice, fica obrigada aos mesmos’.

Isso quer dizer que o sumo pontífice tem a liberdade de nomear um cardeal in pectore - do latim, no peito, no segredo do coração - sem comunicar o nome ao Vaticano. Neste caso, em primeiro momento, ele não divulga quem é a pessoa nem para o colégio cardinalício. Todos só ficarão sabendo que existe um in pectore no dia do consistório, a cerimônia na qual o Santo Padre lê o decreto oficial para concessão do título. Porém, fica a critério do pontífice escolher quando será a revelação do nome, que pode acontecer até anos depois.

Trata-se de uma exceção. Eles são cardeais, integram o colégio cardinalício, mas não gozam dos direitos ligados à função até a nomeação pública. Ou seja, não podem votar num conclave, participar de reuniões de cardeais nem chefiar um escritório do Vaticano. É diferente do que acontece em circunstâncias normais.

No domingo passado, Francisco anunciou a criação de 13 novos cardeais. Isso não quer dizer que eles já podem vestir, imediatamente, a roupa vermelha. Só depois do dia 28 de novembro, data em que o papa celebra a missa na qual lhes são entregues as insígnias cardinalícias e tomam posse de uma igreja.

Seguindo uma antiga tradição, o cardeal se torna titular de uma igreja da diocese de Roma, já que passa a ser um braço direito do papa, o bispo da cidade. É por isso que vemos o brasão dos purpurados no alto da fachada de alguns templos da capital.

Quem já aplicou a fórmula in pectore?

O papa Martinho V foi quem começou com essa prática, no século 14. A normativa para a aplicação da regra, na época, não era muito clara. Mas certamente foi motivada por questões políticas, dado que um dos escolhidos era seu próprio sobrinho, Prospero Collona, membro de uma das famílias mais poderosas de Roma, na época.

O último a fazer uso do recurso foi o Papa João Paulo II. Em 1979, um ano depois de eleito, ele fez cardeal o arcebispo de Xangai, Ignatius Kung Pin-me, mas só levou a escolha a público em 1991. Em 1998, deu o barrete cardinalício a Marian Jaworski (bispo de Leópolis, na Ucrânia) e Jamos Pujats (bispo de Riga, capital da Letônia). Porém, o papa polonês divulgou sua decisão só em 2001.

As nomeações foram secretas também por motivação política, como ocorre na maioria das vezes em que o pontífice recorre a essa medida. Todos os condecorados viviam ou já tinham sofrido perseguição em países que estavam sob o regime comunista.

Pujats, por exemplo, foi considerado persona non grata pela KGB, o serviço secreto soviético, durante muitos anos. E Ping-mei passou 30 anos preso por não admitir que os católicos fossem controlados pela chamada ‘Igreja Patriótica’ do Partido Comunista. Inclusive, foi próprio João Paulo II a dar-lhe a notícia de que seria cardeal durante uma reunião, a portas fechadas, no Vaticano.

Em 2003, aconteceu algo muito peculiar. João Paulo II disse na celebração dos 30 novos cardeais daquele ano que ‘além dos 30 recém-empossados existia mais um in pectore’. No entanto, o nome jamais foi revelado. O pontífice morreu em 2005, antes da convocação de um novo consistório. 

Pensando na renovação do acordo firmado entre China e Santa Sé recentemente, comecei a refletir sobre o tema. Diante do que já aconteceu anos atrás, e olhando para a ousadia de Francisco, não é difícil pensar na possibilidade. Além disso, a diplomacia pontifícia reitera que todos os bispos chineses passam a ser considerados legítimos. 

Não é algo previsto pelo trato, mas o Papa poderia nomear alguém desse modo para se aproximar dos católicos chineses, tendo em vista a complexidade da situação, e o fato de que alguns não se sentem confortáveis, ainda, com o acordo. E se ele escolhesse um bispo que, no passado, fez parte da chamada ‘igreja clandestina’, como gesto de reconhecimento pelo esforço de manter-se fiel a Roma nos períodos mais difíceis?

Por outro lado, para dar um passo como esse, há uma série de implicações diplomáticas. Se fosse hoje, Pequim certamente não ficaria muito contente com a ideia. Então tudo vai depender dos frutos dessa discreta reaproximação entre os dois países. Será que é a próxima surpresa que Francisco nos reserva? Ele pode dar essa cartada inesperada?  É o que veremos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1480084/2020/10/francisco-e-a-nomeacao-de-um-cardeal-em-segredo//


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A leitura infantilizada da Bíblia

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

‘Uma das coisas mais comuns em nossos dias, principalmente no meio cristão, é a leitura infantilizada do texto bíblico. Não dificilmente vemos ou ouvimos pregações, palestras, e até mesmo pseudoestudos que tratam as diversas narrativas das Escrituras de uma maneira simplista e literal, não conseguindo extrair dali qual a mensagem que o autor do texto quis passar.

Esse tipo de leitura, por sua vez, além de trazer grande mal para a sociedade, uma vez que pegar um texto fora do seu contexto é sempre usá-lo com algum pretexto para se dizer o que quiser, também faz com que a compreensão dos ricos ensinamentos que constam ali sejam colocados em segundo plano, o que, sem dúvida, coopera para a vivência de um cristianismo sem sentido e, muitas vezes, desconectado da realidade.

As leituras infantilizadas do texto bíblico são caracterizadas como aquelas que não conseguem aprofundar no sentido do texto, ficando somente na superfície do que está escrito. Como exemplos clássicos desse tipo de leitura têm-se as diversas pregações que, baseando-se no mito de Adão e Eva relatados nos capítulos iniciais do Gênesis, tomam-no como algo real e de valor factual, como se no início de todas as coisas houvesse somente um homem e uma mulher responsáveis por popular toda a terra e que, por algum milagre, eles efetivamente conseguem fazer isso. Ou ainda, tratam como real a ideia de que uma serpente tenha falado com uma mulher e ela tenha agido com total normalidade frente a isso e, ainda, conversado com essa serpente que, boa de lábia, conduz a humanidade à desobediência da ordem divina.

Da mesma forma, ao se tomar o mito do Dilúvio, também encontrado nas primeiras páginas do Gênesis, são muitas as pessoas que o leem como fato, imaginando que um homem tenha construído sozinho uma arca (que pela metragem teria 150 metros de comprimento, 25 metros de largura e 15 metros de altura) para colocar toda espécie de animais existentes, em pares, mais sua família, flutuando pelas águas por 40 dias até que as águas baixassem e pudessem sair para, novamente, povoarem a Terra.

Apenas esses dois exemplos servem para mostrar o que uma leitura infantilizada do texto bíblico pode fazer : retirar toda a riqueza simbólica que se encontram nesses mitos usados para ensinamento do povo da Bíblia e, mais ainda, torná-los sem o menor sentido para uma sociedade que passou por uma revolução científica já há algum tempo, como o é a nossa.

Ler o mito da tentação como fato, é não compreender o profundo ensinamento que o autor quis passar de que todo ser humano deve fazer uma opção fundamental entre a obediência a Deus que gera vida (representado pela árvore da vida), ou o conhecimento por meio da própria experiência, que gera a distorção daquilo que Deus deseja para a humanidade (representado pela árvore do conhecimento do bom e do ruim). Da mesma forma, ler o mito do Dilúvio como fato, é perder a linda e profunda mensagem ali contida de que a justiça de um só humano (representado por Noé) é capaz de produzir um espaço de vida e esperança trazido por Deus no meio de todo o caos trazido pelo pecado.

Diante desse cenário, é tarefa de teólogos e teólogas insistirem que o texto bíblico não seja lido e ensinado de maneira infantilizada, o que gera fundamentalismos e propoem uma mensagem cristã sem sentido para pessoas do nosso tempo.

Se naquela época, os autores dessas narrativas já tinham consciência de que os símbolos ajudam a compreender melhor as mensagens que queriam trazer, por que, numa época tão esclarecida como a nossa, ainda se insistem em leituras infantilizadas e literais dos textos bíblicos? A quem esse tipo de leitura serve, senão à dominação por parte daqueles e daquelas que, por meio dessas leituras, conduzem o povo à subserviência?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1479387/2020/10/a-leitura-infantilizada-da-biblia/

 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Formas - não tão evidentes - de abandonar seus filhos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo de Orfa Astorga,

 orientadora familiar


‘Abandonar um filho quando ele mais precisa dos pais significa deixá-lo sem atenção e cuidado, sem o amparo e proteção de que precisa, causando danos talvez irreparáveis em seu ser.

Alguns pais recorrem a elaborados mecanismos de justificação, e quanto mais o fazem, mais endurecem seu coração à verdade de estar cometendo uma ação inumana, pela qual rejeitam assumir com plenitude o amor ao maior dos dons.

Esta é a mais vil manifestação do egoísmo e covardia de quem é incapaz do amor verdadeiramente pessoal.

Muitos pais jamais abandonariam um filho na porta de uma casa qualquer. Mas existem muitas formas de abandono que não costumam ser evidentes e que já adquiriram aceitação em muitas consciências.

Tais formas de abandono têm uma história em comum: gerar os filhos foi a parte fácil, mas sua criação, que exige educação com amor de abnegação e sacrifício, dura muitos anos. E é nesta fase que pode acontecer o maior abandono.

Algumas formas de abandono :

– Quando A Sra. e o Sr. Sucesso Profissional não têm tempo pessoal para seu filho, dada sua importante ‘autorrealização’, já que ‘tempo é dinheiro’ e não dá para pensar nos outros. Então apelam ao famoso ‘tempo de qualidade’, enchendo os filhos de presentes, pagando colégios de tempo integral etc.

– Quando o tempo dos filhos é dedicado à academia, às reuniões sociais, enquanto os filhos ficam à mercê da internet, televisão ou babá.

– Quando se deixa os filhos o final de semana inteiro com os avós, ‘porque cuidarão bem deles e os amam muito’.

– Quando se deixa o filho o dia todo com os avós de maneira constante, ‘porque cuidam bem dele e o amam muito’.

– Quando se envia o filho adolescente para estudar fora do país durante anos, para evitar os problemas desta fase, e dando mais prioridade à aprendizagem de um idioma novo do que ao acompanhamento nesta etapa tão crucial da vida.

– Quando o filho se torna somente o cartão de visitas dos pais, que condicionam sua aceitação a que seja um aluno brilhante.

– Quando os pais se esquecem que a verdadeira educação acontece no ser dos filhos, e a medem apenas pelos resultados no ter, saber e fazer. Quando se negam a escutar, compreender e comunicar-se com os filhos, para ajudá-los a dirigir sua vida com plena liberdade.

– Quando os pais em conflito usam os filhos como luvas de boxe em suas frequentes brigas.

– Quando os pais se divorciam e tratam o tema da guarda dos filhos como se discutissem pela casa ou pelo carro, sem considerar o grande dano que lhes causam.

– Quando os filhos se tornam uma válvula de escape da pressão que os pais sentem diante das provações da vida, sendo então violentados, humilhados.

– Quando os pais desconhecem que seu maior valor é saber amar, acolhendo o filho somente por ele ser quem é, porque é esse amor que estrutura a personalidade do filho, mediante a identificação e as experiências vividas com seus pais.

Porque, para bem ou para mal, os pais serão sempre a principal referência da identidade dos filhos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2020/10/25/formas-nao-tao-evidentes-de-abandonar-os-seus-filhos/

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cânticos de fé e esperança: uma riqueza do Evangelho de Lucas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
Quando lemos o texto, à luz da análise narrativa, percebemos como discursos são recursos literários muito usados pelo narrador, para dizer, pela boca de importantes personagens, sua mensagem

*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,

 teólogo

‘O Evangelho de Lucas é uma preciosidade. Bastante parecido, no esquema e no conteúdo, com os outros dois primeiros evangelhos, o de Mateus e o de Marcos, Lucas consegue manter uma originalidade bastante interessante : tem uma catequese própria e conservou tradições primitivas que os outros evangelistas provavelmente optaram por não conservar. 

O evangelista Lucas não foi discípulo ocular de Jesus : foi educado na fé por Paulo, de quem era companheiro de viagem. A riqueza da mensagem lucana revela como Lucas bem assimilou a experiência de fé e, com criatividade, tornou-se um eminente educador da fé.

Antes de se converter ao discipulado de Jesus, como membro do Caminho - maneira como, nos Atos dos Apóstolos Lucas chama a comunidade cristã -, o evangelista era pagão. Esse detalhe não é uma informação qualquer. Quem lê com atenção os escritos lucanos percebe como ele é inteirado da tradição judaica, como conhece a fé e os costumes de Israel e como é profundo conhecedor da Escritura Sagrada. Sem dúvidas, facilmente seria confundido com um bom judeu. 

Tudo isso só revela o quanto a convivência com Paulo foi frutuosa em seu itinerário de iniciação à fé, de modo que pôde interpretar a tradição judaica, para nela discernir o evento cristão, de uma maneira bastante aberta. Além disso, Lucas soube, muito bem, como dialogar com o mundo de sua época, a fim de ser coerente com a mensagem nuclear de seu evangelho : a salvação é para todos e todas!

No Dom Especial desta semana, nós lançamos o olhar para um ponto bastante específico no Evangelho de Lucas : os três cânticos que compõem a narrativa. Quando lemos o texto, à luz da análise narrativa, percebemos como discursos são recursos literários muito usados pelo narrador, para dizer, pela boca de importantes personagens, sua mensagem. 

Dessa forma, atentarmo-nos para os três cânticos, que são como que discursos, faz-se importante para apreender a mensagem catequética - no caso, a teologia - que o texto propõe. Os três artigos que compõem nosso Especial buscam, de maneira criativa e atual, ler essa teologia, de modo a nos ajudar a refletir sobre pontos importantes para a vida e missão cristã.

No Evangelho, os três cânticos são colocados na boca de personagens que representam a primeira Aliança, e que aguardavam, ansiosos, o cumprimento da salvação, prometida por Deus : Maria, Zacarias e Simeão. No primeiro artigo, Magnificat : o cântico profético e libertador de Maria, Rodrigo Ferreira da Costa reflete sobre o canto-grito de libertação dos empobrecidos e empobrecidas, pela mão bondosa e compassiva do Senhor, que não frustra a esperança de seu povo. Fabrício Veliq reflete, no artigo Benedictus : salvação e paz como promessa de Deus, sobre a personalidade companheira de Deus, que caminha junto a seu povo, trazendo luz para o caminho e cumprindo a promessa de paz. Por fim, refletindo sobre o terceiro cântico, Francisco Thallys Rodrigues, no artigo Louvar a Deus em nossa vida, chama a atenção para a sensibilidade de se perceber, com gratidão, a ação salvífica de Deus em nosso meio. Boa leitura!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1478200/2020/10/canticos-de-fe-e-esperanca-uma-riqueza-do-evangelho-de-lucas/


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Quem governa a Igreja Católica? Uma questão em aberto

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 
*Artigo do Padre John W. O'Malley, S.J.

 

‘Como todo católico sabe, o papa dirige a Igreja. Não é extremamente estranho, portanto, chamar o governo da Igreja de uma questão aberta? É estranho, mas sinto-me compelido a fazê-lo por três motivos. Primeiro, acabei de publicar um livro, Quando faltam os bispos, nele, o terceiro capítulo é intitulado ‘Quem está no comando?’. Essa questão surgiu com força inevitável quando comparei e contrastei os últimos três concílios da Igreja : Trento, Vaticano I e Vaticano II. Essa revisão dos concílios mostrou claramente que, historicamente falando, a questão de quem dirige a Igreja é complexa - e não pode ser reduzida ao papado.

É simplesmente uma questão acadêmica sem importância imediata? Eu acho que não. A crise dos abusos sexuais transferiu a questão de quem dirige a Igreja dos pacíficos bosques da academia para a praça pública. Esta é uma segunda razão para examinar a questão do governo da Igreja. 

A crise estourou pela primeira vez em Boston, em 2001, mas logo se revelou um problema de grande importância em toda a Igreja. As muitas medidas já tomadas pelos bispos dos Estados Unidos para enfrentar a crise surtiram bons resultados. Esperamos e oramos para que as medidas rigorosas que o papa Francisco ordenou tenham um efeito semelhante em todo o mundo. Ainda há muito a ser feito, mas um bom passo foi dado.

Não devemos esquecer isso. Também não devemos esquecer que, com o passar dos anos desde 2001, ficou claro que na sua raiz, a crise é uma crise de liderança. Os líderes da Igreja, os homens responsáveis pelo bem-estar dela, falharam em tomar as medidas que todos, por direito, esperávamos que tomassem.

A terceira razão pela qual me sinto compelido a abordar essa questão é o surgimento da sinodalidade - a promoção dos sínodos como um componente apropriado e necessário na vida da Igreja no mundo de hoje - em documentos recentes da Santa Sé. Em essência, o papado promove uma modificação dos processos atuais de administração e governo da Igreja. Infelizmente, muitos teólogos e a mídia católica nos Estados Unidos deram pouca atenção a esse desenvolvimento. Nesse sentido, ficamos para trás em outras partes da Igreja.

Para que serve um concílio?

O que fazem os concílios ecumênicos? Para que servem? Por que precisamos deles? Até o Concílio Vaticano II (1962-65), os concílios eram essencialmente órgãos legislativos e judiciais. Eles fizeram leis e julgaram a culpa ou a inocência de pessoas acusadas do crime eclesiástico de heresia. Atuaram assim como uma assembleia legislativa e um tribunal de justiça criminal.

Nesse sentido, o Vaticano II é totalmente diferente, porque não se via como basicamente legislativo e judicial. Teve um propósito diferente porque adotou formas literárias diferentes da elaboração de leis e da emissão de veredictos. Embora a boa ordem na Igreja fosse uma preocupação do Concílio, o Vaticano II foi uma reunião em que os bispos exploraram e articularam novamente a identidade da Igreja, relembraram e desenvolveram os valores mais profundos e proclamaram ao mundo a visão sublime da Igreja para a humanidade. Entendamos essa mudança na definição que o Vaticano II pretendia realizar, mas procuramos em vão por uma compreensão satisfatória na realidade.

Quem está no comando de um concílio? Quem são as pessoas que constituem os conselhos e quem detém a autoridade de tomada de decisão? Eu sugiro que existem quatro grupos : os papas e a Cúria Romana, os teólogos, os leigos e outras influências - isto é, aquelas pessoas (como Lutero) ou aquelas realidades maiores (como o mundo moderno) que influenciaram muito um determinado concílio, embora não fossem católicos e não estivessem fisicamente presentes. Essas entidades desempenharam papéis diferentes em cada um dos três conselhos. No Concílio de Trento, por exemplo, a Cúria Romana não desempenhou nenhum papel direto, o que é totalmente diferente de seu papel principal tanto no Concílio Vaticano I como no Vaticano II. Há um dinamismo intrínseco ao aspecto sinodal do governo da Igreja.

Mesmo com esse dinamismo, os concílios mostraram uma notável estabilidade ao longo dos dois milênios de história. Eles mostram estabilidade e continuidade uns com os outros, porque os bispos constituíram desde o início seus membros essenciais e centrais e exerceram infalivelmente a autoridade de tomada de decisão. Isso vale para os 21 concílios que os católicos geralmente reconhecem como ecumênicos, ou para toda a Igreja, e para as centenas de concílios diocesanos, sínodos regionais ou nacionais que floresceram ao longo dos séculos.

Que diferença fizeram? Esta pergunta inclui o que normalmente queremos dizer quando perguntamos o quão bem-sucedido foi um concílio, mas também vai além de coisas como consequências não intencionais de um concílio. Muitas vezes, essas eram mais importantes do que as consequências pretendidas. Em seu impacto, os concílios muitas vezes eram tanto uma instituição cultural quanto eclesiástica.

Trento e sua contribuição

No século 4, três agentes compartilhavam a responsabilidade na governança da Igreja : papas, bispos, com seus sínodos e autoridades seculares. Depois do Cisma do Grande Oriente do século 11, quando as Igrejas de fala grega e latina decidiram seguir caminhos separados, os papas começaram a assumir uma autoridade cada vez maior, incluindo o direito de convocar concílios.

Além disso, conforme as monarquias nacionais se desenvolveram por volta daquela época na França, na Inglaterra e em outros lugares, a autoridade do Sacro Imperador Romano perdeu muito de seu poder político, embora o prestígio do cargo permanecesse. Fora isso, na época do Concílio de Trento, no século 16, os três agentes mudaram pouco em suas funções essenciais no que diz respeito ao governo da Igreja. Nesse sentido, agiam às vezes como parceiros e às vezes como rivais.

Trento foi o último concílio em que esta trindade operou plenamente. O clamor por um concílio para resolver as questões levantadas por Lutero irrompeu quase imediatamente após sua excomunhão em 1521. O Sacro Imperador Romano Carlos V aceitou o clamor e se tornou o defensor mais consistente, insistente e autorizado da cristandade nos 25 anos seguintes. O papa Clemente VII, temeroso de que um concílio tentasse depô-lo, esquivou-se de todas as formas, mas o próximo papa, Paulo III, concordou em convocar um concílio em Trento, a centenas de quilômetros de Roma. Se não fosse pela pressão constante do imperador, o concílio poderia nunca ter ocorrido.

O papa Paulo III queria restringir a agenda do concílio para responder às questões doutrinárias levantadas por Lutero, na esperança de manter a reforma da Igreja, especialmente a reforma da Cúria Romana, em suas próprias mãos. O imperador insistiu que o conselho também empreendesse a reforma da Igreja, antes de abordar as questões doutrinárias. Pego entre essas duas pressões, o conselho decidiu sobre o curso sensato de fazer as duas coisas, e fazê-las em conjunto.

Para o Concílio de Trento, os governantes escolheram a maioria dos teólogos. Em 1551, a rainha Maria da Hungria, por exemplo, enviou oito. O papa enviou dois. No Vaticano II, em contraste, o papa João XXIII ou o papa Paulo VI escolheram cada um dos quase 500 teólogos oficialmente credenciados ao concílio. Além disso, em Trento, todos os governantes e entidades políticas de qualquer tamanho enviaram emissários ao concílio para representar suas preocupações. Mesmo sendo leigos, os enviados tiveram o privilégio de se dirigir aos participantes e apresentarem suas credenciais. Em 1562, por exemplo, Sigismund Baumgartner, um enviado leigo do duque da Baviera, dirigiu-se ao concílio e pediu a ordenação ao sacerdócio de homens casados de integridade comprovada - para terras de língua alemã, pelo menos.

Em suas medidas finais, o conselho determinou que os três agentes tradicionais na governança da Igreja cuidassem da implementação adequada de seus decretos. Isso lembrou aos príncipes de seu dever de aplicá-los. Decretou que cada bispo deveria realizar um sínodo anualmente em sua diocese para fazer o mesmo e cuidar das necessidades contínuas da Igreja local. Entregou certas tarefas ao papado. Essa receita aparente para o conflito funcionou razoavelmente bem durante o século seguinte ou mais.

O Concílio final

O próximo concílio ecumênico (1869-70), o Vaticano I, foi o primeiro concílio da história em que os leigos não participaram ativamente. Os cardeais que organizaram o conselho não queriam, em princípio, excluir as autoridades seculares; mas a situação política da Europa depois da Revolução Francesa era tão volátil, tão mutante e uma incerteza entre a monarquia e a república que não sabiam como proceder. Assim, os governantes perderam seu papel espontaneamente, mais do que por uma escolha deliberada.

O concílio também definiu a primazia papal e a infalibilidade. A forma como esse decreto deveria ser interpretado era uma questão de grande controvérsia na época, mas teve o efeito de persuadir as pessoas de que o papa poderia e deveria tomar todas as decisões. Assim, não houve necessidade de novos conselhos. Embora o Vaticano I não tenha dito uma palavra sobre eles, a tradição colegial dos sínodos foi gravemente marginalizada.

Terceiro, após o concílio, o papa gradualmente adquiriu controle exclusivo sobre a nomeação dos bispos. Isso não foi tanto um efeito do concílio, mas sim da mudança da situação política na Europa. Quando em 1870 a nova monarquia italiana finalmente uniu a Itália, os acordos da Santa Sé com os antigos estados italianos como o Reino de Nápoles tornaram-se letra morta. Cada um desses tratados concedeu ao estado o direito de nomeação de bispos. Como a Santa Sé considerava a nova monarquia italiana totalmente ilegítima, não fez nenhum acordo com ela para substituir os acordos que haviam desaparecido.

Portanto, Pio IX tinha carta branca nas nomeações episcopais. Durante 1870 e 1871, nomeou mais de 100 bispos para as sedes italianas. Nenhum papa jamais teve esse poder. Depois da Itália, o mesmo padrão começou a prevalecer em outros lugares. Finalmente, em 1965, o jovem Juan Carlos da Espanha cedeu o privilégio da Coroa espanhola sobre isso. Pela primeira vez na história da Igreja, a nomeação de bispos tornou-se um processo exclusivamente clerical.

Abrindo as janelas da Igreja

Quando o papa João XXIII anunciou um novo concílio em 1959, o Vaticano II foi convocado como o concílio que encerraria todos os concílios. Não apenas isso : a promulgação mais importante do concílio foi a afirmação da tradição sinodal ou colegial da Igreja na forma de colegialidade episcopal. Essa disposição no terceiro capítulo da Constituição dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium) afirmava que o colégio dos bispos com e sob o sucessor de São Pedro governa a Igreja. A disposição reafirmou a tradição eclesiológica antiga e fundamental de que o governo da Igreja Católica é hierárquico e colegiado.

Em outros documentos, o conselho aplicou o princípio colegial às relações dos bispos com seus padres e dos padres com seu povo. A colegialidade episcopal mais obviamente entra em jogo em um concílio ecumênico, mas não se restringe a essas raras ocasiões. O conselho reconheceu a necessidade de encontrar uma instituição que torne a colegialidade operativa como um modo contínuo de governo da Igreja.

Antes que pudesse começar a tratar dessa questão, o papa Paulo VI interveio e criou o Sínodo dos Bispos. Ao fazer do Sínodo dos Bispos um órgão puramente consultivo, o papa redefiniu a palavra sínodo para que não fosse mais sinônimo de concílio, que é um órgão de tomada de decisões. Em qualquer caso, depois do concílio, alguns bispos reclamaram que o Sínodo dos Bispos às vezes parecia apenas um carimbo sem autoridade para as decisões tomadas antes mesmo dos bispos se reunirem.

Caminhando juntos

Vamos agora avançar de 1965 para 2001 e a explosão do escândalo de abuso sexual - e para 2018, quando se intensificou com o relatório do procurador-geral da Pensilvânia e a destituição do cardeal Theodore McCarrick. Uma questão perene ganhou nova urgência : Quem vai proteger os guardiões? Embora as medidas agora em vigor tenham sido razoavelmente eficazes, comecei a pensar que precisamos encaixar a crise e sua solução na tradição mais ampla de governo da Igreja que o papa Francisco está propondo.

O papa Francisco é um homem complexo, de difícil compreensão. No entanto, três influências foram fundamentais : sua vida no sul global, sua vocação jesuíta e sua compreensão e apropriação do Vaticano II. Francisco é o primeiro papa em 50 anos que não participou do Concílio Vaticano II. De forma paradoxal, sua não participação tem sido uma vantagem, porque não está em algum nível psicológico profundo ainda lutando as batalhas do concílio.

Entre os ensinamentos do concílio que o papa levou especialmente a sério está a colegialidade, como ficou claro quando ainda era arcebispo de Buenos Aires. Naquela época, Francisco persuadiu o papa Bento XVI a restaurar a autoridade da Celam, a Conferência dos Bispos da América Latina. Como papa, ele defendeu com mais clareza a colegialidade na maneira como conduz o Sínodo dos Bispos. Sob Francisco, o sínodo em teoria manteve sua função consultiva, mas ele deu aos bispos uma nova liberdade de expressão, apresentou regularmente leigos como membros ativos das reuniões e, sem dúvida, determinou que o documento final representasse o verdadeiro resultado dos debates.

Nos últimos anos, porém, a questão sinodal atingiu um novo nível de destaque e articulação. Em 18 de março de 2018, a Comissão Teológica Internacional emitiu um relatório extraordinário intitulado ‘Sinodalidade na vida e missão da Igreja’. O papa Paulo VI estabeleceu a comissão em 1969, logo após o Vaticano II. Sua missão é assessorar o magistério da Igreja, especialmente a Congregação para a Doutrina da Fé, sobre os assuntos atuais na Igreja. O relatório inequivocamente torna a governança da Igreja uma questão em aberto, porque defende uma mudança na forma como o governo tem funcionado desde o Vaticano I. Defende a reintrodução de sínodos diocesanos, regionais, nacionais e internacionais como uma característica regular da vida da Igreja.

A bolha de ideias que embasa o documento é de primeira classe em todos os aspectos do assunto. O documento é, entretanto, mais do que uma revisão acadêmica do assunto, o que normalmente esperamos da Comissão Teológica Internacional. Este documento parece estar em ação. Ele defende a sinodalidade e sugere como deve ser operada.

O papa abre com um prólogo no qual faz algumas afirmações notáveis sobre a urgência da sinodalidade para a Igreja hoje. Citando, por exemplo, a alocução de 2015, por ocasião do 50º aniversário da criação do Sínodo dos Bispos pelo papa Paulo VI. ‘É precisamente este caminho de Sinodalidade que Cristo espera da Igreja do terceiro milênio’. Francisco enfatizou que a sinodalidade é ‘uma dimensão essencial da Igreja’. É impossível falar da tradição da Igreja sem falar dos sínodos. A revisão acima da história dos concílios/sínodos apoia totalmente essa afirmação.

Com este documento, a comissão quer ‘oferecer orientações úteis para aprofundar a base teológica da Sinodalidade e orientações práticas sobre o que isso significa para a missão da Igreja’. Eu acrescentaria : pelo que isso significa como um modo de governo da Igreja - como um modo de ser Igreja.

Depois de estabelecer a base escriturística e histórica para a sinodalidade, o documento passa para a teologia da sinodalidade. A seguir, apresenta um programa para fazer a sinodalidade funcionar na Igreja. Também revela o âmbito ambicioso da proposta. Ela considera a sinodalidade operativa em todos os níveis da estrutura da Igreja - diocesana, regional, nacional e internacional. Além disso, afirma explicitamente que ‘a participação dos fiéis é essencial’ a todos os níveis.

O capítulo final, ‘Conversão para renovar a sinodalidade’, aborda o problema de que nem os bispos nem as pessoas estão acostumadas a agir de forma sinodal. Sem dizer exatamente isso, o capítulo reconhece que uma mudança de mentalidade não será fácil. A implementação da sinodalidade, devemos concluir, é um projeto de longo prazo. Isso vai acontecer? São apenas palavras? Possivelmente. Mas se for implementado mesmo de uma forma parcial e imperfeita, terá, por definição, um impacto no governo da Igreja porque a sinodalidade é, principalmente, sobre o governo da Igreja.

A governança da Igreja é uma questão em aberto? Por um lado, o governo da Igreja Católica tem sido notável por sua estabilidade, devido em grande parte à autoridade de tomada de decisão de que os bispos desfrutaram desde o início. Com todas as suas falhas, a estabilidade do governo da Igreja permitiu que sobrevivesse a todas as crises de sua história. Por outro lado, o governo da Igreja tem sido dinâmico. Outras pessoas além dos bispos desempenharam papéis oficiais ou semioficiais nesse governo também desde o início da Igreja. Nem os papéis que desempenharam permaneceram estáticos, como fica claro até mesmo na forma como os teólogos funcionavam em Trento e, de uma forma diferente, no Vaticano II.

Hoje, dois fatores colocaram o elemento dinâmico em um novo destaque. A crise do abuso sexual nos forçou a fazer perguntas difíceis sobre a liderança da Igreja - isto é, o governo da Igreja. A promoção pela Santa Sé de uma renovação da tradição sinodal agora nos compele a fazer perguntas difíceis sobre o status quo do governo da Igreja. Apesar de toda a sua estabilidade, o governo da Igreja foi e continua sendo uma questão em aberto.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1477768/2020/10/quem-governa-a-igreja-catolica-uma-questao-em-aberto/

 

** Nota do editor : este ensaio foi adaptado de um simpósio no Lumen Christi Institute em Chicago, Illinois, em 4 de novembro de 2019. Uma resposta de Russell Hittinger, A diversidade na autoridade : a governança da Igreja ao longo da história.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Os grandes benefícios de se sentir perdido

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  

*Artigo do Padre Michael Rennier,

sacerdote católico ordenado através da Provisão Pastoral para ex-clérigos episcopais que foi criado pelo Papa São João Paulo II

 

‘Às vezes, eu me perco de propósito. Em uma corrida, viro em uma rua aleatória porque quero ver como são as casas naquele bairro intrigante, ou talvez haja um parque escondido na esquina ou uma vista diferente do rio. Dessa forma, ao me sentir perdido, encontrei lugares que não consigo encontrar de novo – delicadas fontes urbanas de cobre com crostas verdes por décadas ao sol, riachos salpicados de peixes prateados entrando e saindo da sombra, um cemitério antigo, coberto de grama, da civilização pré-colombiana que viveu nas margens do rio Mississippi há mil anos. São experiências únicas que me ocorrem espontaneamente. Tudo o que tenho a fazer é vagar.

Lembro-me de quando aceitei minha primeira designação para pastorear uma igreja. Eu recentemente havia me formado no seminário. E um pequeno grupo de pessoas me pediu para ir a Cape Cod para ajudá-los a iniciar uma nova paróquia anglicana. Assim, aceitar a posição foi um salto de fé e, para dizer a verdade, eu estava mais perdido do que esperava. Não tinha ideia de como construir uma igreja. Então, felizmente, concordei em me perder no imenso desafio de servir a uma comunidade cristã desde os primeiros momentos de seu nascimento.

Amadurecimento

Minha vontade de me perder de diferentes maneiras ao longo dos anos rendeu frutos. Primeiramente, aprendi muito com meus paroquianos e amadureci como pastor. Então passei a pensar nesses paroquianos como minha família. E juntos nossa comunidade experimental prosperou. Na verdade, como não tinha ideia do que estava fazendo, não tinha preconceitos sobre como exatamente se faz para fazer uma igreja prosperar. Então formamos uma comunidade unida e tentamos todos os tipos de coisas. Enfim, se eu tivesse chegado lá com tudo rigorosamente planejado, toda a experiência teria sido muito menos frutífera.

Da mesma forma, nunca poderia planejar descobrir as partes esquecidas e escondidas da cidade onde moro, porque não tinha ideia de que existiam. A vontade de se perder é o único caminho.

Sentir-se perdido nem sempre é muito divertido. Literalmente falando, nada é pior do que estar em um carro – perdido – enquanto a pessoa ao lado grita que você errou. Metaforicamente, estar perdido como um estado de espírito é estressante. É aquela sensação desagradável de não saber o que fazer a seguir, de não ver um caminho produtivo adiante, de sentir-se inseguro sobre para onde a vida está indo.

Acontece com todos nós em algum ponto ou outro. Pode-se estar preso em uma carreira insatisfatória, mas sem saber qual seria o melhor caminho. Pode-se saber que há uma vocação específica em sua vida, mas você se vê incapaz de localizá-la. Quando a próxima etapa é incerta, perdemos o equilíbrio. Enfim, isso se torna uma grande fonte de estresse e insatisfação.

Oportunidade de crescimento ao se sentir perdido

Tudo depende de como reagimos ao estarmos perdidos. O poeta Rainer Maria Rilke, em uma carta a um jovem poeta que estava perdido sobre o que escrever e o que fazer, escreve : ‘Seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar as próprias questões como se fossem quartos trancados ou livros escritos em uma língua muito estrangeira. Viva as perguntas agora. Talvez então você irá, gradualmente, sem perceber, viver uma longa jornada até a resposta.

A paciência durante os momentos de sensação de estar perdido, de acordo com Rilke, é a chave para coisas novas e surpreendentes. Estar aberto à experiência é vital. A abertura não torna a experiência mais fácil. Embora eu me lembre com carinho de ter trabalhado com aquela igreja nova, também me lembro de momentos intensos de estresse e frustração. Mas se formos pacientes e estivermos de mente aberta, a experiência de estarmos perdidos eventualmente nos levará a transformação.

Correr riscos

Na verdade, não sabemos o que podemos nos tornar até que o tornemos. Então, se nunca estivermos dispostos a correr riscos, nunca iremos experimentar qualquer crescimento pessoal. De que outra forma podemos expandir nossos horizontes, a menos que estejamos dispostos a ir além de nossos limites habituais para um território desconhecido?

Nesse sentido, trata-se de um ato de equilíbrio. Acima de tudo, não estou dizendo para ser imprudente. Mas isso não deve nos impedir de ser aventureiros. E, claro, sentir-se perdido costuma ser uma condição que a vida nos impõe contra nossa vontade. O que realmente importa é como enfrentamos o desafio.

Quando olhamos para trás em nossas vidas, podemos ver como os acontecimentos inesperados, mesmo os momentos muito difíceis, os momentos em que estávamos ansiosos e preocupados, inseguros quanto ao nosso futuro, foram os catalisadores de períodos de enorme crescimento. Então, eu digo, de vez em quando vire à direita, onde normalmente você vira à esquerda. Abra uma nova porta. Vá em frente e se perca.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2020/10/19/os-grandes-beneficios-de-se-sentir-perdido/