Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Folheando
algumas páginas de um manual de História da Igreja, e depois focando na parte
que trata da trajetória dos papas, notei que falta uma coisa : o papa Francisco
nomear um cardeal sem que ninguém saiba. Parece estranho, mas é algo previsto
pelo Código de Direito Canônico, a ‘Constituição’ da Igreja.
O
cânone (artigo) 351,3, diz :
‘A
pessoa promovida à dignidade cardinalícia, cuja criação o Romano Pontífice
anunciar, reservando para si o nome in pectore, não fica entretanto
obrigada a nenhum dever dos Cardeais nem goza de nenhum dos seus direitos; a
partir da publicação do seu nome pelo Romano Pontífice, fica obrigada aos
mesmos’.
Isso
quer dizer que o sumo pontífice tem a liberdade de nomear um cardeal in
pectore - do latim, no peito, no segredo do coração - sem comunicar o
nome ao Vaticano. Neste caso, em primeiro momento, ele não divulga quem é a
pessoa nem para o colégio cardinalício. Todos só ficarão sabendo que existe um
in pectore no dia do consistório, a cerimônia na qual o Santo Padre lê o decreto
oficial para concessão do título. Porém, fica a critério do pontífice escolher
quando será a revelação do nome, que pode acontecer até anos depois.
Trata-se
de uma exceção. Eles são cardeais, integram o colégio cardinalício, mas não
gozam dos direitos ligados à função até a nomeação pública. Ou seja, não podem
votar num conclave, participar de reuniões de cardeais nem chefiar um
escritório do Vaticano. É diferente do que acontece em circunstâncias normais.
No
domingo passado, Francisco anunciou a criação de 13 novos cardeais. Isso não
quer dizer que eles já podem vestir, imediatamente, a roupa vermelha. Só depois
do dia 28 de novembro, data em que o papa celebra a missa na qual lhes são
entregues as insígnias cardinalícias e tomam posse de uma igreja.
Seguindo
uma antiga tradição, o cardeal se torna titular de uma igreja da diocese de
Roma, já que passa a ser um braço direito do papa, o bispo da cidade. É por
isso que vemos o brasão dos purpurados no alto da fachada de alguns templos da
capital.
Quem já aplicou a
fórmula in pectore?
O
papa Martinho V foi quem começou com essa prática, no século 14. A normativa
para a aplicação da regra, na época, não era muito clara. Mas certamente foi
motivada por questões políticas, dado que um dos escolhidos era seu próprio
sobrinho, Prospero Collona, membro de uma das famílias mais poderosas de Roma,
na época.
O
último a fazer uso do recurso foi o Papa João Paulo II. Em 1979, um ano depois
de eleito, ele fez cardeal o arcebispo de Xangai, Ignatius Kung Pin-me, mas só
levou a escolha a público em 1991. Em 1998, deu o barrete cardinalício a Marian
Jaworski (bispo de Leópolis, na Ucrânia) e Jamos Pujats (bispo de Riga, capital
da Letônia). Porém, o papa polonês divulgou sua decisão só em 2001.
As
nomeações foram secretas também por motivação política, como ocorre na maioria
das vezes em que o pontífice recorre a essa medida. Todos os condecorados
viviam ou já tinham sofrido perseguição em países que estavam sob o regime
comunista.
Pujats,
por exemplo, foi considerado persona non grata pela KGB, o
serviço secreto soviético, durante muitos anos. E Ping-mei passou 30 anos preso
por não admitir que os católicos fossem controlados pela chamada ‘Igreja
Patriótica’ do Partido Comunista. Inclusive, foi próprio João Paulo II a
dar-lhe a notícia de que seria cardeal durante uma reunião, a portas fechadas,
no Vaticano.
Em
2003, aconteceu algo muito peculiar. João Paulo II disse na celebração dos 30
novos cardeais daquele ano que ‘além dos 30 recém-empossados existia mais um
in pectore’. No entanto, o nome jamais foi revelado. O pontífice morreu em
2005, antes da convocação de um novo consistório.
Pensando
na renovação do acordo firmado entre China e Santa Sé recentemente, comecei a
refletir sobre o tema. Diante do que já aconteceu anos atrás, e olhando para a
ousadia de Francisco, não é difícil pensar na possibilidade. Além disso, a
diplomacia pontifícia reitera que todos os bispos chineses passam a ser
considerados legítimos.
Não
é algo previsto pelo trato, mas o Papa poderia nomear alguém desse modo para se
aproximar dos católicos chineses, tendo em vista a complexidade da situação, e
o fato de que alguns não se sentem confortáveis, ainda, com o acordo. E se ele
escolhesse um bispo que, no passado, fez parte da chamada ‘igreja
clandestina’, como gesto de reconhecimento pelo esforço de manter-se fiel a
Roma nos períodos mais difíceis?
Por
outro lado, para dar um passo como esse, há uma série de implicações
diplomáticas. Se fosse hoje, Pequim certamente não ficaria muito contente com a
ideia. Então tudo vai depender dos frutos dessa discreta reaproximação entre os
dois países. Será que é a próxima surpresa que Francisco nos reserva? Ele pode
dar essa cartada inesperada? É o que veremos.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1480084/2020/10/francisco-e-a-nomeacao-de-um-cardeal-em-segredo//
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