Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
O 'Êxtase de Santa Teresa' ou a 'Transverberação de Santa Teresa' é uma escultura de Giancarlo Bernini
*Artigo de Gustavo Ribeiro
‘Não era uma espécie de visão
: creio ser o que chamam de teologia mística. A alma fica suspensa de tal sorte
que parece estar fora de si. A vontade ama, a memória, a meu ver, está quase
perdida, o intelecto não raciocina, contudo, não se perde; entretanto, torno a
dizer, não age. Está como que admirado do muito que alcança’. (Vida, 10, 1b)
‘Já
se tornou um clichê dizer que Teresa de Jesus ou de Ávila, como preferirem, é
uma das grandes mulheres da Igreja. E digo isto sem nenhum desprezo ou
demérito, mas para reforçar que Teresa é uma força, mas muitas outras mulheres
o foram também naquele período, porém não apareceram como a reformadora do
Carmelo por conta da cultura patriarcal que molda a cristandade daquele tempo.
Entre
as mulheres que se destacaram pela mística está Teresa, e de sua figura e
legado destaca-se a reforma do Carmelo. E por reforma se entende não somente a
dimensão burocrática da organização e fundação de novos claustros, mas a
abertura para a experiência de uma vida espiritual transformada, capaz de
conduzir suas monjas pelas sendas de um castelo, a explorar suas moradas
interiores, num trabalho espiritual incessante pessoal, não solitário.
Existe
ao redor de Teresa uma desconfiança acentuada pela cultura patriarcal, que a vê
como desajustada, num processo de patologização de sua experiência espiritual
concreta e até, usando de um anacronismo, progressista.
Tereza é uma dessas figuras que escapou pelas fissuras que existem na cultura patriarcal... o que demonstra a sua força, sua coragem, sua vontade de transformar aquele cenário, mas é também algo que precisa estar sempre em consideração ao falarmos dessas mulheres que em determinadas épocas se sobressaíram, porque elas representam a reação contracultural a essa estrutura patriarcal que cerceia a participação feminina e que impede a construção de uma mística feminina própria, porque não permite que as mulheres se expressem e narrem suas vivências espirituais.
O
que talvez espante em Teresa é que a sua mística é bastante encarnada e o corpo
é o grande protagonista dessa experiência. Tereza sente na carne a experiência
mística que faz e é nela que a santa experimenta a vinda do Senhor. Teresa
apresenta inclusive a experiência mística como algo muito íntimo : ‘quando
interiormente me figurava estar junto de Cristo, ou até mesmo lendo, ocorria-me
de repente tal sentimento da presença de Deus, que de algum podia duvidar que o
Senhor estivesse dentro de mim, e eu, toda mergulhada nele’ (Vida, 10,1).
O
modo como a doutora narra suas experiências surpreende, porque naquele período
histórico uma mulher não podia expressar-se livremente, muito menos atribuir
termos com conotações quase sexuais. Teresa rompe muitas barreiras ao mesmo
tempo, porque a mística e a expressão dela passa pelo corpo, porque ele é o
lugar por excelência da experiência mística, e não existe experiência
desencarnada.
Segundo
Julia Kristeva, ‘os êxtases de Teresa são, desde o início e sem distinção,
palavras, imagens e sensações físicas, espírito e carne, ou melhor, carne e
espírito : ‘o corpo não fica sem participar do jogo, e até muito’’.
E é
assim que Bernini retrata Teresa em sua obra Transverberação de Santa
Teresa, uma mulher flechada por uma seta de fogo em posição de aparente
gozo físico. Porque em Teresa a experiência de encontro com Deus é romântica,
no sentido de entrega total ao Amado em suas delícias.
O
Deus distante, ‘totalmente outro’, na espiritualidade teresiana é
alteridade experimentável, se deixa encontrar e experimentar, inclusive de
maneira física, ou melhor, carnal, orgástica. Fruto das experiências ética,
estética e extática que Teresa faz de Deus.
Algo
que impressiona na reformadora do Carmelo é que suas experiências pessoais são
profundamente comunitárias e, talvez, universais. Porque ela não faz caso
delas, em aprisioná-las em uma narrativa autorreferente, ensimesmada, mas as
transforma em relatos pedagógicos de experiências alcançáveis ao seu ver. Ela
relata às suas irmãs, vocativo que ela repete com frequência em suas obras o
vivido, o fruto da experiência, porque quer que elas também trilhem os mesmos
caminhos e experimentem, que alcancem favorável graça do Amado, a ponto de
experimentá-lo em suas entranhas, como ela o faz.
A
experiência mística de Teresa surge da oração. E é sobre a oração que a
reformadora do Carmelo refere-se em suas obras, mesmo em Fundações,
ao tratar da fundação dos mosteiros, é sobre a oração que a doutora da Igreja
busca fundamentar sua necessidade de tais empreendimentos. E a oração para
Teresa é Deus mostrando a alma sua amizade, sua total filantropia.
Teresa
viveu uma espiritualidade totalmente atrelada à humanidade de Jesus, porque
caminhar por esta senda permitia a ela a compreensão de estar no mundo de forma
concreta e a não buscar fugir dele nem a ele se assimilar. E ela só pode olhar
para um único modelo, Cristo : ‘não somos anjos, temos corpo. Queremos
passar por anjos enquanto estamos na terra, e tão engolfados nela como eu
estava, é desatino. Em geral, nossos pensamentos carecem de apoio. Às vezes, a
alma sai de si; outras anda tão cheia de Deus a ponto de dispensar alguma coisa
criada para se recolher. Isto, porém, não é comum. Quando não se pode ter
tranquilidade, no meio dos negócios, perseguições, sofrimentos e em tempo de
securas, Cristo é o melhor amigo. Olhando-o feito homem, vemos suas fraquezas e
tormentos, e permanecemos em sua companhia. Adquirindo o hábito, é muito fácil
encontrá-lo junto a nós’ (Vida, 22,10).
Não
podemos afirmar que Teresa possuía uma devoção nominal ao Coração de Jesus,
mesmo que esta devoção tenha surgido no século 13 no Mosteiro Cisterciense de
Helfta, com Santa Gertrudes, porém só ganhou notoriedade litúrgica com São João
Eudes, que escreveu a primeira liturgia ao Sagrado Coração de Jesus, no século
17. O fato é que mesmo não nomeando suas experiências a partir dessa devoção, a
reformadora do Carmelo viveu em sua espiritualidade. As idas e vindas de Teresa
nos mosteiros e os longos anos de deserto espiritual, são aplacadas pela
experiência do aconchego no Senhor, atendendo ao que o Mestre anunciava : ‘venham
a mim todos vocês que estão cansados e carregados de fardos... e encontrem
descanso’ (cf. Mt 11,28-30).
A
misericórdia de Deus se manifesta na vida de Teresa de forma a ajudá-la a
enfrentar os inúmeros desafios que surgiram em sua busca incessante em trazer a
vida monástica à verdadeira experiência do Amado.
Teresa
hoje, mais que nunca, deve brilhar para nós como testemunho da gratuita
misericórdia de Deus e da busca espiritual que devemos realizar ao deixando-nos
acolher pelo Coração de Jesus e nele encontrar morada.
No
mundo da dispersão, a figura de uma monja talvez nos ajude a encontrar e
experimentar o essencial da vivência da fé, o amor de Deus.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1474420/2020/10/o-senhor-dentro-de-mim-eu-toda-mergulhada-nele/
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