Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘‘Lírica,
bíblica e existencial’, foi uma frase que Carlos Drummond de Andrade
pronunciou ao descrever a obra de Adélia Prado. Pedimos licença a esses mestres
da nossa literatura, para definir, dessa forma, a nova encíclica de papa
Francisco, Fratelli Tutti (Todos Irmãos), publicada neste
domingo (4), que trata da fraternidade universal e da amizade social.
Inspirado
nos ideais de Francisco de Assis, o santo do século 13 que pregou a paz e a
concórdia, o papa traça um plano de ação para reaproximar as pessoas em plena
pandemia. Foca em valores como o diálogo, o respeito e o cuidado com os mais
pobres em âmbito público e privado. Um texto sentimental, carregado de
ensinamentos bíblicos aplicados à realidade e, por assim dizer, humanista. Um
documento que foi feito para ser lembrado. É o testamento de Francisco.
Na
encíclica, o pontífice reforça conceitos elaborados ao longo de seu
pontificado. Elege temas já debatidos em suas encíclicas, discursos e
catequeses. Porém, para não fugir às suas próprias regras de ousadia, agrega à
sua reflexão o parecer de bispos católicos de vários países.
A
opinião desses líderes, que são latinos, europeus, africanos, asiáticos,
pessoas de todas as raças e estilos, ganha destaque no texto do papa. Sem
contar que a declaração conjunta do papa Francisco e o grande imã de Al-Azhar,
Ahmed Al-Tayyib, assinada em 2019, em Abu Dhabi, na qual se
comprometem a lutar pela paz mundial, conduziu grande parte da reflexão.
Francisco burla o protocolo da ‘autorreferencialidade pontifícia’ que é
própria das encíclicas.
Principais temas
Desta
vez, o papa argumenta com mais liberdade, e sem filtros. Dá nome aos bois,
aponta caminhos e condena as injustiças. Destaque para o trecho no qual diz que
o neoliberalismo não é a única via. Considera que ‘visões liberais
individualistas reduzem a sociedade a uma mera soma de interesses que coexistem’.
E afirma que ‘o mercado não resolve tudo’. Sugere, em vez disso, um novo
ordenamento social, baseado num ‘amor político’ capaz de vencer a
desigualdade.
‘A
fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se
resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política
saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças. Devemos voltar a pôr
a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as
estruturas sociais alternativas de que precisamos’, salienta.
Além
disso, faz um apelo à cooperação internacional e, ao mesmo tempo, diagnostica
um ‘falso globalismo’ que destrói identidades. Chama o racismo de ‘um
vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, e está sempre
à espreita’. Condena a xenofobia e diz que os latino-americanos que
vivem nos Estados Unidos ‘são fermento de valores para o país’, ao
contrário do que pensam os propagadores da ‘cultura dos muros’ que os vê
como uma ameaça. ‘Quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros
que construiu, sem horizontes’, profetiza.
Cristãos
também são criticados. Diz que alguns têm aderido a ‘determinadas
preferências políticas em detrimento das profundas convicções da própria fé’.
Se refere às políticas anti-imigração, sustentadas por alguns governos, que
recebem o beneplácito de alguns grupos católicos. E culpa a falta de manejo de
muitos líderes religiosos na contenção de grupos fundamentalistas, assumindo
que a Igreja demorou muito tempo para condenar algumas formas de violência em
várias fases de sua história.
‘Ainda
há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua
fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes
xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o
humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico perante estas
tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se’,
exortou.
Além
disso, Francisco trata dos direitos das mulheres, condena o que ele chama de ‘cultura
do descartável’, denuncia mais uma vez os populismos. Pede a reforma das
Nações Unidas, de modo que o organismo possa, de acordo com ele, ‘encarnar o
sentido de família das nações’ e sugere uma governança global que possa
atuar em favor dos imigrantes.
Um texto para todos
É a
terceira encíclica do pontificado de Francisco, e a segunda de cunho social. A
primeira foi a Laudato Si, de 2015, que faz um apelo à
preservação do meio ambiente.
No
prefácio da Fratelli Tutti, o papa diz que os destinatários da
mensagem são ‘os homens de boa vontade’, não somente os católicos.
Repete a fórmula criada por João XXIII, que foi o primeiro romano pontífice a
dirigir-se à humanidade inteira num documento papal. Antes dele, documentos
desse tipo se dirigiam somente a bispos, padres e fiéis católicos.
O
papa bom, como é conhecido, inaugurou, em 1963, na sua encíclica Pacem
in Terris, essa nova saudação pontifícia. Anos depois, foi copiado por
Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, que adotaram essa mesma introdução em suas
encíclicas sociais.
A Fratelli
Tutti, de Francisco, e a Pacem in Terris, de João XXIII, à
distância de quase seis décadas uma da outra, se complementam em torno de
alguns princípios. Ambas, por exemplo, a partir do próprio contexto, afirmam,
com segurança : ‘Não existe guerra justa!’. Francisco chega a dizer que ‘a
guerra é o fracasso da política e da humanidade’.
Em
1963, em plena Guerra Fria, João XXIII fez um apelo à união, em vista do bem
comum, quando o mundo era dividido em dois blocos ideológicos. Em sua mensagem,
Francisco também trata da polarização, a qual, desta vez, não só provoca cismas
fraternais, mas serve de combustível para novos nacionalismos e populismos.
As novidades
1 - Fake news e
manipulação das consciências
É
uma encíclica que também aponta os estragos causados pelas instrumentalizações
religiosas e políticas. O santo padre fala sobre a postura grosseira que, em
outros tempos, faria qualquer político perder o respeito. Hoje, segundo
Francisco, esse tipo de atitude sequer é repudiada.
Atrelado
à ascensão desses líderes políticos que normalizam o discurso violento, o
pontífice afirma que ‘há interesses econômicos gigantescos que operam no
mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão sutis quanto
invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo
democrático’.
Segundo
ele, o funcionamento de muitas plataformas acaba favorecendo a formação de ‘clãs’
que não admitem o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados,
comenta o papa, ‘facilitam a divulgação de informações e notícias falsas,
fomentando preconceitos e ódios’.
2 - Liberdade,
Igualdade e Fraternidade
Outro
ponto interessante é a reelaboração, à luz do Evangelho, do lema ‘Liberdade,
Igualdade e Fraternidade’, as três palavras que, juntas, constituem os
ideais da Revolução Francesa. Na visão do pontífice, não existe igualdade e
liberdade sem a fraternidade.
‘O
que acontece quando não há a fraternidade conscientemente cultivada? [...] A
liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura
autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e
desfrutar. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que todos
os seres humanos são iguais, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da
fraternidade’, reflete o pontífice.
3 - Propriedade
privada
Para
alguns vaticanistas, a parte na qual o papa fala sobre a propriedade privada é
a grande novidade da encíclica. No entanto, é importante frisar que a visão de
Francisco sobre o assunto remete à própria doutrina social da Igreja. Para o
catolicismo, que sempre defendeu a propriedade privada, afirma que ela só é
moralmente aceitável ‘em vista do bem comum’.
‘O
desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos,
mas há de assegurar os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e
políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos. O direito de alguns à
liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos
e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois quem
possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos’,
escreve Francisco.
Algumas considerações
Interessante
notar que, em todas as partes da encíclica, reconhecemos Francisco. Apesar de
sabermos que ele não escreve sozinho esse tipo de texto e conta com uma equipe
de colaboradores para redigir parte do conteúdo, está claro que a revisão,
feita pelo santo padre, foi criteriosa. É uma encíclica quase falada, como se,
por um momento, ouvíssemos as indagações e contemplássemos os silêncios de
Francisco. Homilia, declaração, exortação : tudo junto no mesmo texto.
Na
exortação Evangelii Gaudium, de 2014, o papa argentino traçou seu
programa de governo. Na Fratelli Tutti deste ano, ele fecha um
ciclo. Não que estejamos fazendo previsões apocalípticas sobre a morte do sumo
pontífice, mas está claro que ele se prepara para a última parte de seu
pontificado. Pode ser que ele viva 100 anos (e que assim seja!). No entanto, é
provável que esse ‘resumão’ em torno de questões primordiais para ele,
não tenha sido articulado em vão.
Os
papados, na história, não necessariamente enfraquecem em sua última fase.
Francisco cresce. E terminará seu papado assim, em ascensão. A crise, para ele,
é um impulso para focar no concreto, no essencial. Outros papas, porém, se
concentraram em tratados doutrinais.
Paulo
VI viveu muitos anos após sua última encíclica, Humanae vitae (1968),
porém, minou sua popularidade depois dela. Francisco, ao contrário, pode,
através dessa sua ‘cartada final’, fazer justamente o contrário.
Portanto, reforço : ele lança as bases para uma conclusão honrosa.
Como
nós, Francisco faz as contas. A pandemia, de certa forma, redimensionou nossas
prioridades, despertou incertezas e nos fez desbravar o desconhecido. Não foi
diferente, certamente, para o atual líder da Igreja Católica. ‘Todos irmãos’
é um clamor para que ele, nem nós, não nos sintamos sozinhos. É um convite para
caminharmos, juntos, rumo à coroação de um pontificado que não só promove
mudanças, mas já é, por si só, a mudança. Recomecemos. Nosso mentor nessa
retomada em meio ao caos é Francisco. Ninguém solta a mão de ninguém. Nem a
dele.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1474870/2020/10/nova-enciclica-e-o-testamento-de-francisco/
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