*Artigo
de Padre Adroaldo Palaoro, Jesuíta
‘A tradição
judaica transmite este ensinamento : ‘Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer
antes uma oração de gratidão ou uma benção, comete uma injustiça’.
A ação de graças
está no coração mesmo da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade
do cristão consistem em poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um
ateu é não ter a Quem agradecer.
A pessoa
compreende que ‘tudo é dom e graça
de Deus’ e esquecer de agradecer é passar ao lado
daquilo que constitui a beleza da vida. Agradecer é muito mais que dar graças.
Implica reconhecimento e correspondência. ‘Ali onde não há gratidão, o
dom fica perdido’ (Bruno Forte).
Lucas situa o
relato no caminho de subida a Jerusalém, no limite entre Galileia e Samaria,
lugar chave de disputas religiosas. Os leprosos que saem ao encontro de Jesus e
gritam de longe pedindo-lhe que os cure, são dez. Significativamente, a lepra
não distingue entre judeus e gentios, galileus e samaritanos. Todos são irmãos
na miséria.
No relato podemos
identificar os mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de
curas : apresentação da situação de enfermidade (‘dez leprosos vieram ao seu encontro’), petição de cura (‘Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!’), intervenção de Jesus (‘Ide apresentar aos sacerdotes’), cura (‘enquanto
caminhavam, aconteceu que ficaram curados’) e reação diante do milagre.
É este último
elemento que está mais desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da
atitude de um dos leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com
a dos outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem
senão cumprir as instruções de Jesus : ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas
só um tem a suficiente finura espiritual para reconhecer profundamente o dom
recebido e, deixando de lado as prescrições legais, dá primazia à expressão de
agradecimento.
A gratidão parece
apresentar-se aqui como um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade
nas relações humanas e na vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente
minoritária (um entre dez).
O samaritano sente
que para ele começa uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente :
poderá viver de maneira mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa
encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do
samaritano que confia em Jesus, que crê no agradecimento mais que nas leis do
sistema religioso. O agradecimento como atitude vital parece requerer, pois,
uma especial sensibilidade espiritual, precisamente essa que encontramos nos
santos e santas.
Caberia
perguntar-nos quais são as razões que nos dificultam esta vivência da gratidão,
quando esta deveria brotar de modo espontâneo e natural frente a tanto bem
recebido.
No início de uma
carta de Santo Inácio a um de seus primeiros companheiros, Simão Rodrigues,
lemos isto : ‘À luz da divina
bondade me parece que, embora outros possam pensar de modo diferente, a
ingratidão é o mais abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor,
e de todas as criaturas capazes de aproveitar-se em sua divina e eterna glória.
Já que é esquecimento das graças, bens e bençãos recebidas; e além disso aqui
se encontra a causa e começo de todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a
gratidão que reconhece as bênçãos e bens recebidos é estimada e amada não só na
terra senão também no céu’ (18 de março – 1542).
Na vivência
cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações
humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou
retribuição. Tudo é gratuidade.
Elas adquirem a
fina percepção de que tudo é Graça, tudo é ‘de graça’, são ‘agraciadas’, ‘cheias de graça’... Precisamente porque perceberam suas vidas como um presente,
voltam-se para Deus, entregando-lhe ‘tudo o que têm e possuem’.
Marcada pela
gratidão, a pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo tipo de
mediocridade na entrega e no serviço.
O agradecimento é
uma atitude fundante e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro ‘sabor’, com outro ‘ar’. Do agradecimento brota um estado interior de consolação, de
disponibilidade, de agilidade em dar resposta às demandas da vida, de uma
sensibilidade mais viva para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de
dom e sem ansiedade por não receber compensações ou recompensas.
O agradecimento é
a experiência humana que mais ativa a generosidade como atitude vital de nossa
existência de criaturas amadas e presenteadas por Deus.
O agradecimento
como atitude básica na vida é a tomada de consciência daquilo que estamos
recebendo, a acolhida dos bens que nos são dados e das pessoas que nos vêm ao
encontro; é viver não tanto dependente daquilo que cremos que merecemos e não
nos dão, quanto daquilo que, sem haver merecido, nem esperado, nem pedido,
recebemos e continuamos recebendo no dia a dia.
Esse ‘agradecer’ de fundo, esse viver ‘agradecidamente’ não nos é favorecido pela
cultura consumista que nos incita a estar sempre mais dependentes daquilo que
não temos que daquilo que nos é dado com abundância; uma cultura que fomenta e
aviva uma eterna insatisfação, matando a capacidade de ‘recordar tantos benefícios
recebidos pela criação, redenção e dons particulares’ (S. Inácio).
O que é que se
encontra ‘de graça’? Onde? Quem pratica essa aventura da ‘mão aberta’, da largueza de coração? Há aqueles que não conhecem a palavra ‘gratuito’ e, por isso, são petrificados frente à gratidão. São surdos e
mudos para o ‘muito obrigado’.
A gratidão é
alegria, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que
seria como uma gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais
leve, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! Gratidão = desfrutar a
eternidade no cotidiano da vida.
Para meditar na oração
:
É importante
cuidar de nossa gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a
memória, a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo,
como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como
criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como
seguidores de Jesus, pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade.
Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito
marca nosso ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela
nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
- Diante d’Aquele
de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar
do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1086720/2016/10/gratidao-o-agradecimento-e-a-memoria-do-coracao/
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