terça-feira, 4 de outubro de 2016

Francisco de Assis - Uma vida sob o signo da travessia pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Francisco assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la.
 *Artigo de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor em Teologia Sistemática
pela Pontificia Università Antonianum, Roma.
  
‘Celebramos, hoje, em comunhão com a Igreja universal, a festa de São Francisco, o Poverello de Assis. A pluralidade das narrativas acerca da conversão de Francisco nos remete à peculiaridade de sua experiência e, portanto, à singularidade de sua pessoa. Quanto mais intensa, de fato, uma experiência, tanto mais ela fomenta uma variedade incontida de expressões. Surpreende-nos, todavia, o Poverello, ao eleger, no ocaso de sua vida, o abraço solidário e acolhedor do leproso como experiência crucial de sua conversão.

No imaginário judeu-cristão, a lepra ocupa bem mais do que outras doenças uma posição de relevo. No Primeiro e no Segundo Testamentos descortinam-se, diante de nossos olhos, variadas cenas envolvendo pessoas acometidas por esta doença. A lepra que acomete Naamã, o Sírio, é a mesma que atinge tantas pessoas que Jesus encontra no curso de seu ministério público. Lepra que corrói a carne e desfigura as feições, tornando-se estigma da exclusão e da morte.

Como é sabido, o tempo de Francisco é caracterizado por profundas e significativas mudanças e noto, portanto, como um período de grande instabilidade. A causar esta situação de instabilidade não são apenas as contínuas guerras; são também as doenças antigas e novas ocasionadas pelo fluxo contínuo de pessoas. O emergente comércio que vai se impondo graças ao progressivo esfacelamento do feudalismo provoca um significativo movimento migratório. E com ele, além das tão apreciadas especiarias, infestam a Europa, entre outros, ratos com suas pulgas hospedeiras dos germes da Peste Negra. Também as Cruzadas contribuem para o crescimento do fenômeno da migração. Os gloriosos cruzados partem para o Oriente investidos de uma incumbência messiânica : defender os lugares santos e, assim, propagarem a Cristandade. No entanto, por onde passam, espalham lepra, sífilis e outras doenças.

Em um estudo acurado sobre o surto de lepra na Idade Média, a pesquisadora e sanitarista estadunidense Jeanette Farrell, no seu A assustadora história das pestes e epidemias, lembra que, enquanto para os judeus a lepra implicava em impureza ritual, para os cristãos, ela se torna o estigma do pecado e da morte que pesa com gravidade sobre os ombros de seu portador. A tal propósito, ela menciona alguns exemplos que testemunham a existência de um ritual religioso de morte social destinado aos acometidos por esta enfermidade, ainda que não tivessem ainda morrido de fato. Segundo esse mesmo ritual, os leprosos eram queimados ou, em certos casos, enterrados vivos. Tais fatos se davam freqüentemente durante os reinados de Henrique II da Inglaterra (1154-1189), Filipe V da França (1285-1314) e de Eduardo I da Inglaterra (1272-1327).

 Como se pode ver, no tempo de Francisco, além de ser vítima do sofrimento físico e moral, o leproso encarna a expressão cabal do pecado e, portanto, da condenação divina. Por esta razão, a atitude de acolhida e de solidariedade que Francisco assume para com ele deve ser interpretada não apenas como expressão de sua compaixão humanitária. Ela encarna uma distinta maneira de se relacionar com o excluído e, conseqüentemente, com o mal e sua estigmatização religiosa, mediante o pecado.

Em seu Testamento, Francisco não deixa dúvidas de que o encontro com o leproso constitui uma autêntica ruptura em sua vida. E esta ruptura foi radical a ponto de assinalar de maneira indelével sua vida a partir de então. Esta experiência crucial é por ele mesmo descrita como ‘aquilo que parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo’ (Testamento, 3a). O que nos deixa, contudo, perplexos não é tanto que ele tenha abraçado o leproso e, mediante este gesto, se solidarizado com o pecador e o excluído, quando praticamente todos ostentavam razões, pretensamente legítimas, para justificar o rechaço e a exclusão.

O que mais chama a atenção é que, abraçando o leproso, ele se sente testemunha de um visceral processo de transformação : o que antes lhe parecia amargo, lhe se converte em doçura de alma e de corpo. Aqui se encontra propriamente o âmago da experiência de Francisco que a torna um evento singular : a ousadia de abraçar a morte, disposto a acordar nela as mais genuínas sementes de vida. Ou ainda, abraçar a expressão personificada da exclusão e do pecado como único caminho possível de salvação. Pois assim como a autêntica vida só pode brotar de uma generosa aceitação da morte, assim também só o pecado acolhido com amor pode transmutar-se em salvação. E esta experiência se torna decisiva, uma vez que ele mesmo atesta : ‘e, depois, demorei só um pouco, e abandonei o mundo’ (Testamento, 3b).

 Para nós que manifestamos tamanha habilidade em dissecar as realidades, individuando-as uma a uma, para depois separá-las chegando ao paroxismo de contrapô-las, esta lição se nos revela demasiadamente indigesta, posto ser paradoxal e absurda. Julgamos que morte e vida se encontram nos extremos de nossa existência a ponto de não se tocarem senão no derradeiro e inevitável instante. Qual impostora, a morte estaria sempre à espreita, para seqüestrar de maneira sorrateira, embora agressiva, nossa vida. Por esta razão é que buscamos construir nossa vida numa distância cada vez maior de toda e qualquer sombra de morte. Julgamos que a vida só pode vicejar desde que se afugente sempre mais a morte, esta figura assustadora com seus inúmeros e ameaçadores tentáculos.

O mesmo se diga com respeito à relação entre salvação e pecado. Quanto mais longe do pecado, mais próximo da salvação. Donde a compreensão de salvação como uma espécie de condição paradisíaca, ou de uma pureza asséptica e isenta de toda e qualquer contaminação, legitimadora de tantas ideologias discriminatórias. Pois, imbuídos, muitas vezes, da necessidade de se ter que fugir do pecado, nós nos surpreendemos justificando as mais sutis exclusões daqueles que julgamos acometidos pelo pecado e, portanto, disseminadores do mesmo.

Abraçando a instabilidade de seu tempo até suas últimas conseqüências, Francisco alcança uma peculiar intensidade em sua relação para com cada pessoa, cada criatura e cada instante de vida. E a motivação e força suficientes para não soçobrar em meio a esta árdua travessia, Francisco busca-as numa inserção cada vez profunda no mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Deixando-se inspirar pelo Espírito do Senhor Ressuscitado, Francisco persegue até o fim os passos de Jesus, estreitando cada vez mais seus laços de comunhão e de solidariedade para com Ele, numa fidelidade inaudita à vontade do Pai.

Segundo a expressão do apóstolo, ‘Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós’ (Gl 3,13). A salvação que Jesus nos procurou mediante o mistério de sua vida, paixão, morte e ressurreição não se resume a alguma coisa que Ele nos tenha trazido de fora de nossa existência conturbada e assinalada pelo pecado. Ele viveu em tudo nossa condição, reconstituindo os fios da trama de nossa existência, a partir de suas fibras mais íntimas, reconciliando-nos mediante uma eficácia sem precedentes, porque inusitada. Sorvendo até a última gota nossa existência intrinsecamente contraditória e ambígua, Ele a sanou eficazmente, por amor e com amor, transformando o veneno de nossa perversidade em antídoto contra o pecado.

É essa a razão pela qual o Apocalipse, que é um autêntico grito de esperança em meio a situações de perseguição e de morte, atribui a Cristo um dos títulos mais significativos do inteiro corpo literário do Segundo Testamento : ‘o Vivente’. Cristo não morre mais, porque a morte não representa mais ameaça alguma Àquele que a assumiu com amor, virando-a pelo avesso, para dela poder extrair vida e vida plena para todos. De fato, só emergindo, de forma paradoxal, dos escombros mais ameaçadores da morte é que a vida pode se considerar como tal.
Seguindo, portanto, as pegadas de Cristo para permanecer em comunhão com Ele, Francisco assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la. Ele alcança esta proeza – transformar o que antes lhe parecia amargo em autêntica doçura de alma e de corpo – graças a seu amor singelo e puro, autêntico e solidário, como o de Cristo. A peculiar ousadia com que o Poverello opera esta autêntica reconversão da morte em vida e do pecado em graça é, sem sombra de dúvida, a marca distintiva de seu processo de conversão e, ao fim e ao cabo, o diferencial de sua singularíssima experiência.’


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