*Artigo
de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
‘Celebramos, hoje,
em comunhão com a Igreja universal, a festa de São Francisco, o Poverello de
Assis. A pluralidade das narrativas acerca da conversão de Francisco nos remete
à peculiaridade de sua experiência e, portanto, à singularidade de sua pessoa.
Quanto mais intensa, de fato, uma experiência, tanto mais ela fomenta uma
variedade incontida de expressões. Surpreende-nos, todavia, o Poverello,
ao eleger, no ocaso de sua vida, o abraço solidário e acolhedor do leproso como
experiência crucial de sua conversão.
No imaginário
judeu-cristão, a lepra ocupa bem mais do que outras doenças uma posição de
relevo. No Primeiro e no Segundo Testamentos descortinam-se, diante de nossos
olhos, variadas cenas envolvendo pessoas acometidas por esta doença. A lepra
que acomete Naamã, o Sírio, é a mesma que atinge tantas pessoas que Jesus
encontra no curso de seu ministério público. Lepra que corrói a carne e desfigura
as feições, tornando-se estigma da exclusão e da morte.
Como é sabido, o
tempo de Francisco é caracterizado por profundas e significativas mudanças e
noto, portanto, como um período de grande instabilidade. A causar esta situação
de instabilidade não são apenas as contínuas guerras; são também as doenças
antigas e novas ocasionadas pelo fluxo contínuo de pessoas. O emergente
comércio que vai se impondo graças ao progressivo esfacelamento do feudalismo
provoca um significativo movimento migratório. E com ele, além das tão
apreciadas especiarias, infestam a Europa, entre outros, ratos com suas pulgas
hospedeiras dos germes da Peste Negra. Também as Cruzadas contribuem para o
crescimento do fenômeno da migração. Os gloriosos cruzados partem para o
Oriente investidos de uma incumbência messiânica : defender os lugares santos
e, assim, propagarem a Cristandade. No entanto, por onde passam, espalham
lepra, sífilis e outras doenças.
Em um estudo
acurado sobre o surto de lepra na Idade Média, a pesquisadora e sanitarista
estadunidense Jeanette Farrell, no seu A assustadora história das
pestes e epidemias, lembra que, enquanto para os judeus a lepra implicava
em impureza ritual, para os cristãos, ela se torna o estigma do pecado e da
morte que pesa com gravidade sobre os ombros de seu portador. A tal propósito,
ela menciona alguns exemplos que testemunham a existência de um ritual
religioso de morte social destinado aos acometidos por esta enfermidade, ainda
que não tivessem ainda morrido de fato. Segundo esse mesmo ritual, os leprosos
eram queimados ou, em certos casos, enterrados vivos. Tais fatos se davam
freqüentemente durante os reinados de Henrique II da Inglaterra (1154-1189),
Filipe V da França (1285-1314) e de Eduardo I da Inglaterra (1272-1327).
Como se pode
ver, no tempo de Francisco, além de ser vítima do sofrimento físico e moral, o
leproso encarna a expressão cabal do pecado e, portanto, da condenação divina.
Por esta razão, a atitude de acolhida e de solidariedade que Francisco assume
para com ele deve ser interpretada não apenas como expressão de sua compaixão
humanitária. Ela encarna uma distinta maneira de se relacionar com o excluído
e, conseqüentemente, com o mal e sua estigmatização religiosa, mediante o
pecado.
Em seu Testamento,
Francisco não deixa dúvidas de que o encontro com o leproso constitui uma
autêntica ruptura em sua vida. E esta ruptura foi radical a ponto de assinalar
de maneira indelével sua vida a partir de então. Esta experiência crucial é por
ele mesmo descrita como ‘aquilo que parecia
amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo’ (Testamento,
3a). O que nos deixa, contudo, perplexos não é tanto que ele tenha abraçado o
leproso e, mediante este gesto, se solidarizado com o pecador e o excluído,
quando praticamente todos ostentavam razões, pretensamente legítimas, para
justificar o rechaço e a exclusão.
O que mais chama a
atenção é que, abraçando o leproso, ele se sente testemunha de um visceral
processo de transformação : o que antes lhe parecia amargo, lhe se converte em
doçura de alma e de corpo. Aqui se encontra propriamente o âmago da experiência
de Francisco que a torna um evento singular : a ousadia de abraçar a morte,
disposto a acordar nela as mais genuínas sementes de vida. Ou ainda, abraçar a
expressão personificada da exclusão e do pecado como único caminho possível de
salvação. Pois assim como a autêntica vida só pode brotar de uma generosa
aceitação da morte, assim também só o pecado acolhido com amor pode
transmutar-se em salvação. E esta experiência se torna decisiva, uma vez que
ele mesmo atesta : ‘e, depois, demorei só
um pouco, e abandonei o mundo’ (Testamento, 3b).
Para nós que
manifestamos tamanha habilidade em dissecar as realidades, individuando-as uma
a uma, para depois separá-las chegando ao paroxismo de contrapô-las, esta lição
se nos revela demasiadamente indigesta, posto ser paradoxal e absurda. Julgamos
que morte e vida se encontram nos extremos de nossa existência a ponto de não
se tocarem senão no derradeiro e inevitável instante. Qual impostora, a morte estaria
sempre à espreita, para seqüestrar de maneira sorrateira, embora agressiva,
nossa vida. Por esta razão é que buscamos construir nossa vida numa distância
cada vez maior de toda e qualquer sombra de morte. Julgamos que a vida só pode
vicejar desde que se afugente sempre mais a morte, esta figura assustadora com
seus inúmeros e ameaçadores tentáculos.
O mesmo se diga
com respeito à relação entre salvação e pecado. Quanto mais longe do pecado,
mais próximo da salvação. Donde a compreensão de salvação como uma espécie de
condição paradisíaca, ou de uma pureza asséptica e isenta de toda e qualquer
contaminação, legitimadora de tantas ideologias discriminatórias. Pois,
imbuídos, muitas vezes, da necessidade de se ter que fugir do pecado, nós nos
surpreendemos justificando as mais sutis exclusões daqueles que julgamos
acometidos pelo pecado e, portanto, disseminadores do mesmo.
Abraçando a
instabilidade de seu tempo até suas últimas conseqüências, Francisco alcança
uma peculiar intensidade em sua relação para com cada pessoa, cada criatura e
cada instante de vida. E a motivação e força suficientes para não soçobrar em
meio a esta árdua travessia, Francisco busca-as numa inserção cada vez profunda
no mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Deixando-se
inspirar pelo Espírito do Senhor Ressuscitado, Francisco persegue até o fim os
passos de Jesus, estreitando cada vez mais seus laços de comunhão e de
solidariedade para com Ele, numa fidelidade inaudita à vontade do Pai.
Segundo a
expressão do apóstolo, ‘Cristo
resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós’ (Gl 3,13). A
salvação que Jesus nos procurou mediante o mistério de sua vida, paixão, morte
e ressurreição não se resume a alguma coisa que Ele nos tenha trazido de fora
de nossa existência conturbada e assinalada pelo pecado. Ele viveu em tudo
nossa condição, reconstituindo os fios da trama de nossa existência, a partir
de suas fibras mais íntimas, reconciliando-nos mediante uma eficácia sem
precedentes, porque inusitada. Sorvendo até a última gota nossa existência
intrinsecamente contraditória e ambígua, Ele a sanou eficazmente, por amor e
com amor, transformando o veneno de nossa perversidade em antídoto contra o
pecado.
É essa a razão
pela qual o Apocalipse, que é um autêntico grito de esperança em
meio a situações de perseguição e de morte, atribui a Cristo um dos títulos
mais significativos do inteiro corpo literário do Segundo Testamento : ‘o Vivente’. Cristo não morre mais,
porque a morte não representa mais ameaça alguma Àquele que a assumiu com amor,
virando-a pelo avesso, para dela poder extrair vida e vida plena para todos. De
fato, só emergindo, de forma paradoxal, dos escombros mais ameaçadores da morte
é que a vida pode se considerar como tal.
Seguindo,
portanto, as pegadas de Cristo para permanecer em comunhão com Ele, Francisco
assume a morte, com uma intensidade tal, a ponto de desarmá-la. Ele alcança
esta proeza – transformar o que antes lhe parecia amargo em autêntica doçura de
alma e de corpo – graças a seu amor singelo e puro, autêntico e solidário, como
o de Cristo. A peculiar ousadia com que o Poverello opera esta
autêntica reconversão da morte em vida e do pecado em graça é, sem sombra de
dúvida, a marca distintiva de seu processo de conversão e, ao fim e ao cabo, o
diferencial de sua singularíssima experiência.’
Fonte :
Nenhum comentário:
Postar um comentário