*Artigo
de Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM,
doutor
em Teologia Sistemática
pela
Pontificia Università Antonianum, Roma.
‘Corpo e alma
testemunham, em última instância, uma dualidade que tem caracterizado o ser
humano desde suas experiências mais arcaicas. Esta dualidade aparece em todos
os mitos fundadores das mais diversas culturas e tradições religiosas. O relato
judeu-cristão da criação narra nossa origem como sendo do barro da terra e do
sopro divino : modelados do barro por mãos de oleiro, fomos despertados pelo
hálito vivificador do Criador (cf. Gn 2,7). Somos, portanto, mais do que
órgãos, vísceras, fluidos e funções. Somos mais do que mentes em busca de si
mesmas. Somos, na realidade, fruto de uma singular complexidade : uma dualidade
vivificada por um Sopro.
Os egípcios
narravam a origem do ser humano a partir do barro e da delicadeza do
Inominável. Contam eles que, depois de ter feito o homem do barro, o deus
oleiro Chnum incumbira Maat, a deusa da ternura, de apresentá-lo a Osíris, o
deus altíssimo. A caminho do trono da Trindade Suprema, Maat comovida diante da
beleza do boneco de barro que carregava em seus braços, não se conteve e
lágrimas caíram de seus olhos sobre o peito do homem que, improvisamente,
começou a respirar e a se mover, ali, nos seus braços.
Os mitos são
expressão de uma experiência indizível que irrompe em meio às mais arcaicas
raízes do ser humano. É uma tentativa de verbalizar aquelas experiências que
jamais serão completamente esgotadas na mediação da linguagem. Por isso, os
mitos exprimem um dizer que narra com discrição e reverência a parábola do ser
humano como alguém distendido entre seu ser aí no mundo e seu desejo infinito
de transcendência que o projeta para além de todo circunscrito, dado e
estabelecido. Trata-se da experiência humana em sua intrínseca dimensão
paradoxal. Ao mesmo tempo em que nos sentimos encerrados no mundo, também nos
descobrimos como projetados para além de nós mesmos e do próprio mundo em que
vivemos. Somos imanentes e, ao mesmo tempo, transcendentes.
Experimentamo-nos,
por um verso, como seres lançados no mundo, em meio a outros seres, e nossa
vida circunscrita entre as coordenadas de espaço e tempo. Os limites de nosso
mundo coincidem com os intervalos de nossas circunstâncias. Não se pode fugir
desse mundo, ele é o espaço de nossa frustração ou de nossa realização. O mundo
é a casa da nossa imanência. Não necessariamente é experimentado como nossa
prisão. O mundo em que vivemos é, na verdade, a condição da possibilidade de
nossa concreção e encarnação. E pode sempre ser descoberto como espaço de uma
aventura fascinante. Não há como não se admirar face ao inusitado e ao
corriqueiro da vida e dos seres que nos rodeiam. Redescobri-la a cada dia como
espaço do amor e da gratuidade pode descortinar fecundos projetos de
criatividade e de realização humanas.
Por outro verso,
sentimo-nos constantemente destinados a ultrapassar o mundo em que vivemos. Somos
impregnados por um sentimento de ausência e de insatisfação que não significa
descontentamento com o que aí está, mas que sinaliza para a dimensão que nos
constitui enquanto seres destinados a ser-para. Sentimos o palpitar no mais
íntimo de nós de uma misteriosa ausência ou de uma nostalgia do futuro ainda
por ser indagado e construído. Embora vivamos bem e sintamos este mundo como
nossa casa, ronda-nos perenemente a sensação de nos sentirmos deslocados, sem
lugar, errantes e inquietos buscando algo a mais : expectativas? Saudades?
Sonhos?
Esta dualidade
aflora em nossa fala mediante uma série de binômios: imanente e transcendente,
alma e corpo, matéria e espírito, visibilidade e invisibilidade, físico e
metafísico. Enquanto os mitos dizem dessa dualidade de forma a integrá-la no
bojo de uma circularidade recíproca e complementar, nossas explicações
contaminadas pela abstração do logos cindem esta dualidade em dois
compartimentos estanques. Esta cisão é responsável, em última instância, pela
série de dualismos que têm caracterizado nossa experiência cultural no
Ocidente.
Gabriel Marcel se
refere à corporeidade como sendo uma espécie de ‘zona de fronteira entre o ser e o ter’. Ele caracteriza a
corporeidade como zona de fronteira porque acredita que ela não seja
identificável sem mais nem com o ‘Eu sou
meu corpo’ nem com o ‘Eu tenho o meu
corpo’. No primeiro caso, estaríamos diante de uma leitura materialista do
real e, no segundo, de fronte a uma leitura espiritualista do mesmo. É preciso
evitar a todo custo toda sorte de separação e contraposição, fruto do dualismo
gnóstico que ronda continuamente a experiência cristã. Este dualismo têm se
revelado como danoso a julgar pelas dramáticas conseqüências para a compreensão
de nós mesmos, do mundo, da história e da complexidade do cosmos.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.domtotal.com/noticia/1087834/2016/10/corpo-e-alma-dualidade-ameacada-pelo-dualismo/
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