domingo, 28 de fevereiro de 2016

Conversão, Penitência e Misericórdia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano de Belém, PA


Chegaram algumas pessoas trazendo a Jesus notícias a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando o sangue deles com o dos sacrifícios que ofereciam. Ele lhes respondeu : ‘Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que qualquer outro galileu, por terem sofrido tal coisa? Digo-vos que não. Mas se vós não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito que morreram quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que qualquer outro morador de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo’’ (Lc 13, 1-15).

Alguém pode até pensar que se trata de crônica policial, com fatos hoje corriqueiros e incapazes de nos assustar, tal a frequência de massacres, violência e acidentes! Mas aqui se trata de uma proposta séria de reação inteligente, baseada na fé, diante dos acontecimentos. Não dá para passar ao largo de todas as muitas provocações vindas do dia a dia, sem acolher a misteriosa e efetiva mensagem que Deus quer efetivamente oferecer-nos, exigindo nossa reação. Deus nos fala continuamente e pede sempre o mesmo, a conversão, palavrinha provocante que significa mudar de mentalidade e de rota!

Mudar de mentalidade! A Campanha da Fraternidade em curso remete os cristãos que dela participam e apela a todas as pessoas de boa vontade para o cuidado com a nossa casa comum, a partir do intrigante tema do saneamento básico. Impressiona o fato de que se torna necessário que os responsáveis pela vida eclesiástica tenham que vir a público, quase a suplicar que alguém se desperte e tome providências efetivas quanto ao cuidado com a água, o recolhimento do lixo, o esgoto sanitário e daí por diante! São elementos tão ‘escondidos’ até debaixo da terra, cujo cuidado já deveria ser dado por descontado pela cidadania e pelos responsáveis pela administração pública! Só que a mente precisa ser mudada para que as ações a ela correspondam. O bem dos outros e o bem comum, no qual cada um de nós está incluído, há de passar na frente do escandaloso prazer de sujar ruas e praças ou desperdiçar água, ou ainda destruir o patrimônio público! Mais ainda, há de mudar a banalização da vida, vilipendiada e destruída diante dos olhos de todos.

Podemos ir mais a fundo na questão, com a coragem de perguntar ao conjunto da sociedade a respeito dos motivos para tanta inversão de valores! É que começamos a plantar há muito tempo. Quando Deus deixa de ser o centro e o polo de referência, todo o resto desmorona. O ser humano, a natureza ou qualquer outro ideal, jogam fora o próprio sentido, quando Deus é excluído! Não somos fruto do acaso! Quando a humanidade ‘escolheu o acaso’, gerou o individualismo, espalhou-se como relativismo, confundiu as peças do tabuleiro da sociedade e da vida! Reconstruir tudo, ajuntando os cacos já está dando trabalho e pedirá muito esforço do conjunto da sociedade.

A Palavra de Deus e a experiência sofrida e maravilhosa dos cristãos suscitaram alguns passos. É incrível, mas começa quando paramos, tomamos consciência de nossos inúmeros erros, temos a coragem de reconhecê-los como ‘pecados’, descobrimos que prejudicar os outros ou a própria vida e ainda a natureza toca na raiz de nossa existência! E lá vai o pecador, arrependido e suplicante, corajoso para se enrubescer de vergonha no confessionário, pedir perdão e sair disposto a recomeçar pela enésima vez, levantar a cabeça e melhorar! Vem da sabedoria do Papa Francisco uma magnífica palavra : ‘A confissão não deve ser uma tortura. Todos devem sair da confissão com a alegria no coração, com o rosto radiante de esperança, mesmo se às vezes, como sabemos, molhado pelas lágrimas da conversão e da alegria’. Sim, o mundo já mudou para melhor quando alguém começou a ser diferente!

Saindo dos muitos confessionários à disposição, trata-se de mudar a rota! Começar a amar o próximo que está ao nosso redor, tratar os bens da natureza com maior carinho, privilegiar o bem que é feito, diminuir a amargura com a qual se comentam os fatos da sociedade, fazer menos propaganda dos crimes correntes, relatar experiências positivas, participar de iniciativas comunitárias, quem sabe reaprender a sorrir e cumprimentar com maior delicadeza, fazer-se um com os outros, sem pretender justificar as opções egoístas de quem quer ficar ‘na sua’ e ainda afirma que ninguém tem nada com isso!

A quem considera irreais tais propostas, aqui está o resto da conversa de Jesus, por sinal à disposição dos interessados nas missas do terceiro domingo da Quaresma. Vale a pena acolhê-la e ainda ir à missa para ouvir a Boa Nova proclamada e celebrada na Igreja : ‘Jesus contou esta parábola : ‘Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi lá procurar figos e não encontrou’. Então disse ao agricultor : ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Para que está ocupando inutilmente a terra?’ Ele, porém, respondeu :  ‘Senhor, deixa-a ainda este ano. Vou cavar em volta e pôr adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então a cortarás’’ (Lc 13, 6-9). O tempo não perdoa quem não o respeita! Há que aproveitá-lo e transformá-lo em oportunidade de salvação. Não desperdiçar a paciência de Deus, que oferece de tudo para o nosso crescimento e a conversão. Fazer penitência para afofar a terra de nosso coração, acreditar nas graças que são oferecidas! Temos tempo!

Há poucos dias, em Ciudad Juarez, no México, o Papa Francisco, referindo-se é pregação do profeta em Nínive, assim se expressou : ‘Jonas ajudou a ver, a tomar consciência. Que se passa depois? O seu apelo encontra homens e mulheres capazes de se arrependerem, capazes de chorar : deplorar a injustiça, deplorar a degradação, deplorar a opressão. São as lágrimas que podem abrir o caminho à transformação; são as lágrimas que podem abrandar o coração, são as lágrimas que podem purificar o olhar e ajudar a ver a espiral de pecado em que muitas vezes se está enredado. São as lágrimas que conseguem sensibilizar o olhar e a atitude endurecida, e sobretudo adormecida, perante o sofrimento alheio. São as lágrimas que podem gerar uma ruptura capaz de nos abrir à conversão. Foi assim com Pedro, depois de ter renegado Jesus; chorou e as lágrimas abriram-lhe o coração. Hoje esta palavra ressoa vigorosamente no meio de nós; esta palavra é a voz que clama no deserto e nos convida à conversão. Neste Ano da Misericórdia, quero implorar convosco neste lugar a misericórdia divina, quero pedir convosco o dom das lágrimas, o dom da conversão’. Pedindo o dom da conversão, deixemo-nos envolver com o manto da misericórdia!’


Fonte :
* Artigo na íntegra


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

'Acolham a Palavra semeada em vós' - Segunda pregação da Quaresma de 2016

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)


Reflexão sobre a Constituição Conciliar Dogmática 
Dei Verbum, principalmente no que diz respeito 
à prática e à meditação pessoal.


‘Continuamos a nossa reflexão sobre os principais documentos do Vaticano II. Das quatro ‘constituições’ aprovadas, a que se refere à Palavra de Deus, a Dei verbum, é a única, junto com aquela sobre a Igreja, a Lumen gentium, a ter o status de ‘dogmática’. Isto se explica com o fato de que com este texto o Concílio pretendia reafirmar o dogma da inspiração divina da Escritura e esclarecer, ao mesmo tempo, a sua relação com a tradição. Fiel à tentativa de iluminar os aspectos mais estritamente espirituais e edificantes dos textos conciliares, limitar-me-ei, também aqui, a algumas reflexões voltadas à prática e à meditação pessoal.

1. Um Deus que fala

O Deus bíblico é um Deus que fala. ‘Fala o Senhor, Deus dos deuses... não está em silêncio’, diz o Salmo (Sl 50, 1-3). O próprio Deus repete inúmeras vezes na Bíblia : ‘Ouve, ó meu povo, quero falar’ (Sl 50, 7). Nisso a Bíblia vê a diferença mais clara com os ídolos que ‘têm boca, mas não falam’ (Sl 115, 5). Deus usou a palavra para comunicar-se com as criaturas humanas.

Mas qual significado devemos dar a expressões tão antropomórficas como : ‘Deus disse a Adão’, ‘assim fala o Senhor’, ‘disse o Senhor’, ‘oráculo do Senhor’, e outras coisas semelhantes? Trata-se evidentemente de um falar diferente do humano, um falar aos ouvidos do coração. Deus fala como escreve! ‘Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei em seu coração’, diz no profeta Jeremias (Jr 31, 33).

Deus não tem boca e respiração humana : a sua boca é o profeta, a sua respiração o Espírito Santo. ‘Tu serás a minha boca’ diz Ele mesmo aos seus profetas, ou também ‘porei a minha palavra nos teus lábios’. É o significado da famosa frase : ‘Movidos pelo Espírito Santo falaram aqueles homens da parte de Deus’ (2 Pd 1, 21). A expressão ‘locuções interiores’, com a qual definimos o falar direto de Deus de certas almas místicas, aplica-se, de certo modo qualitativamente diferente e superior, também ao falar de Deus aos profetas na Bíblia. No entanto, é concebível que, em alguns casos, como no Batismo e da Transfiguração de Jesus, tem sido uma voz que soava milagrosamente mesmo fora.

De qualquer maneira, trata-se de um falar no verdadeiro sentido do termo; a criatura recebe uma mensagem que pode traduzir em palavras humanas. É tão vívido e real o falar de Deus que o profeta recorda com precisão o lugar e o momento em que uma determinada palavra ‘veio’ sobre ele : ‘No ano em que morreu o rei Uzias’ (Is 6, 1), ‘‘No trigésimo ano, no quinto dia do quarto mês, quando me encontrava entre os exilados, junto ao rio Cobar’ (Ez 1, 1), ‘no segundo ano do rei Dario, no sexto mês, no primeiro dia do mês’ (Ageu 1, 1). Assim de concreta é a palavra de Deus da qual se diz que ‘cai’ sobre Israel, como se fosse uma pedra : ‘O Senhor enviou uma palavra a Jacó, ela caiu em Israel’ (Is 9, 7). Outras vezes a mesma concretude e materialidade é expressa com o símbolo não da pedra que golpeia, mas do pão que se come com prazer : ‘Quando se apresentavam palavras tuas, as devorava : tuas palavras eram para mim contentamento e alegria de meu coração’ (Jer 15, 16; cf também Ez 3, 1-3).

Nenhuma voz humana atinge o homem com a profundidade com a qual atinge-o a palavra de Deus. Essa ‘penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração’ (Hb 4, 12). Às vezes o falar de Deus é ‘um trovão poderoso que quebra os cedros do Líbano’ (Sl 29, 5), outras vezes se assemelha ao ‘murmúrio de uma brisa suave’ (1 Reis 19, 12). Conhece todos os tons da fala humana.

O discurso sobre a natureza do falar de Deus muda radicalmente no momento em que se lê na Escritura a frase : ‘A palavra se fez carne’ (Jo 1, 14). Com a vinda de Cristo, Deus fala também com voz humana, audível com os ouvidos também do corpo. ‘O que era desde o princípio, o que nós ouvimos, o que nós vimos com os nossos olhos, o que nós contemplamos e o que as nossas mãos tocaram, ou seja, o Verbo da vida [...] nós o anunciamos também a vós’ (1 Jo 1, 1).

O Verbo foi visto e ouvido! Entretanto, o que se ouve não é palavra de homem, mas palavra de Deus porque quem fala não é a natureza, mas a pessoa, e a pessoa de Cristo é a mesma pessoa divina do Filho de Deus. Nele Deus não nos fala mais por um intermediário, ‘por meio dos profetas’, mas pessoalmente, porque Cristo é ‘a irradiação da sua substância’ (cf. Hb 1, 2). Ao discurso indireto, na terceira pessoa, substitui-se o discurso direto, em primeira pessoa. Não mais ‘Assim fala o Senhor!’ ou ‘Oráculo do Senhor!’, mas ‘Eu vos digo!’.

O falar de Deus, tanto o mediado pelos profetas do Antigo Testamento, quanto o novo e direto de Cristo, depois de ter sido transmitido oralmente, acabou sendo colocado por escrito, e, assim, temos as divinas ‘Escrituras’.

Santo Agostinho define o sacramento ‘uma palavra que se vê’ (verbum visibile [1]); não podemos definir a palavra ‘um sacramento que se ouve’. Em todo o sacramento se distingue um sinal visível e a realidade invisível que é a graça. A palavra que lemos na Bíblia, em si mesma, é um sinal material, como a água no Batismo e o pão na Eucaristia, uma palavra do vocabulário humano, não diferentes das outras. Mas, falando da fé e da iluminação do Espírito Santo, através desse sinal, entramos misteriosamente em contato com a verdade viva e vontade de Deus e ouvimos a própria voz de Cristo.

O corpo de Cristo – escreve Bossuet – não está mais realmente presente no adorável sacramento do que quanto a verdade de Cristo está na pregação evangélica. No mistério da Eucaristia as espécies que vês são sinais, mas o que nelas se encerra é o próprio corpo de Cristo; na Escritura, as palavras que ouvis são sinais, mas o pensamento que vos dão é a própria verdade do Filho de Deus [2]

A sacramentalidade da Palavra de Deus se revela no fato de que às vezes obra claramente além da compreensão da pessoa que pode ser limitada e imperfeita; obra quase por si mesma, ex opere operato, como se diz, dos sacramentos. Na Igreja houve e haverá livros mais edificantes do que alguns da Bíblia (basta pensar na Imitação de Cristo); mas, nenhum deles obra como obra o mais modesto dos livros inspirados.

Ouvi uma pessoa dar este testemunho em um programa de televisão do qual eu também participei. Era um alcoólatra no último estágio; não conseguia ficar mais de duas horas sem beber; a família estava à beira do desespero. Convidaram-no, junto com sua esposa, para participar de um encontro sobre a palavra de Deus. Lá alguém leu uma passagem da Escritura. Uma frase atravessou-lhe como uma chama de fogo, e deu-lhe a certeza de estar curado. Depois, toda vez que sentia a tentação de beber, corria para a Bíblia naquele ponto e só ao ler as palavras sentia a força voltar nele, até que conseguiu ficar totalmente curado.

Quando quis dizer qual era aquela famosa frase, a voz ficou entrecortada pela emoção. Era a palavra do Cântico dos Cânticos : ‘Teus amores são melhores do que o vinho’ (Ct 1, 2). Os estudiosos teriam feito careta diante desta aplicação, mas aquele homem podia dizer : ‘Eu estava morto e agora voltei à vida’, como o cego de nascença dizia aos seus críticos : ‘Eu era cego, agora vejo’ (Jo 9, 10 ss.).

Uma coisa semelhante aconteceu também com Santo Agostinho. No auge da sua luta pela castidade, ouviu uma voz que repetia : ‘Tolle, lege!’, toma e lê. Tendo consigo as cartas de São Paulo, abriu o livro decidido a tomar como vontade de Deus o primeiro texto que aparecesse. Era Rm 13,13ss : ‘Como de dia, andemos decentemente; não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes...’. ‘Não quis ler mais – escreve nas Confissões – nem precisava. Terminada a leitura desta frase, uma luz, quase de certeza, penetrou no meu coração e todas as trevas da dúvida se dissiparam [3]’.

2. A lectio divina

Após estas observações sobre a palavra de Deus em geral, quero concentrar-se na palavra de Deus como caminho de santificação pessoal. ‘É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus – diz a Dei Verbum – que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual [4]’.

A partir do cartuxo Guigo II [5], vários métodos e esquemas foram propostos para a lectio divina. Porém, eles têm a desvantagem de serem concebidos quase sempre em função da vida monástica e contemplativa, e, portanto, inadequados para o nosso tempo, em que a leitura pessoal da Palavra de Deus é recomendada a todos os crentes, religiosos e leigos.

Felizmente, a própria Escritura nos propõe um método de leitura da Bíblia acessível a todos. Na Carta de São Tiago (Tg 1, 18-25) lemos um famoso texto sobre a Palavra de Deus. Dele tiramos um esquema de lectio divina, que tem três etapas ou operações sucessivas : acolher a palavra, meditar a palavra, colocar em prática a palavra. Reflitamos sobre cada um deles.

a. Acolher a Palavra

O primeiro passo é a escuta da Palavra : ‘Acolham com docilidade, diz o apóstolo, a Palavra que foi semeada em vós’. Esta primeira etapa abraça todas as formas e os modos com que o cristão entra em contato com a palavra de Deus : escuta da Palavra na liturgia, escolas bíblicas, subsídios escritos e – insubstituível – a leitura pessoal da Bíblia.

O sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil. 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras [...] Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja [6]’.

Nesta fase devemos tomar cuidado com dois perigos. O primeiro é o de parar no primeiro estágio e de transformar a leitura pessoal da palavra de Deus em uma leitura impessoal. Este perigo é muito forte, especialmente nos lugares de formação acadêmica. Se alguém espera deixar-se interpelar pessoalmente pela Palavra – observar Kierkegaard – até que não resolva todos os problemas conectados com o texto, as variantes e as divergências de opinião dos estudiosos, nunca terminará qualquer coisa. A palavra de Deus foi dada para que a pratiques e não para que te exercites na exegese dos seus pontos obscuros [7].  Não são os pontos obscuros da Bíblia, dizia o mesmo filósofo, que me dão medo; são os seus pontos claros!

São Tiago compara a leitura da palavra de Deus com um olhar-se no espelho; mas quem se limita a estudar as fontes, as variantes, os gêneros literários da Bíblia, sem fazer outra coisa, é semelhante a alguém que passa todo o tempo a olhar o espelho – examinando a sua forma, o material, o estilo, a época – , sem nunca olhar-se no espelho. Para essa pessoa o espelho não executa a própria função. O estudo crítico da palavra de Deus é indispensável e nunca se é suficientemente grato àqueles que gastam as suas vidas para pavimentar o caminho para uma cada vez melhor compreensão do texto sagrado, mas isso não esgota por si só o sentido das Escrituras; é necessário, mas não suficiente.

O outro perigo é o fundamentalismo : o tomar tudo o que se lê na Bíblia literalmente, sem qualquer mediação hermenêutica. Só aparentemente os dois extremos, do hipercriticismo e do fundamentalismo, são opostos : eles têm em comum o fato de pararem na letra, descuidando o Espírito.

Com a parábola da semente e do semeador (Lc 8, 5-15), Jesus nos oferece uma ajuda para descobrir onde estamos, cada um de nós, em termos de acolhimento da Palavra de Deus. Ele distingue quatro tipos de terreno : o caminho, o terreno pedregoso, os espinhos e a terra boa. Explica, portanto, o que simbolizam os diferentes terrenos : o caminho são aqueles sobre os quais a palavra de Deus não consegue nem repousar; o terreno pedregoso, os superficiais e os inconstantes que ouvem talvez com alegria, mas não dão à palavra a possibilidade de criar raízes; o terreno cheio de espinhos, aqueles que se deixam sufocar pelas preocupações e prazeres da vida; a terra boa são os que ouvem e dão fruto com perseverança.

Lendo, nós podemos ser tentados a olhar com pressa para as três primeiras categorias, esperando chegar à quarta que, mesmo com todas as limitações, pensamos que seja o nosso caso. Na verdade – e aqui está a surpresa – a terra boa são aqueles que, sem esforço, reconhecem-se em cada uma das três categorias anteriores! Aqueles que humildemente reconhecem quantas vezes ouviram distraidamente, quantas vezes foram inconstantes nos propósitos suscitados neles pela escuta de uma palavra do Evangelho, quantas vezes se deixaram levar pelo ativismo e pelas preocupações materiais. Eis que eles involuntariamente estão se tornando a verdadeira terra boa. Que o Senhor nos conceda sermos, também nós, do seu número!

Sobre o dever de acolher a palavra de Deus e de não deixar nenhuma cair no vazio, ouçamos a exortação que dava aos cristãos do seu tempo um dos maiores estudiosos da Palavra de Deus, o escritor Orígenes :

Vós que frequentemente tomais parte dos divinos mistérios, quando recebais o corpo do Senhor conservem-no com todo cuidado e toda veneração para que nem sequer uma migalha caia no chão, para que nada se perca do dom consagrado. Estais convencidos, com razão, de que é uma culpa deixar cair fragmentos por descuido. Se para conservar o seu corpo tendes tanto cuidado – e é correto que assim seja – , saibais que descuidar a palavra de Deus não é culpa menor do que descuidar o seu corpo [8]’.

b. Contemplar a Palavra

O segundo passo sugerido por São Tiago consiste no ‘fixar o olhar’ na palavra, no estar por muito tempo diante do espelho, em suma, na meditação ou contemplação da Palavra. Os Padres usavam a este respeito as imagens do mastigar e do ruminar. ‘A leitura – escrevia Guigo II – oferece à boca um alimento substancial, a meditação o mastiga e o tritura [9]’. ‘Quando se procura na memória as coisas ouvidas e docemente são repensadas no coração, torna-se semelhante ao ruminante’, diz Santo Agostinho [10].

A alma que se olha no espelho da palavra aprende a conhecer ‘como é,’ aprende a conhecer a si mesma, descobre suas diferenças em relação à imagem de Deus e a imagem de Cristo. ‘Eu não busco a minha glória’, diz Jesus (Jo 8, 50) : eis que o espelho está na sua frente e imediatamente você vê o quão distante está de Jesus se busca a sua glória; ‘Bem-aventurados os pobres em espírito’ : o espelho está de novo na sua frente e imediatamente lhe descobre ainda cheio de apegos e cheio de coisas supérfluas, cheio, especialmente, de si mesmo; ‘a caridade é paciente...’ e você se dá conta do quão é impaciente, invejoso, interessado. Mais do que’escrutar a Escritura’ (cf. Jo 5, 39), trata-se de deixar-se escrutar pela Escritura.

Pois a Palavra de Deus – diz a Carta aos Hebreus – é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença’ (Hb 4, 12-13).

No espelho da Palavra, felizmente, não vemos apenas a nós mesmos e a nossa deformidade; vemos, antes de mais nada, o rosto de Deus; melhor, vemos o coração de Deus. A Escritura, diz São Gregório Magno, é ‘uma carta de Deus onipotente à sua criatura; nela se aprende a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus [11]’. Também para Deus vale o ditado de Jesus : ‘A boca fala do que está cheio o coração’ (Mt 12, 34); Deus nos falou, na Escritura, do que está cheio o coração, isto é, do amor. Todas as Escrituras foram escritas para esta finalidade : que o homem pudesse entender o quanto Deus o ama, e compreendesse isso para abrasar-se do amor à ele [12]. O ano jubilar da misericórdia é uma ocasião magnífica para reler toda a Escritura deste ângulo, como a história das misericórdias de Deus.

c. Praticar a Palavra

Chegamos, assim, à terceira fase do caminho proposto pelo apóstolo Tiago : ‘Sejam daqueles que praticam a palavra..., quem a pratica, encontrará a sua felicidade no pratica-la... se alguém só escuta e não coloca em prática a palavra, se assemelha a um homem que observa o próprio rosto em um espelho : depois de olhar, vai embora, e rapidamente esquece como era’.
Isso é também o que mais está no coração de Jesus : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática’ (Lc 8, 21). Sem este ‘praticar a Palavra’, todo o resto é ilusão, construção na areia (Mt 7, 26). Nem sequer pode-se dizer que se compreendeu a Palavra porque, como escreve São Gregório Magno, a palavra de Deus se compreende realmente só quando começa a ser praticada [13].

Esta terceira etapa consiste, na prática, na obediência à Palavra. As palavras de Deus, sob a ação atual do Espírito, se tornam expressão da viva vontade de Deus para mim, em um dado momento. Se escutamos com atenção, nos daremos conta com surpresa de que não há dia sequer em que na liturgia, na recitação de um salmo, ou em outros momentos, não descobrimos uma palavra da qual devemos dizer : ‘Isso é para mim! Isso é o que devo fazer hoje!’.

 A obediência à palavra de Deus é a obediência que podemos fazer sempre. Obediência a ordens e autoridades visíveis, acontece só de vez em quando, três ou quatro vezes em toda a vida, caso sejam obediências sérias; mas de obediências à palavra de Deus é possível fazer uma a cada momento. É também a obediência que podemos fazer todos, súditos e superiores. Santo Inácio de Antioquia dava este maravilhoso conselho a um colega seu no episcopado : ‘Que nada se faça sem o teu consentimento, mas, tu, nada faças sem o consentimento de Deus [14]’.

Obedecer à Palavra de Deus significa, na prática, seguir as boas inspirações. O nosso programa espiritual depende em grande parte da sensibilidade às boas inspirações e da prontidão com que respondemos a elas. Uma palavra de Deus te sugeriu um propósito, colocou no teu coração o desejo de uma boa confissão, de uma reconciliação, de um ato de caridade; te convida a parar um momento o trabalho e dirigir a Deus um ato de amor. Não coloque trava; não deixe passar. ‘Timeo Iesum transeuntem’, dizia o próprio Agostinho [15]; como dizendo : ‘Tenho medo da sua boa inspiração que passa e não volta mais’.

Terminamos com o pensamento de um antigo Padre do deserto [16]. A nossa mente, dizia, é como um moinho; o primeiro grão que é colocado na manhã é o que continua a moer durante todo o dia. Apressemo-nos, portanto, a colocar neste moinho, desde o primeiro momento da manhã, o bom grão da palavra de Deus, senão, vem o demônio e coloca a erva daninha que durante todo o dia fará a moedura. A palavra particular que colocamos hoje no moinho da nossa mente é o proposto como lema do ano jubilar : ‘Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso’’.

Fonte :
*Artigo na íntegra
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[1] Santo Agostino, Tratados sobre o Evangelho de João, 80, 3.
[2] J.B. Bossuet, Sur la parole de Dieu, in Œuvres oratoires de Bossuet, III, Desclée de Brouwer, Paris 1927, p. 627.
[3] Santo Agostinho, Confissões, VIII, 29.
[4] Dei Verbum, n. 21.
[5] Guigo II, Lettera sulla vita contemplativa (Scala claustralium), 3, in Un itinerario di contemplazione. Antologia di autori certosini, Edizioni Paoline, Milano 1986, p. 22
[6] Dei Verbum, n. 25.
[7] S. Kierkegaard, Per l’esame di se stessi. La Lettera di Giacomo, 1, 22, in Opere, a cura di C. Fabro, cit., pp. 909 ss.
[8] Orígenes, In Exod. hom. XIII, 3.
[9] Guigo II, Lettera sulla vita contemplativa (Scala claustralium), 3, in Un itinerario di contemplazione. Antologia di autori certosini, Edizioni Paoline, Milano 1986, p. 22.
[10] Santo Agostinho, Enarr. in Ps., 46, 1 (CCL 38, 529).
[11] S. Gregorio Magno, Registr. Epist., IV, 31 (PL 77, 706).
[12] Santo Agostinho, De catech. rud., I, 8.
[13] S. Gregorio Magno, Su Ezechiele, I, 10, 31 (CCL 142, p. 159).
[14] S. Ignazio d’Antiochia, Lettera a Policarpo 4, 1.
[15] S. Agostino, Discorsi, 88, 14, 13.
[16] Cf. Giovanni Cassiano, Conferenze, I, 18.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Queres ser pobre?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Marta Arrais, 
Professora


Temos cada vez mais frio. O fervilhar que nos queimava a beirinha da pele da alma, que nos fazia querer curar todas as feridas do mundo, foge-nos e arrefece-nos. Temos cada vez mais frio. Amontoam-se coisas que não precisamos nos corredores de tudo o que somos. Compramos o que não nos faz falta para sentir que conseguimos ter algo que nos pertence de verdade, que é nosso. Vamos anoitecendo e arrefecendo perante o espreitar da consciência que nos assegura que estamos cada vez mais perdidos. Ajoelhamo-nos diante do que brilha mas não tem luz. Rendemo-nos ao que nos dá uma amostra de alegria para depois perdermos o riso outra vez. Guardamo-nos de sentir e de amar para proteger as paredes do nosso coração e, com esse escudo vazio, fazemos nascer mais dor. Estamos perdidos. Olhamos como quem procura o que não pode ser visto. Sentado ao nosso lado está Jesus. Põe a mão na nossa. Esgueira o seu coração para mais perto do nosso e espera-nos. Espreita-nos. Não nos diz nada porque os grandes amigos sabem ler as entrelinhas do nosso silêncio. Enterramos a cara nas mãos sujas da tristeza que cultivamos e não encontramos Jesus. Ele, respirando as esperanças que tem em nós, coloca-se à nossa frente e acena com a mão. No centro do seu aceno está cravada a sombra da sua chaga. Atrás do Seu olhar está a luz de um dia de sol. Temos cada vez mais frio. Somos pobres e a nossa fé parece uma roupa rasgada, coçada e triste. Temos tudo e somos pobres. Estamos magros de esperança. Temos fome de luz. Estamos surdos de amor. Amputados nos gestos. Jesus quer-nos pobres de coração, mas quer que vistamos a alma de lavado. Não quer que nos arrastemos dentro das nossas faltas de tudo. Das nossas falsas riquezas. Jesus quer-nos pobres de amor, para que sintamos sempre a falta de amar melhor. Quer que voltemos a ser crianças e que tenhamos saudades do seu colo. Quer que saibamos nascer outra vez quando a vida nos despir de possibilidades e de sonhos. Tudo nos parece incrivelmente difícil. Enrolamos o corpo nas nossas dificuldades e adormecemos a pensar que Jesus fez as malas e partiu de nós. Mas Aquele que nunca desiste embala-nos num sono ausente de medos e feridas e sopra-nos aos ouvidos do coração o mais bonito de todos os segredos :

«Ser pobre é querer ser sempre mais. Ser pobre é querer ter sempre menos. Ser pobre é guardar o perdão no lugar do rancor e da vingança. Ser pobre é querer abrir os braços a quem já nos espera. Ser pobre é ser menino. Que, mesmo tendo tudo, valoriza e ama aquilo que não cabe em lugar nenhum. A alegria de quem nunca se cansa de ser alegre. Ser pobre é continuar a ser tudo mesmo quando já não se tem mais nada.»’


Fonte :
* Artigo na íntegra


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

País muçulmano financia restauração de catacumbas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



Afrescos extraordinários das Catacumbas romanas dos Santos Marcelino e Pedro, num vasto sítio arqueológico aberto recentemente ao público, recuperaram seu antigo esplendor. Na sede do Pontifício Conselho da Cultura foram apresentados na manhã desta terça-feira os resultados da complexa obra de restauração, cujos custos foram cobertos em parte pela Fundação ‘Heydar Aliyev’, presidida pela Sra. Mehriban Aliyeva, esposa do Presidente muçulmano do Azerbaijão.

As Catacumbas dos Santos Marcelino e Pedro, na Via Casilina, 641, são uma extraordinária pinacoteca subterrânea. Terceiras catacumbas em Roma em extensão, abrigam em uma área de mais de 18 mil m² pinturas paleocristãs únicas no mundo, dentro do complexo arqueológico ‘Ad duas lauros’. O recente e precioso trabalho de restauração permite contemplar excepcionais afrescos em suas cores originais. Estas Catacumbas, ligadas ao martírio dos Santos Marcelino e Pedro, foram por séculos, assim como neste Ano Santo da Misericórdia, metas privilegiadas de peregrinação.


Os Santos Marcelino e Pedro

Pedro era um jovem exorcista que recusou-se abjurar da própria fé e de adorar outros deuses. Por isto foi torturado e encarcerado. Entre os carcereiros havia um homem especial, Artêmio, que profundamente tocado pela fé de Pedro, converteu-se ao cristianismo. Converteram-se também muitos outros detentos, carcereiros e famílias inteiras. Pedro não podia administrar o batismo e um sacerdote, Marcelino, foi até a prisão para batizar.


O martírio dos Santos Marcellino e Pedro

Marcelino e Pedro foram condenados à morte, sendo mortos em 304 d.C. por ordem do Imperador Diocleciano, que considerava o cristianismo um obstáculo para o desenvolvimento econômico e social do Império. Os dois mártires foram obrigados, antes da decapitação, a escavar o próprio túmulo com as mãos em uma densa floresta, conhecida como Floresta Negra, para que o local em que haviam sido enterrados permanecesse ignorado.


Restos mortais transferidos para o cemitério ‘Ad duas lauros’

Uma romana chamada Lucila, conseguiu transferir os restos mortais daquela área – que atualmente é chamada de Floresta Candida, em honra aos dois mártires – para um Cemitério cristão na Via Casilina, na localidade de ‘Ad duas lauros’. O lugar, mais tarde dedicado à memória dos dois Santos, tornou-se meta de peregrinação. No período carolíngio, as relíquias dos dois Santos foram levadas à Alemanha, na cidade de Seligenstadt, onde são guardados até hoje.


Os afrescos salvos pelas obras de restauração

A vinda dos recursos da Fundação ‘Heydar Aliyev’, foi possível graças aos acordos firmados em 2012, o que permitiu, com o uso de avançadas técnicas de conservação, a restauração de extraordinários monumentos pictóricos, como o Cubículo de Susana e o coveiro; o nicho de Daniele; o Arcosolium de Sabina; o Arcosolium de Orfeu; o Cubículo de Nossa Senhora com os dois Magos; o Cubículo da dama orante, que mostra uma mulher com a cabeça velada e os braços abertos. Uma joia pictórica que antecipa a iconografia medieval das Nossas Senhoras da Misericórdia.


Prevista restauração das Catacumbas de São Sebastião

A colaboração entre a Santa Sé e o Azerbaijão prosseguirá com outros importantes projetos. Hoje, em particular, foi selado um protocolo de intenção para obras de restauração e a valorização do complexo monumental de São Sebastião fora dos Muros, na Via Apia Antiga. O acordo diz respeito, entre outros, a uma extraordinária coleção de sarcófagos.

Ao ser questionada sobre o por quê de uma fundação de um país muçulmano financiar a restauração de patrimônios cristãos, a Sra. Mehriban Aliyeva explicou :

O Azerbaijão é um país entre a Europa e Ásia, entre o Ocidente e Oriente, e esta posição geográfica influenciou a profunda diversidade que caracteriza o país. A amizade e a fraternidade sempre acompanharam os povos que viveram no país. A nossa grande riqueza também é constituída pela presença de múltiplas confissões religiosas. Em particular, a restauração das Catacumbas dos Santos Marcelino e Pedro insere-se neste projeto de uma colaboração entre a Santa Sé e o Azerbaijão. No futuro, a nossa Fundação estará sempre pronta a prosseguir com esta cooperação’.


Cardeal Ravasi fala da ampla colaboração

A colaboração entre a Santa Sé e o Azerbaijão tem uma ampla abrangência, sublinha o Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho da Cultura e da Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra :

A colaboração tem o seu cerne principal nas Catacumbas dos Santos Marcelino e Pedro e agora na de São Sebastião. Mas o compromisso da Fundação ‘Aliyev’ e, em particular da sua presidente, ampliou-se também para a Biblioteca Apostólica Vaticana, com a restauração de muitos manuscritos azeris, e aos Museus Vaticanos, onde tiveram início  trabalhos de restauração, sobretudo de uma imponente estátua de Júpter. A segunda consideração diz respeito ao fato de que eu mesmo, certa vez, visitei o Azerbaijão e tive  a oportunidade de lá encontrar várias comunidades religiosas. Portanto, trata-se de uma rede de colaboração muito difundida.’’


Fonte :


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A pérola do deserto reanima-se

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo de Fernando Félix, Jornalista, 
e Christian Media Center


O Mali reconstruiu os 14 mausoléus da cidade de Timbuctu que foram destruídos pelos extremistas islâmicos quando ocuparam o Norte do país em 2012. A pérola do deserto do Saara recobra parte do seu corpo, mas uma parte da alma do seu saber quase milenar já não vai renascer das cinzas.


Durante o conflito no Mali, entre 2012 e 2013, os extremistas islâmicos destruíram 14 dos 16 mausoléus da cidade de Timbuctu, Patrimônio Mundial da UNESCO desde 1988.

Quando, naquele ano de 2012, um golpe de Estado depôs o presidente malinês democraticamente eleito, Amadou Toumani Touré, o consequente derrube do poder estatal deu ao grupo separatista tuaregue do Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA) a possibilidade de declarar unilateralmente a independência da parte norte do país. Estes dois acontecimentos precipitaram o surgimento de três grupos islamistas : Ansar Dine, MUJAO (Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental) e Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM). Estes grupos encontraram o caminho livre e, em poucos dias, conquistaram as cidades setentrionais do Mali, entre as quais Timbuctu, nas mãos dos tuaregues do MNLA. A partir desse momento, o grito de guerra santa ressoou por todo o Norte do país e, em particular, na histórica cidade malinesa, que foi meta de peregrinação para os fiéis muçulmanos da África Ocidental, centro da cultura islâmica entre os séculos XIII e XVII e se afirmou como foco cultural do mundo árabe, atraindo milhares de estudantes de todo o mundo. Os movimentos islamitas trataram de implantar um governo fundamentado numa interpretação rigorosa da lei islâmica – a sharia – nas zonas sob o seu controlo.

A capital religiosa e cultural malinesa foi sempre considerada o El Dorado do mundo árabe, ao ponto de na Europa se discutir a sua existência ou não até inícios de 1800, quando teve finalmente a prova, com o regresso do explorador francês René Caillé.

Dois séculos antes, em 1526, o diplomata, geógrafo e explorador mourisco Leão, o Africano, quando chegou a Timbuctu, escreveu encantado e fascinado com a beleza desta cidade com as cores do deserto do Saara : «Aqui havia uma grande quantidade de doutores, juízes, sacerdotes e outros homens de cultura […] Aqui chegaram diversos manuscritos e livros escapados da barbárie, que são vendidos a um preço mais alto do que qualquer outro bem.»

Não obstante, a beleza desta pérola do deserto não conseguiu travar a brutalidade da ideologia da guerra santa, segundo a qual «o dever do muçulmano é defender o Islã aniquilando os infiéis», como infundem os imãs (pregadores do culto islâmico) radicais. De fato, tudo o que, segundo eles, vai contra os princípios do fundamentalismo sunita tem de ser destruído – o sunismo deriva da palavra «suna» (sunna), que se refere aos preceitos estabelecidos no século VIII, baseados nos ensinamentos de Maomé e dos quatro califas ortodoxos.

Foi em nome deste fundamentalismo que, em Timbuctu, foram destruídos e vandalizados manuscritos antigos, mesquitas, mausoléus, santuários e tumbas sagradas dos pais fundadores da cidade, venerados por séculos como santos. A Unesco qualificou tais atos como trágicos e solicitou a todos os países envolvidos no conflito que atuassem com responsabilidade.

Graças à intervenção do Exército francês em apoio ao Governo do Mali, em Junho de 2013 assinou-se um acordo de paz entre o Governo e as forças tuaregues, que foi violado por diversas vezes, até nova assinatura em 20 de Fevereiro de 2015. Entretanto, a cidade de Timbuctu ficou livre dos fundamentalistas islâmicos e foi assim que, em Março de 2014, puderam ter início os trabalhos de reconstrução dos mausoléus destruídos. Fundamental foi também o apoio logístico da Missão das Nações Unidas no Mali (Minusma) e as ajudas internacionais, de Andorra, Bahrain, Croácia, ilhas Maurício, da Unesco e da União Europeia.

Se os monumentos recobram a vida, recorrendo mesmo à técnica artesanal da arquitetura feita de barro, o mesmo não sucederá com o conhecimento milenar e plural dos livros e manuscritos queimados.


Os monumentos de Timbuctu

No princípio do século XII, Timbuctu, situada na margem norte do rio Níger, era um acampamento temporário dos tuaregues, um povo nômade do deserto. Em finais do século XIII, já tinha crescido e o sultão do Mali mandou construir a torre da Grande Mesquita. Dois séculos mais tarde, já possuía três importantes mesquitas e uma prestigiada universidade, onde chegaram mais de 25 mil estudantes que ali encontravam os melhores professores de Teologia, Direito, Gramática, História ou Astrologia.

Atualmente, a cidade era já uma sombra do seu passado. No entanto, ainda havia reflexos da sua rica história, como a muralha de cerca de cinco quilômetros, as três mesquitas, a biblioteca famosa que guardava manuscritos e foi incendiada pelos islamitas, o centro de estudos Ahmed Baba, que tinha uma coleção de 20.000 manuscritos árabes antigos, o palácio Buctú, as residências dos exploradores, o museu Almansour Korey, o mercado, os 16 mausoléus de santos, a arquitetura feita de barro e as, também típicas e únicas no mundo, portas requintadamente trabalhadas, arte que requereu uma dedicação longa dos artesãos.

O grupo islamita Ansar al-Dine justificou a destruição dos mausoléus, dizendo que «os santuários são uma forma de idolatria, o que não é permitido pela lei do Islã». E a queima dos manuscritos tem por base uma crença já com os mesmos resultados ao longo da História : as bibliotecas seriam como um repositório das memórias, crenças, valores, fantasias, criações, histórias e sabedoria de pessoas, coisas que, ou não estão no Alcorão e, por isso, são obra dos infiéis, ou estão no Alcorão, e, portanto, estão a mais.


Fonte :


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

'A adoração em espírito e verdade' - Primeira pregação da Quaresma de 2016

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)


Reflexão sobre a Constituição Sacrosanctum Concilium

1. O Concílio Vaticano II : um afluente, não o rio

Nessas meditações quaresmais eu gostaria de continuar a reflexão sobre outros grandes documentos do Vaticano II, depois de meditar no Advento, na Lumen Gentium. Mas creio que é útil fazer uma premissa. O Vaticano II é um afluente, não é o rio. Em seu famoso trabalho sobre ‘O Desenvolvimento da Doutrina Cristã’, o beato Cardeal Newman declarou enfaticamente que parar a tradição em um ponto do seu curso, mesmo sendo um concílio ecumênico, seria torna-la uma morta tradição e não uma ‘tradição viva’. A tradição é como uma música. O que seria de uma melodia que parasse numa nota, repetindo-a ad infinitum? Isso acontece com um disco que arranha e sabemos o efeito que produz.

São João XXIII queria que o Concílio fosse para a Igreja ‘como um novo Pentecostes’. Em um ponto, pelo menos, essa oração foi ouvida. Após o Concílio houve um despertar do Espírito Santo. Ele não é mais ‘o desconhecido’ na Trindade. A Igreja tornou-se mais consciente de sua presença e de sua ação. Na homilia da Missa crismal da Quinta-feira Santa de 2012, o Papa Bento XVI afirmava :

Quem olha para a história da época pós-conciliar é capaz de reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que frequentemente assumiu formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que torna quase palpável a vivacidade inesgotável da Santa Igreja, a presença e a ação eficaz do Espírito Santo’.

Isso não significa que nós podemos desprezar os textos do Concílio ou ir além deles; significa reler o Concílio à luz dos seus próprios frutos. Que os concílios ecumênicos possam ter efeitos não compreendidos no momento, por aqueles que fizeram parte deles, é uma verdade evidenciada pelo próprio cardeal Newman sobre o Vaticano I [1], porém testemunhada mais vezes na história. O concílio ecumênico de Éfeso do 431, com a definição de Maria como Theotokos, Mãe de Deus, procurava afirmar a unidade da pessoa de Cristo, não aumentar o culto à Virgem, mas, de fato, o seu fruto mais evidente foi precisamente este último.

Se há uma área em que a teologia e a vida da Igreja Católica foi enriquecida nestes 50 anos de pós-concílio, é certamente a relacionada ao Espírito Santo. Em todas as principais denominações cristãs, estabeleceu-se nesses últimos tempos, aquilo que, com uma expressão cunhada por Karl Barth, foi chamada de ‘a Teologia do Terceiro artigo’. A teologia do terceiro artigo é aquela que não termina com o artigo sobre o Espírito Santo, mas começa com ele; que leva em conta a ordem com que se formou a fé cristã e o seu credo, e não só o seu produto final. Foi, de fato, à luz do Espírito Santo que os apóstolos descobriram quem era realmente Jesus e a sua revelação sobre o Pai. O credo atual da Igreja é perfeito e ninguém sequer sonha em muda-lo, porém, ele reflete o produto final, o último estágio alcançado pela fé, não o caminho através do qual se chega a isso, enquanto que, em vista de uma renovada evangelização, é vital para nós conhecer também o caminho por meio do qual se chega à fé, não só a sua codificação definitiva que proclamamos no credo de memória.

A esta luz aparece claramente as implicações de determinadas afirmações do concílio, mas aparecem também os vazios e lacunas a serem preenchidos, em especial, precisamente sobre o papel do Espírito Santo. Já tomava nota desta necessidade São João Paulo II, quando, por ocasião do XVI centenário do concílio ecumênico de Constantinopla, em 1981, escrevia em sua Carta Apostólica, a seguinte afirmação :

Todo o trabalho de renovação da Igreja, que o Concílio Vaticano II tão providencialmente propôs e iniciou […] não pode ser realizado a não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz e do seu poder [2]’.


2. O lugar do Espírito Santo na liturgia

Esta premissa geral é particularmente útil ao lidar com o tema da liturgia, a Sacrosanctum concilium. O texto nasce da necessidade, sentida por um longo tempo e por muitos, de uma renovação das formas e ritos da liturgia católica. A partir deste ponto de vista, os seus frutos foram muitos e, no conjunto, benéficos para a Igreja. Menos advertida era, naquele momento, a necessidade de debruçar-se sobre aquilo que, seguindo Romano Guardini, geralmente chama-se ‘o espírito da liturgia [3]’, e que – no sentido que vou explicar – eu chamaria mais de ‘a liturgia do Espírito’ (Espírito com letra maiúscula!).

Fies à intenção declarada destas nossas meditações de valorizar alguns aspectos mais espirituais e interiores dos textos conciliares, é precisamente neste ponto que eu gostaria de refletir. A SC dedica a isso só um curto texto inicial, fruto do debate que precedeu a redação final da constituição [4] :

Em tão grande obra, que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai. Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo – cabeça e membros – presta a Deus o culto público integral. Portanto, qualquer celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada par excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja [5]’.

É nos indivíduos, ou nos ‘atores’ da liturgia que hoje somos capazes de perceber uma lacuna nesta descrição. Os protagonistas aqui realçados são dois : Cristo e a Igreja. Falta qualquer alusão ao lugar do Espírito Santo. Também no resto da Constituição, o Espírito Santo nunca é sujeito de um discurso direto, só nomeado aqui e ali, e sempre ‘oblíquo’.

O Apocalipse nos diz a ordem e o número completo dos atores litúrgicos quando resume o culto cristão na frase : ‘O Espírito e a Esposa dizem (a Cristo, o Senhor), Vem!’ (Ap 22, 17). Mas Jesus já havia manifestado perfeitamente a natureza e a novidade do culto da Nova Aliança no diálogo com a Samaritana : ‘Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja’. (Jo 4, 23).

A expressão ‘Espírito e Verdade’, à luz do vocabulário joanino, só pode significar duas coisas : ou ‘o Espírito de verdade’, ou seja, o Espírito Santo (Jo 14, 17; 16,13) ou o Espírito de Cristo, que é a verdade (Jo 14, 6). Uma coisa é certa : não tem nada a ver com a explicação subjetiva, cara a idealistas e românticos, de que ‘espírito e verdade’, indicariam a interioridade escondida do homem, em oposição a qualquer culto externo e visível. Não se trata só apenas da passagem do exterior para o interior, mas da passagem do humano para o divino.

Se a liturgia cristã é ‘o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo’, a melhor maneira de descobrir a sua natureza, é ver como Jesus exerceu a sua função sacerdotal em sua vida e em sua morte. A tarefa do sacerdote é oferecer ‘orações e sacrifícios’ a Deus (cf. Hb 5,1; 8,3). Agora sabemos que era o Espírito Santo que colocava no coração do Verbo feito carne o grito ‘Abba’! que encerra toda a sua oração. Lucas observa explicitamente quando escreve : ‘Naquela mesma hora Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse : Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra…’ (cf. Lc 10, 21). A própria oferta do seu corpo em sacrifício na cruz aconteceu, segundo a Carta aos Hebreus, ‘em um Espírito eterno’ (Hb 9, 14), isto é, por um impulso do Espírito Santo.

São Basilio tem um texto esclarecedor.

O caminho do conhecimento de Deus procede do único Espírito, através do único Filho, até o único Pai; inversamente, a bondade natural, a santificação segundo a natureza, a dignidade real, se difundem do Pai, por meio do Unigênito, até o Espírito [6]’.

Em outras palavras, a ordem da criação, ou da saída das criaturas de Deus, parte do Pai, passa através do Filho e chega a nós no Espírito Santo. A ordem do conhecimento ou do nosso retorno a Deus, do qual a liturgia é a expressão mais alta, segue o caminho oposto : parte do Espírito, passa através do Filho e termina no Pai. Essa visão descendente e ascendente da missão do Espírito Santo está presente também no mundo latino. O beato Isaac de Stella (sec. XII), expressa em termos muito próximos aos de Basílio :

Como as coisas divinas desceram a nós pelo Pai, pelo Filho e o Espírito Santo, ou no Espírito Santo, então, as coisas humanas sobem ao Pai por meio do Filho, e [no] Espírito Santo [7]’.

Não se trata, como podemos ver, de ser, por assim dizer, o torcedor de uma ou de outra das três pessoas da Trindade, mas de salvaguardar o dinamismo trinitário da liturgia. O silêncio sobre o Espírito Santo, inevitavelmente, atenua o caráter trinitário da liturgia. Por isso parece-me particularmente oportuno a chamada que São João Paulo II fazia na Novo Millennio Ineunte :

Obra do Espírito Santo em nós, a oração abre-nos, por Cristo e em Cristo, à contemplação do rosto do Pai. Aprender esta lógica trinitária da oração cristã, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial, mas também na experiência pessoal, é o segredo dum cristianismo verdadeiramente vital, sem motivos para temer o futuro porque volta continuamente às fontes e aí se regenera [8]’.


3. A adoração ‘no espírito’

Vamos tentar tirar, a partir dessas premissas, algumas orientações práticas para o nosso modo de viver a liturgia e fazer que ela execute uma das suas principais tarefas, que é a santificação das almas. O Espírito Santo não autoriza inventar novas e arbitrárias formas de liturgia ou modificar de própria iniciativa aquelas existentes (tarefa que cabe a hierarquia). Ele é o único, no entanto, que renova e dá vida a todas as expressões da liturgia. Em outras palavras, o Espírito Santo não faz coisas novas, mas faz novas as coisas! A palavra de Jesus repetida por Paulo : ‘É o Espírito que dá vida’ (Jo 6, 63; 2 Cor 3, 6) aplica-se principalmente à liturgia.

O apóstolo exortava os fiéis a orar ‘no Espírito’ (Ef 6:18; cf. também Judas 20). O que significa orar no Espírito? Significa permitir que Jesus continue a exercer o próprio ofício sacerdotal no seu corpo que é a Igreja. A oração cristã se torna uma extensão no corpo da oração do chefe. É conhecida a afirmação de Santo Agostinho :

Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é aquele que reza por nós, reza em nós e que é rezado por nós. Reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nosso chefe, é rezado por nós como nosso Deus. Reconheçamos, portanto, nele, a nossa voz, e em nós a sua voz [9]’.

A esta luz, a liturgia nos aparece como o ‘Opus Dei’, a ‘obra de Deus’, não só porque tem Deus por objeto, mas também porque tem Deus como sujeito; Deus não é só rezado por nós, mas reza em nós. O mesmo grito, Abbá! que o Espírito, vindo a nós, dirige ao Pai (Gl 4, 6; Rm 8, 15) mostra que quem reza em nós, pelo Espírito, é Jesus, o Filho único de Deus. Por si mesmo, de fato, o Espírito Santo não poderia dirigir-se a Deus, chamando-o Abbá, Pai, porque ele não é ‘gerado’, mas somente ‘procede’ do Pai. Se pode fazê-lo é porque é o Espírito de Cristo que continua em nós a sua oração filial.

E, especialmente, quando a oração torna-se cansaço e luta é que se descobre toda a importância do Espírito Santo para a nossa vida de oração. O Espírito se torna, então, a força da nossa oração ‘fraca’, a luz da nossa oração apagada; em uma palavra, a alma da nossa oração. Verdadeiramente, ele ‘irriga o que é árido’, como dizemos na sequência em sua honra.

Tudo isso acontece por fé. Basta eu dizer ou pensar : ‘Pai, tu me deste o Espírito de Jesus; formando, portanto, ‘um só Espírito’ com Jesus, eu recito este Salmo, celebro esta santa missa, ou estou simplesmente em silêncio, aqui em sua presença. Quero dar-te aquela glória e aquela alegria que te daria Jesus, se fosse ele a orar ainda da terra’.

O Espírito Santo vivifica especialmente a oração de adoração que é o coração de toda oração litúrgica. A sua peculiaridade deriva do fato de que é o único sentimento que podemos alimentar única e exclusivamente para com as pessoas divinas. É o que distingue o culto de latria do culto de dulia reservado aos santos e de hiperdulia reservado à Santa Virgem. Nós veneramos Nossa Senhora, não a adoramos, ao contrário do que algumas pessoas pensam dos católicos.

A adoração cristã é também trinitária. É trinitária no seu desenvolvimento, porque é adoração feita ‘ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo’, e é trinitária no seu fim, porque é adoração feita junto ‘ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo’.

Na espiritualidade Ocidental, quem desenvolveu mais a fundo o tema da adoração foi o cardeal Pierre de Bérulle (1575-1629). Para ele, Cristo é o perfeito adorador do Pai, que precisa unir-se para adorar a Deus com uma adoração de valor infinito [10]. Escreve :

Desde toda a eternidade, havia um Deus infinitamente adorável, mas não havia ainda um adorador infinito; […] Tu es agora, oh Jesus, este adorador, este homem, este servidor infinito por potência, qualidade e dignidade, para satisfazer plenamente este dever e fazer esta homenagem divina [11]’.

Se existe uma lacuna nesta visão, que também deu à Igreja belos frutos e moldou a espiritualidade francesa por séculos, essa é a mesma que temos colocado em destaque na constituição do Vaticano II : a pouca atenção dada ao papel do Espírito Santo. Do Verbo encarnado, o discurso de Bérulle muda para a ‘corte real’ que o segue e o acompanha : a Santa Virgem, João Batista, os apóstolos, os santos; falta o reconhecimento do papel essencial do Espírito Santo.

Em qualquer movimento de retorno a Deus, lembrou-nos São Basílio, tudo parte do Espírito, passa através do Filho e termina no Pai. Não basta, portanto, recordar de vez em quando que existe também o Espírito Santo; é necessário reconhecer-lhe o papel de elo essencial, tanto no caminho de saída das criaturas de Deus quanto no de retorno das criaturas a Deus. O abismo existente entre nós e o Jesus da história está cheio do Espírito Santo. Sem ele, tudo na liturgia é somente memória; com ele, tudo é também presença.

No livro do Êxodo, lemos que, no Sinai, Deus indicou para Moisés uma cavidade na rocha, e escondido no interior dela ele poderia contemplar a sua glória sem morrer (cf. Ex 33, 21). Comentando este passo, o próprio São Basílio escreve :

Qual é hoje, para nós cristãos, aquela cavidade, aquele lugar, onde podemos refugiar-nos para contemplar e adorar a Deus? É o Espírito Santo! De quem aprendemos? Do próprio Jesus que disse : Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e verdade! [12]

Que perspectivas, que beleza, que poder, que atração tudo isso dá ao ideal da adoração cristã! Quem não sente a necessidade de esconder-se de vez em quando, no vórtice rodopiante do mundo, naquela cavidade espiritual para contemplar a Deus e adorá-lo como Moisés?


4. Oração de intercessão

Junto com a adoração, um componente essencial da oração litúrgica é a intercessão. Em toda a sua oração, a Igreja não faz mais do que interceder : por si mesma e pelo mundo, pelos justos e pelos pecadores, pelos vivos e pelos mortos. Também esta é uma oração que o Espírito Santo quer animar e confirmar. Dele São Paulo escreve :

Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os corações sabe o que deseja o Espírito, o qual intercede pelos santos, segundo Deus.(Rm 8, 26-27)’.

O Espírito Santo intercede por nós e nos ensina a interceder, por sua vez, pelos outros. Fazer oração de intercessão significa unir-se, na fé, a Cristo ressuscitado que vive em um estado constante de intercessão pelo mundo (cf. Rm 8, 34; Heb 7, 25; 1 João 2, 1). Na grande oração com a qual concluiu a sua vida terrena, Jesus nos oferece o exemplo mais sublime de intercessão.

Rogo por eles, por aqueles que me deste. […] Guarde-os no teu nome. Não peço que os tires do mundo, mas que os pretejas do mal. Consagra-os na verdade. […] Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim… (Jo 17, 9ss)’.

Do Servo Sofredor se diz, em Isaías, que Deus lhe dá em prêmio as multidões ‘porque carregava os pecados de muitos e intercedia pelos pecadores’ (Is 53, 12) : Essa profecia encontrou o seu perfeito cumprimento em Jesus que, na cruz, intercede pelos seus executores (cf. Lc 23, 34).

A eficácia da oração de intercessão não depende de ‘muitas palavras’ (cf. Mt 6, 7), mas do grau de união que se consegue ter com as disposições filiais de Cristo. Mais do que as palavras de intercessão, deve-se, pelo contrário, multiplicar os intercessores, ou seja, invocar a proteção de Maria e dos Santos. Na festa de Todos os Santos, a Igreja pede a Deus para ser ouvida ‘pela abundância dos intercessores’ (‘multiplicatis intercessoribus’).

Multiplicam-se os intercessores até quando se rezam uns pelos outros. Diz Santo Ambrósio :

Se você orar por você, só você vai orar por você, e se cada um só reza por si, a graça que alcança será menor com relação àquele que intercede pelos outros. Ora, dado que os indivíduos rezam por todos, acontece também que todos rezam pelos indivíduos. Portanto, para concluir, se você reza somente por você, você é o único que reza por você. Mas se, pelo contrário, você reza por todos, todos rezarão por você, estando você no meio daqueles todos [13]’.

A oração de intercessão é, portanto, agradável a Deus, porque é mais livre de egoísmo, reflete mais de perto a gratuidade divina e está de acordo com a vontade de Deus, que quer ‘que todos os homens sejam salvos’ (cf. 1 Tm 2, 4). Deus é como um pai compassivo que tem o dever de punir, mas que tenta todas as desculpas possíveis para não ter que fazê-lo e é feliz, em seu coração, quando os irmãos do culpado conseguem detê-lo dessa punição.

Se faltam esses braços fraternos estendidos a Deus, Ele próprio reclama disso na Escritura : ‘Ele viu que não havia ninguém, maravilhou-se porque ninguém intercedia’ (Is 59, 16). Ezequiel transmite-nos esta lamentação de Deus : ‘Busquei entre eles um homem que levantasse um muro e se colocasse na brecha perante mim, para defender o país, para que eu não o devastasse, porém não o encontrei’ (Ez 22, 30).

A palavra de Deus enfatiza o extraordinário poder que tem junto a Deus, pela sua própria disposição, a oração daqueles que Ele colocou no comando do seu povo. Diz-se em um salmo que Deus havia decidido exterminar o seu povo por causa do bezerro de ouro, ‘se Moisés não tivesse se interposto diante dele para evitar a sua ira’ (cf. Sl 106, 23).

Aos pastores e guias espirituais ouso dizer : quando, na oração, vocês sentirem que Deus está zangado com o povo que vos foi confiado, não tomem rapidamente o partido de Deus, mas do povo! Assim fez Moisés, até o ponto de protestar e de querer ser riscado, ele próprio, com eles, do livro da vida (cf. Ex 32, 32), e a Bíblia deixa claro que isto era justamente o que Deus queria, porque ele ‘abandonou a intenção de prejudicar o seu povo’. Quando se está diante do povo, então, devemos dar razão, com toda a força, a Deus. Quando Moisés, pouco depois, encontrou-se na frente do povo, então se acendeu a sua ira : esmagou o bezerro de ouro, dispersou o pó na água e fez as pessoas engolirem a água (cf. Ex 32: 19ss). Somente aquele que defendeu o povo diante de Deus e carregou o peso do seu pecado, tem o direito – e terá a coragem –, depois, de brigar com o próprio povo, em defesa de Deus, como fez Moisés.

Terminemos proclamando juntos o texto que melhor reflete o lugar do Espírito Santo e a orientação trinitária da liturgia, que é a doxologia final do cânon romano : ‘Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e glória, agora e para sempre. Amém.’’

Fonte :
*Artigos na íntegra
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[1] Cf. I. Ker, Newman, the Councils, and Vatican II, in ‘Communio’. International Catholic Review, 2001, pp. 708-728.
[2] João Paulo II, Carta apostólica A Concilio Constantinopolitano I, 25 marzo 1981, in AAS 73 (1981) 515-527.
[3] R.Guardini, Vom Geist del Liturgie,  23 ed., Grünewald 2013; J. Ratzinger, Der Geist del Liturgie, Herder, Freiburg, i.b., 2000.
[4]  Storia del concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. III, Bologna 1999, p 245 s.
[5] SC, 7.
[6] S. Basílio de Cesareia, De  Spiritu Sancto XVIII, 47 (PG 32 , 153).
[7] B. Isacc de Stella, De anima (PL 194,  1888).
[8] NMI, 32.
[9]  S. Agostinho, Enarrationes in Psalmos 85, 1: CCL 39, p. 1176.
[10] M. Dupuy, Bérulle, une spiritualité de l’adoration, Paris 1964. .
[11] P. de Bérulle,  Discours de l’Etat et des grandeurs de Jésus (1623), ed. Paris 1986, Discours II, 12.
[12] S. Basílio, De Spiritu Sancto, XXVI,62 (PG 32, 181 s.).
[13] S. Ambrósio, De Cain et Abel, I, 39 (CSEL 32, p. 372).