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domingo, 22 de outubro de 2017

Cultura tribal dos hebreus e árabes

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘Para conhecer as culturas e as religiões faz-se necessário o estudo de suas origens, geografia, costumes e relações com outros povos, na época em que elas se desenvolveram.  Ainda hoje, podemos encontrar elementos culturais e religiosos que sobreviveram ao passar do tempo e ainda estão presentes em muitos povos. O exemplo mais visível é o vestuário.
Quem lê a Bíblia ou a história do Oriente Médio não demora em perceber que a vida nos seres humanos, se desenvolvia em clãs familiares, também conhecidos como tribos. Os desertos áridos, falta de água e alimentos estão na base para os deslocamentos constantes dos grupos humanos à procura de lugares favoráveis à sobrevivência. Habilidade para viver em terras inóspitas e força para guerrear, afastando as tribos invasoras ou expulsar outras, em regiões privilegiadas, eram comuns.
Diante desse ambiente adverso e disputas territoriais, a aglutinação em tribos era vital para sobrevivência e se proteger dos invasores.
O chefe de um clã forte aglutinava outros menores.  Daí pode-se explicar o clã de Jacó do qual surgiram as 12 tribos de Israel que, unidas sob a liderança de Moisés e Aarão, ocuparam a terra prometida, expulsando dela as tribos que lá viviam. Uma vez estabelecidas na terra de Canaã, fez-se necessário criar a unidade nacional, mas isso jamais foi conseguido plenamente. Embora as tribos dos hebreus tivessem Abraão como pai comum e o mesmo Deus, lutas e divisões eram frequentes.
Paralelamente às tribos dos hebreus, surgiram as doze tribos dos descendentes de Ismael, filho de Abraão e sua escrava Hagar. Segundo o Islã, os árabes descendem de Ismael que está fora da árvore genealógica de Cristo. A história dos hebreus, narrada na Bíblia, relata inúmeros enfrentamentos entres os clãs descendentes de dois dos filhos de Abraão, Ismael e Jacó, evidenciando que as diferenças entre os dois grupos de clãs é bem antiga.
Embora os tempos sejam outros, o mesmo sistema tribal ainda é a espinha dorsal dos governos de quase todos os países do Oriente Médio. A população de cada um é formada por diversos clãs e etnias governadas por um líder forte. Por isso, a tentativa de introduzir uma democracia de estilo ocidental não traz resultados positivos para a paz na região.
É bom lembrar as palavras de Glugiermo Ferrero : ‘A cultura ajuda um povo a lutar com as palavras, em vez de fazê-lo com as armas’.’

Fonte :


terça-feira, 7 de março de 2017

O pastor visto a partir das Arábias

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘Vejamos a definição que Cristo deu a si mesmo : ‘Eu sou o bom pastor.’ Na sua época, causou polêmica entre seus ouvintes porque pastor era um termo exclusivo para Deus, reis e líderes religiosos. Dizendo-se pastor, ele estava usurpando um título divino para atribui-lo a um ser humano.  Isso não era aceitável.

 A cultura bíblica e do Oriente Médio entram em colisão com a prática da ação de pastorear do Ocidente. Nessas duas partes do mundo, a ação do pastor tem pouca coisa em comum. Por isso, os cristãos ocidentais, carecem de muitas partes do mosaico da imagem do pastor, quando leem as escrituras. O motivo é a falta de conhecimento da cultura dos países do Golfo Pérsico. Aqui, o panorama, o cheiro, o ‘humorismo’ diário mudou pouco desde os tempos de Cristo.

No Ocidente, o proprietário mantém suas ovelhas em cercados. Para recolhê-las, ele pode ter dois ou mais cachorros que conciliados por assobios ou voz, correm juntando as ovelhas espalhadas latindo, ameaçando-as, ou até mesmo, mordendo-as levemente para que caminhem na direção certa. Elas se dirigem a um lugar sob a pressão e o medo. No ocidente, o pastor é alguém que usa os cachorros para juntar as ovelhas, ou, em tempos atuais, ziguezagueia com ruidosas motos para reuni-las em algum lugar.

O reverendo anglicano, Andrew Thompson, relata duas experiências. Enquanto caminhava numa estrada de terra na Jordânia, ouviu o cantarolar de alguém. Olhou na direção de onde vinha voz. Era um jovem caminhado à frente de um rebanho de ovelhas soltas. Quando alguma ficava para trás, ele a chamava pelo nome. Em outra ocasião, uma ovelha adulta entrou no jardim de sua moradia e se deliciava comendo as flores. Sob o olhar da esposa e dos filhos, por mais que tentasse enxotá-la, ela não se afastava por não entender aquela linguagem e tratamento. Nisso apareceu um jovem que a chamou pelo nome. Sob o olhar atônito do reverendo e sua família, a ovelha imediatamente saiu do jardim trotando atrás dele a pé.

Vejam as diferenças. Na cultura ocidental, as ovelhas se juntam sob a pressão dos gritos, assobios do proprietário e latidos dos cachorros. Prevalece o medo.  No Oriente Médio, o pastor caminha cantarolando na frente delas. No Ocidente, o pastor exerce autoridade sobre as ovelhas, enquanto no Oriente Médio elas são familiarizadas com sua voz que as chama pelo nome, indicando intimidade, companheirismo.

O Bom Pastor, ao invés de assustar, reprimir e forçar suas ovelhas para se reunir, caminha na frente e elas o seguem com alegria.’


Fonte :

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A pérola do deserto reanima-se

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
*Artigo de Fernando Félix, Jornalista, 
e Christian Media Center


O Mali reconstruiu os 14 mausoléus da cidade de Timbuctu que foram destruídos pelos extremistas islâmicos quando ocuparam o Norte do país em 2012. A pérola do deserto do Saara recobra parte do seu corpo, mas uma parte da alma do seu saber quase milenar já não vai renascer das cinzas.


Durante o conflito no Mali, entre 2012 e 2013, os extremistas islâmicos destruíram 14 dos 16 mausoléus da cidade de Timbuctu, Patrimônio Mundial da UNESCO desde 1988.

Quando, naquele ano de 2012, um golpe de Estado depôs o presidente malinês democraticamente eleito, Amadou Toumani Touré, o consequente derrube do poder estatal deu ao grupo separatista tuaregue do Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA) a possibilidade de declarar unilateralmente a independência da parte norte do país. Estes dois acontecimentos precipitaram o surgimento de três grupos islamistas : Ansar Dine, MUJAO (Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental) e Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM). Estes grupos encontraram o caminho livre e, em poucos dias, conquistaram as cidades setentrionais do Mali, entre as quais Timbuctu, nas mãos dos tuaregues do MNLA. A partir desse momento, o grito de guerra santa ressoou por todo o Norte do país e, em particular, na histórica cidade malinesa, que foi meta de peregrinação para os fiéis muçulmanos da África Ocidental, centro da cultura islâmica entre os séculos XIII e XVII e se afirmou como foco cultural do mundo árabe, atraindo milhares de estudantes de todo o mundo. Os movimentos islamitas trataram de implantar um governo fundamentado numa interpretação rigorosa da lei islâmica – a sharia – nas zonas sob o seu controlo.

A capital religiosa e cultural malinesa foi sempre considerada o El Dorado do mundo árabe, ao ponto de na Europa se discutir a sua existência ou não até inícios de 1800, quando teve finalmente a prova, com o regresso do explorador francês René Caillé.

Dois séculos antes, em 1526, o diplomata, geógrafo e explorador mourisco Leão, o Africano, quando chegou a Timbuctu, escreveu encantado e fascinado com a beleza desta cidade com as cores do deserto do Saara : «Aqui havia uma grande quantidade de doutores, juízes, sacerdotes e outros homens de cultura […] Aqui chegaram diversos manuscritos e livros escapados da barbárie, que são vendidos a um preço mais alto do que qualquer outro bem.»

Não obstante, a beleza desta pérola do deserto não conseguiu travar a brutalidade da ideologia da guerra santa, segundo a qual «o dever do muçulmano é defender o Islã aniquilando os infiéis», como infundem os imãs (pregadores do culto islâmico) radicais. De fato, tudo o que, segundo eles, vai contra os princípios do fundamentalismo sunita tem de ser destruído – o sunismo deriva da palavra «suna» (sunna), que se refere aos preceitos estabelecidos no século VIII, baseados nos ensinamentos de Maomé e dos quatro califas ortodoxos.

Foi em nome deste fundamentalismo que, em Timbuctu, foram destruídos e vandalizados manuscritos antigos, mesquitas, mausoléus, santuários e tumbas sagradas dos pais fundadores da cidade, venerados por séculos como santos. A Unesco qualificou tais atos como trágicos e solicitou a todos os países envolvidos no conflito que atuassem com responsabilidade.

Graças à intervenção do Exército francês em apoio ao Governo do Mali, em Junho de 2013 assinou-se um acordo de paz entre o Governo e as forças tuaregues, que foi violado por diversas vezes, até nova assinatura em 20 de Fevereiro de 2015. Entretanto, a cidade de Timbuctu ficou livre dos fundamentalistas islâmicos e foi assim que, em Março de 2014, puderam ter início os trabalhos de reconstrução dos mausoléus destruídos. Fundamental foi também o apoio logístico da Missão das Nações Unidas no Mali (Minusma) e as ajudas internacionais, de Andorra, Bahrain, Croácia, ilhas Maurício, da Unesco e da União Europeia.

Se os monumentos recobram a vida, recorrendo mesmo à técnica artesanal da arquitetura feita de barro, o mesmo não sucederá com o conhecimento milenar e plural dos livros e manuscritos queimados.


Os monumentos de Timbuctu

No princípio do século XII, Timbuctu, situada na margem norte do rio Níger, era um acampamento temporário dos tuaregues, um povo nômade do deserto. Em finais do século XIII, já tinha crescido e o sultão do Mali mandou construir a torre da Grande Mesquita. Dois séculos mais tarde, já possuía três importantes mesquitas e uma prestigiada universidade, onde chegaram mais de 25 mil estudantes que ali encontravam os melhores professores de Teologia, Direito, Gramática, História ou Astrologia.

Atualmente, a cidade era já uma sombra do seu passado. No entanto, ainda havia reflexos da sua rica história, como a muralha de cerca de cinco quilômetros, as três mesquitas, a biblioteca famosa que guardava manuscritos e foi incendiada pelos islamitas, o centro de estudos Ahmed Baba, que tinha uma coleção de 20.000 manuscritos árabes antigos, o palácio Buctú, as residências dos exploradores, o museu Almansour Korey, o mercado, os 16 mausoléus de santos, a arquitetura feita de barro e as, também típicas e únicas no mundo, portas requintadamente trabalhadas, arte que requereu uma dedicação longa dos artesãos.

O grupo islamita Ansar al-Dine justificou a destruição dos mausoléus, dizendo que «os santuários são uma forma de idolatria, o que não é permitido pela lei do Islã». E a queima dos manuscritos tem por base uma crença já com os mesmos resultados ao longo da História : as bibliotecas seriam como um repositório das memórias, crenças, valores, fantasias, criações, histórias e sabedoria de pessoas, coisas que, ou não estão no Alcorão e, por isso, são obra dos infiéis, ou estão no Alcorão, e, portanto, estão a mais.


Fonte :


domingo, 23 de agosto de 2015

Novo tecido político

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG


‘A pluralidade ideológico-partidária é um vetor de grande importância para alimentar as dinâmicas que provocam reflexões, discernimentos e escolhas na construção da sociedade. A política partidária, assim, é constitutiva do tecido democrático, porém, neste momento, se desenvolve sem o respaldo de uma cultura político-cidadã consistente, com capacidade para sustentar os embates pautados pelo inegociável compromisso com o bem comum. A responsabilidade com o país não pode ser jamais negociada por interesses mesquinhos e por esquemas de corrupção.  Para além de sua competência específica, os políticos são cidadãos como todos os outros, alimentados no horizonte de uma mesma sociedade, portanto filhos iguais da mesma cultura.  Se essa cultura cidadã, que é básica, está comprometida, será sofrível o nível da política partidária.

A falta de envergadura nos exercícios políticos, ao se constatar equívocos em administrações, mediocridades em representações e obscuridades, evidencia desajustes nessa cultura cidadã. Assim, é indispensável investir num novo tecido político para subsidiar uma cidadania que consiga produzir líderes mais nobres, capazes de abrir frentes e encontrar novas respostas, ajudando no avanço inadiável de instituições e instâncias todas da sociedade. É necessário cultivar uma consistência nova que sustente a cidadania na sociedade brasileira. Esgotou-se a tentativa muito comum, ante os desarranjos da política, de alguém se apresentar no cenário político partidário como ‘salvador da pátria’, com soluções quase mágicas para os muitos problemas.

A política partidária, ao cair nas mazelas dos interesses mesquinhos pela sedução terrível do dinheiro e do poder, perde a moral e compõe um cenário rejeitado pela população. Candidatos, quando eleitos, com pouco tempo expõem suas fragilidades e inércias. Exercem responsabilidades, quando o fazem, a ‘passo de tartaruga’. E, no período eleitoral, começa a mesma cantilena partidária. Falta uma dinâmica mais adequada para o exercício da política, o que agrava crises por carência de líderes lúcidos e competentes. Tudo se resume num falatório e em discussões sem força para mudar cenários ou para alcançar respostas assertivas.  Há de se considerar o investimento diuturno em busca de um tecido político mais qualificado na sociedade brasileira.  Agora é hora oportuna, no enfrentamento das crises, para se abrir um novo horizonte, superar vícios e procedimentos que, mantidos, impedirão transformações importantes e na velocidade esperada. Sem essas mudanças, a sociedade continuará a amargar atrasos e a perda de oportunidades para seu esperado crescimento.

O investimento em educação, sem dúvida, é um ponto de grande relevância, mas não basta somente investir no ensino formal. A intervenção precisa ser mais abrangente, no âmbito da cultura. Nessa dimensão, muitos aspectos merecem análises para serem modificados. Sabe-se que não basta apenas ser detentor de conhecimento. É preciso ser capaz de valer-se da riqueza das informações para articulações de alta complexidade e, assim, alargar horizontes, acionar a lucidez da inteligência que aponta soluções e a disposição cidadã de tudo fazer para dar ao conjunto da sociedade o desenvolvimento almejado.

Exercícios precisam ser praticados para que se avance no processo de melhorias do tecido político.  Um rosário de tarefas pode ser apontado. Quando se considera os cenários de pobreza e miséria que desenham a sociedade brasileira, é indispensável priorizar os clamores dos pobres, como princípio e lei acima de normas vigentes, de direitos do Estado ou de defesa de interesses particulares. Também é hora do empresariado investir em projetos sérios, de credibilidade. É o momento dos agentes na política partidária abrirem mão de benesses que estão na contramão das expectativas de seus representados. Devem-se qualificar melhor, humanisticamente, para o exercício da liderança. De um modo geral, são necessárias novas práticas cidadãs, o que inclui respeitar tudo o que se relaciona ao bem comum. Não se avançará muito e não se conseguirá superar os graves problemas deste momento se não se encontrar o caminho, as dinâmicas, os modos e a boa vontade de todos para se constituir um novo tecido político.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=5324
  

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Uma carta do Inferno

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina

  
 A maior força do Mal consiste em nos fazer pensar que a nossa luta pelo bem é uma resposta desproporcional e injusta aos pequenos males que eles querem nos impor em troca do grande ‘bem’ que as suas políticas estragadas prometem falsamente para um futuro melhor.


‘Se o grande autor cristão C. S. Lewis estivesse vivo hoje, talvez pudesse acrescentar ao seu belo livro Cartas de um Diabo a seu Aprendiz uma carta mais ou menos assim :

Meu caro diabinho aprendiz,

A banalidade do mal é um aspecto da nossa realidade que os seres humanos contemplam pouco, mas que nos é extremamente útil. Precisamos explorá-lo cada vez mais.

De fato, se fizéssemos uma leitura com olhos demoníacos do capítulo 3 do Livro do Gênesis, o célebre trecho da tentação de Adão e Eva pela serpente, nosso mestre diabólico maior, no Paraíso, surpreenderíamo-nos com a banalidade do gesto ali descrito : um animalzinho falante oferece uma fruta apetitosa ao casal, e o casal come. Descobrem que estão nus, vestem-se com folhas de figueira e escondem-se, envergonhados com a própria nudez, ao ouvirem os passos de Deus que se aproximava. E isto é tudo : um animalzinho, uma pequena mordida numa fruta apetitosa. E eis o mal instalado no mundo, eis o fim do paraíso, eis a humanidade inteira irremediavelmente comprometida (pelo menos até a redenção em Cristo) pela ferida hereditária do pecado original. Veja como a banalidade do mal é eficiente! E como, diante dela, a reação de Deus parece desproporcional e arrogante!

Como seria fácil até para um humano bem treinado em técnicas jurídicas de tribunal, se devidamente inspirado por um de nós, distorcer a reação aparentemente desproporcional de Deus à banalidade do gesto dos primeiros humanos, de modo a fazer com que pareça desproporcional e autoritária : por que excluir todo o gênero humano do Paraíso por causa de uma mordidinha numa fruta? Uma fruta que, diga-se de passagem, foi criada pelo próprio Deus, e por ele feita apetitosa aos olhos de sua criatura. Não é difícil a um argumentador treinado em retórica jurídica transformar Deus no grande culpado pelo que ocorreu nessa passagem bíblica; as criaturas, Adão e Eva, sem esquecer a serpente, não pediram para ser criadas. Não escolheram morar num paraíso em que uma das frutas lhe era proibida. Além disso, Deus não se comporta como um burguês egoísta, um capitalista possessivo, ao negar ao primeiro casal justo o fruto da árvore que ‘está no meio do jardim’? E o princípio da proporcionalidade, não estaria desatendido quando, por causa de uma frutinha, Deus condena a serpente a ‘caminhar sobre seu ventre e comer poeira todos os dias’, sem possibilidade de livramento condicional? Não seria machista, ao condenar somente Eva às dores do parto e a ser dominada pelo marido? Não seria explorador do proletariado ao condenar Adão a extrair seu sustento ‘com o suor do rosto’, expulsá-lo do Paraíso e retirar dele o acesso à Árvore da Vida, condenando-o, ademais, à crudelíssima ‘pena de morte’, que nossas sociedades já não admitem no atual estágio de civilização? Ademais, com um gesto militarista, põe à entrada do Paraíso seus ‘policiais militares’, os querubins com suas espadas em chamas fulgurantes.

Restar-nos-ia apenas convencer à humanidade contemporânea que a única postura adequada das criaturas hoje seria, então, a justa revolta contra um Deus arbitrário, arrogante, machista, patrimonialista e cruel, desproporcionado em sua reação e autoritário em seu agir. E assim, o nosso argumento infernal poderia prosseguir : incentivarmos o ser humano a progredir no sentido da sua própria ‘libertação’ frente a um Deus assim : desconstruir a fé! Incentivemos as pessoas a repetir, todos os dias, os gestos mais banais para demonstrar sua independência, sua autonomia frente a Deus e à religião, para expulsar da sua vida, num gesto humano de resposta à altura, esse mesmo Deus que um dia os expulsou do Paraíso.

E com base nesse mesmo raciocínio, vamos conclamar todos os diabos a propor, hoje, como solução para todas as misérias humanas, a progressiva liberação das drogas, o aborto primeiro como exceção, depois como regra, a eutanásia, o divórcio, a pornografia, a promiscuidade, o sexo casual e o descompromisso afetivo, o consumismo desenfreado e a ostentação, a mutilação vaidosa do próprio corpo, a acumulação de riquezas e poder, tudo com a marca da banalidade que é muito própria do mal. Assim, digamos aos humanos : que mal há num divórcio, se as pessoas estão apenas buscando a própria felicidade ao romper uma família que já não lhes era mais agradável? E a miséria social se abate muito mais duramente contra uma família empobrecida, sem emprego, sem pai ou sem mãe, numa economia atravessada pela ambição desmedida! Quando Já não houver quem derrame lágrimas quando as famílias se desfazem assim, diremos a eles, estaremos numa sociedade evoluída, livre de Deus e seus dogmas insuportáveis. Que mal há, digamos a eles, quando alguém mata no útero um pequeno bebê de semanas? Tudo em nome da ‘libertação da mulher’! Quando já não houver lágrimas por ele, visto como um ‘pequeno amontoado de células’ que parasita o corpo da mulher, que deve ser eliminado como um manifesto de liberdade feminina contra o velho castigo do Paraíso, seremos vitoriosos. Ah, quão doce para nós é ver um bebê arrancado de sua mãe verdadeira e biológica, sob os aplausos da grande imprensa mundial, em favor de quem ‘alugou seu útero’, aproveitando-se da sua mais absoluta miséria : incapaz de ter um filho como fruto de amor, natural ou adotado, alguém decidiu tê-lo como fruto de dinheiro. Arrancar filhos dos braços das mães em lugares paupérrimos para entregá-los a endinheirados de países prósperos já foi considerado pela maior parte da humanidade como um gesto abominável de escravização. Hoje, graças ao nosso trabalho, é vanguarda comportamental. Seu filho traz na mochila um pouco de droga, e você está escandalizado? Tolo moralista. Digamos a eles : os governos malvados e opressores usam a questão da droga para fazer a polícia reprimir os pequenos prazeres juvenis! Não são tantos grandes artistas, muitas vezes inspirados por nós abertamente, os grandes ícones da rebeldia drogada? Seu filho é um inconformista, um vanguardista. Por outro lado, se ele está viciado, diremos que já não tem jeito, abandone-o e pronto! Despreze o seu filho que cai, despreze seu familiar que cai, destrua seu lar e vá em busca de seu próprio prazer!

Eduquemos, com as nossas hordes infernais, as próximas gerações, para que todos os prazeres sejam permitidos, e as velhas repressões e preconceitos dos tolos crentes sejam superados. Usaremos os avanços que Deus (nosso adversário) permite e inspira nas ciências médicas e químicas para convencer aos humanos que os limites humanos serão curados pelas ciências, e que reconstruir a Árvore da Vida que o velho Deus guardou no seu Paraíso, sem precisar do próprio Deus, é só uma questão de tempo. Vamos convencer que é necessário dar acesso pleno aos recursos políticos, econômicos e sociais aos de nossos partidos, para que possamos construir a justiça na terra com meios estritamente humanos (se trabalharmos bem os políticos, isso parecerá possível a eles), pela rejeição de qualquer menção a Deus nos espaços públicos. E quem dentre os humanos levantar dúvidas contra o nosso plano, que será proposto como um plano ‘libertador’ em favor de todos os humanos, será tachado de retrógrado, supersticioso, egoísta, antidemocrático e obscurantista.

Para que tudo isto? Ora, quando eles renunciarem a Deus completamente, já não haverá quem os proteja de nós. Serão nossos escravos eternos. Ora, meu pequeno aprendiz diabólico, será que você não leu a Bíblia? Não conhece a Tradição da Igreja? Não viu que aquele gesto de expulsão do Paraíso foi só o início de uma história de salvação absolutamente eficaz contra nós? Sim, vou te lembrar, apesar do asco que esta história causa em nós, demônios : a partir daquela queda, Deus enviou seu próprio Filho para que nós já não pudé ssemos fazer de novo com os seres humanos o que um dia fizemos com Adão e Eva : prometer-lhes o que jamais poderíamos dar, em troca da renúncia ao amor de Deus. Prometemos o poder e a eternidade, mas o que temos para dar? Só escravidão e morte...

Quem nunca testemunhou essa banalidade do mal em suas próprias vidas? Não falo aqui daqueles, tantos de nós, que, muitas vezes movidos por escolhas desacertadas, praticaram estas coisas e merecem todo nosso apoio e compaixão para superá-las. Falo, isto sim, daqueles que estão lutando para transformar tantos males, estes e outros, em políticas públicas, com o argumento de que na verdade são apenas pequenos males que, se praticados, gerarão enormes bens. A maior força destes consiste em nos fazer pensar que a nossa luta pelo bem é apenas uma resposta desproporcional e injusta aos pequenos males que eles querem nos impor em troca do grande ‘bem’ que as suas políticas estragadas prometem falsamente em nome de um suposto futuro melhor. Esta foi a estratégia da serpente no Paraíso. Esta ainda é o comentário que frequentemente escutamos quando nos opomos publicamente a alguma dessas políticas que São João Paulo II um dia chamou de ‘cultura da morte’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/uma-carta-do-inferno

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Terrorismo e Análise Social

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Ivanaldo Santos,
filósofo e doutor em estudos da linguagem pela UFRN


‘Diante da brutal sequência de atentados terroristas ocorridos na França, que ficou conhecido como Atentado de Charlie Hebdo, que chocou o mundo, e da atual onda de terrorismo que ameaça se espalhar pelo mundo, realizam-se cinco análises.

1) Em linhas gerais a atual onda de atentados terroristas vividos pela França, de um lado, trata-se de uma das mais brutais e desumanas sequências de atos terroristas que ocorreram na história contemporânea da humanidade. Do outro lado, é preciso ver que esses ataques não foram atos isolados. Existe um grande número de grupos terroristas atuando em escala quase planetária, entre os quais cita-se, por exemplo, Al-Quaeda, Boko Haram, Estado Islâmico e a Frente al-Nusra. O problema é que esses grupos são bem treinados, tem muitas e diversificadas fontes de financiamentos e ao longo dos últimos 30 anos vem promovendo atentados em vários países do mundo. É preciso ter consciência do que ocorreu na França não foi apenas um ato terrorista, mas uma grande falha nos sistemas nacionais (no caso da França) e internacionais de segurança.

2) Alguns intelectuais viram os atentados na França como um ato da direita. Essa é uma posição que deve ser respeitada. No entanto, essa posição segue um esquema político binário tradicional, oriundo do século XVIII, que divide a política e as ações sociais em esquerda e direita. Essa é uma reflexão muito ingênua, pois não leva em conta as profundas mudanças ocorridas no mundo contemporâneo. Sem contar que o terrorismo islâmico não se enquadra em direita ou esquerda. Em muitos aspectos, o Islã não viveu, até os dias de hoje, um aprofundamento no campo das ideias, da literatura, da teoria política e dos direitos humanos. Por exemplo, o Islã ainda precisa incorporar a sua estrutura de pensamento os valores da democracia e da liberdade oriundos dos gregos antigos. Em grande medida, o terror islâmico pretende implantar um modelo de sociedade fechado, muito semelhante a sociedade tribal do século VII d.C.

3) Alguns críticos sociais veem o terrorismo como uma forma de protesto social, de movimento social. É preciso rejeitar toda forma de terrorismo, trata-se de um ato covarde de ataque e destruição, quem mais sofre com um ataque terrorista é a população civil, especialmente mulheres, crianças e idosos. No entanto, é preciso ver que no mundo contemporâneo existe uma tendência de uma minoria (ou minorias) de dominar o cenário cultural em escala quase planetária. É comum vermos nos filmes, na TV, na mídia e em outros ambientes uma propaganda e a defesa de ideias que podem ser atribuídas a algum tipo de minoria. Entre essas ideias é possível citar, por exemplo, o casamento homossexual, o aborto e a legalização de drogas ilegais. O problema é que a maioria da população não compartilha com essas ideias. O fato é que o homem comum não está se sentindo representado pelas ideias que dominam o cenário cultural contemporâneo. Por causa disso, a população questiona esse tipo de transmissão de ideias. O homem comum pergunta-se : se vivemos em uma democracia, então porque as minhas ideias não aparecem? Porque apenas valores contrários ao que penso, aparecem? Esse tipo de situação, quase que uma ditadura de uma minoria esclarecida, está conduzindo setores dentro da sociedade a apoiarem atos desesperados, como é o caso dos ataques terroristas. A sociedade e a democracia contemporâneas precisam repensar as suas relações com o homem comum, o homem comum precisa se sentir mais representado, seus valores precisam aparecer mais na sociedade.

4) Fala-se muito que os atentados foram contra posições antirreligiosas do jornal Charlie Hebdo. No século XXI fala-se muito em diálogo e liberdade, mas lamentavelmente os grupos religiosos, que representam a maioria da população, estão marginalizados desse diálogo. Quase ninguém quer ouvir o que esses grupos dizem e o que pensam, são logo rotulados de conservadores, de retrógrados, autoritários, fundamentalistas e coisas semelhantes. O jornal francês Charlie Hebdo, que foi vítima de um brutal ataque terrorista, é um bom exemplo disso. Esse jornal gostava de publicar sátiras contra religiões (cristã, islâmica, etc), mas não parou para ouvir a voz que vem das religiões, o que as pessoas religiões tem a dizer e a fazer pelo mundo. Atualmente fala-se muito em inclusão e diversidade, mas o grande grupo humano que parece ser excluído são as religiões. Enquanto a modernidade não conseguir incorporar as grandes tradições religiosas (cristianismo, islamismo, judaísmo, etc) dentro dos grandes projetos de crescimento e aperfeiçoamento social, dificilmente haverá paz no mundo.

5) O que se pode esperar, para o mundo contemporâneo, após os ataques na França? Inicialmente é preciso ter esperança, pois a esperança é o sentimento que ajuda a vencer o medo. Além disso, daqui por diante é preciso repensar a cultura do diálogo reinante no mundo contemporâneo, uma cultura centrada nos grupos pós-modernos (homossexuais, aborto, drogas, etc). Os ataques na França demonstraram que existe uma maioria que não é pós-moderna e que não se sente representa pela atual cultura dominante. É preciso ter coragem de dialogar com essa maioria, do contrário, sem diálogo, poderemos esperar manifestações e até revoltas populares nos próximos anos. Temos que ouvir as maiorias, pois democracia se faz é com a maioria. Essa lei básica da democracia precisa ser retomada no mundo atual. É preciso ver que quase todos os dias acontecem atos terroristas e atos bem piores do que foram praticados na França. No entanto, os atos terroristas pouco ou não são divulgados pela grande mídia, pela intelectualidade e pela classe dos artistas. Existe quase um silêncio absoluto sobre os atos terroristas que se multiplicam no cotidiano de muitas regiões do mundo. Esse silêncio precisa ser quebrado, não podemos ficar horrorizados com um ato terrorista contra um jornal francês e silenciar diante de ataques muito piores ao redor do mundo.


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/terrorismo-e-analise-social

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Espetáculo e aberração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte

‘O dom da vida não pode pendular entre espetáculo e aberração no cotidiano da sociedade, da vida familiar e no dia a dia de cada um. Este movimento mata a cultura da simplicidade que revela, de maneira completa e autêntica, a glória do amor, razão única para empenhar-se na aventura de viver. Merece atenção o predomínio da perversa dinâmica pendular entre espetáculo e aberração, que infelizmente confere tônica à comunicação, ao funcionamento das relações interpessoais, ao jeito de fazer política e, até mesmo, ao modo de se usufruir da liberdade religiosa. Essa preocupação é pertinente porque tal dinâmica compromete a cidadania e é determinante na desestruturação da cultura. Não raramente, contribui para a deterioração de tradições, tão necessárias para o avanço da sociedade. A tendência de se rifar tudo o que se pode neste tempo, em razão de conquistas tecnológicas e conceitos reduzidos sobre liberdade, a partir da lógica perversa entre o espetáculo e a aberração, produz uma subcultura. A grave consequência é a despersonalização das relações sociais que marcam a sociedade contemporânea.

É assustador o grande interesse do cidadão, seu fascínio pelas situações aberrantes que ganham ares de espetacular e alimentam o lado sombrio da condição humana. Avançar, progredir, fazer, conquistar, inovar e outros verbos podem e precisam compor o vocabulário da cidadania contemporânea. No entanto, a simplicidade há de ser a tônica para que não se percam balizamentos importantes no direcionamento do que se escolhe fazer, projetar e construir. O que se deseja fazer não pode estar desconectado com o sentido inegociável de serviço dedicado à sociedade e à cultura, em fidelidade a valores e princípios. Caso contrário, a dinâmica do espetacular e da aberração alimentará o ego de pessoas e grupos. Seremos vítimas de síndromes muito perigosas. Estaremos sempre distantes do mais nobre sentido de cidadania, da autêntica vivência confessional, segundo a própria liberdade de escolha, com consequentes manipulações em vista de interesses que ferem a vida dos cidadãos, particularmente dos mais pobres, frágeis e indefesos. A síndrome da disputa, que acomete diversos segmentos da sociedade, é exemplo de prejuízo que resulta da falta da simplicidade como parâmetro. Essa síndrome é alimentada pelo desejo egoísta de ser considerado o mais, o primeiro, o melhor, uma necessidade que faz negar o outro pela desclassificação, muitas vezes forjada e mentirosa.

Infelizmente, muito do que se faz não é para atender necessidades históricas, o que a vida apresenta como demanda, como a busca pela superação das desigualdades sociais. Com frequência, os projetos são elaborados, nas diferentes áreas e campos do saber, simplesmente como busca de engrandecimento pessoal, no máximo grupal ou partidário. Ignora-se uma cultura consistente nos seus valores e princípios, capaz de alicerçar a cidadania. Assim, torna-se consolidado um contexto em que o espetacular e a aberração valem sempre mais, prejudicando a simplicidade que garante igualdade, profundidade e resultados cidadãos.

Funcionar segundo o pêndulo da dinâmica do espetáculo e da aberração impõe à sociedade uma necessidade de viver da criação de figuras idolatradas. Isto impede o alcance de conquistas que só são possíveis a partir de uma cidadania vivida na simplicidade, na qual as diferenças, no que se refere à importância social ou à excelência no que se faz, não têm o restrito sentido de superar os outros. Ao contrário, estas características constituem responsabilidade ainda maior de colaborar para construção cidadã do tecido social, cultural e religioso que sustenta substantivamente um povo. É alto o preço a ser pago quando se segue no caminho contrário desta compreensão. Convive-se, por exemplo, com os atrasos na mudança de cenários abomináveis e com a espetacularização de feitos e fatos, que nada contribuem para superar a distância entre diferentes camadas da sociedade.

Só a simplicidade alimenta a coragem de uma postura cidadã, fazendo com que todos sintam vergonha das desigualdades sociais, do modo medíocre como se faz política no país e, a partir disso, sejam capazes de gestos mais efetivos. Ela capacita cada um a ser o que é não por vaidade, mas em razão da urgente mobilização para se reconstruir a sociedade. Refletir este tema - a dinâmica pendular que coloca o dom da vida entre espetáculo e aberração - é oportunidade para se cuidar, em tempo, do acelerado processo de desumanização em curso, um risco para todos, que provoca prejuízos irreversíveis.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/espetaculo-e-aberracao