*Artigo
de Paulo Vasconcelos Jacobina
O desonesto contemporâneo vai além do hipócrita.
Ele não admite nenhum critério, nenhuma direção, que possa permitir qualquer
julgamento objetivo no campo da ética. São como monstros espirituais que
elegeram a monstruosidade como padrão estético.
‘Não
há dúvida de que o tema da corrupção está na linha de frente do nosso
noticiário. Há, hoje, poucos membros do Ministério Público ou da Magistratura
que não estejam ocupados com o tema, seja trabalhando diretamente com ele, no
combate frontal, seja debatendo-o, seja de alguma forma apoiando aqueles que
estão dedicados ao combate, acumulando o serviço burocrático que eles deixaram
para trás, de modo a possibilitar que eles possam dedicar-se a esta atividade.
As coisas não eram
assim há vinte e cinco anos, quando eu entrei no Ministério Público. Muitos
temas ocupavam então a pauta de uma jovem Constituição Federal : destaco a
nossa empolgação, à época, com as novidades do direito ambiental, da defesa do
consumidor, da proteção a crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e a
consolidação da cidadania de modo geral, numa época, como aquela, de
redemocratização recente e de otimismo cívico. Hoje, todos estes temas ainda
nos ocupam, mas a questão da corrupção sem dúvida destaca-se como central na
nossa atuação.
Não por
coincidência, mas porque este tema tem relevância para o mundo inteiro, o Papa
Francisco vem chamando a atenção de todos para a questão da corrupção, mas a
partir de um ponto de vista muito mais profundo do que aquele que norteia nossa
atuação judicial. Este tema está no capítulo sétimo de seu livro de entrevistas
lançado agora, mas já vinha sendo repetido e destacado por ele em
pronunciamentos e homilias desde o início do seu pontificado. Destaco a homilia
de 11 de novembro de 2013, em que ele apontou muito claramente a diferença
entre os pecadores, que somos todos nós, e os corruptos, aqueles que
mergulharam na hipocrisia e são incapazes de arrependimento e de mudança. O
Papa dizia :
‘A diferença é quem peca e se arrepende, pede
perdão, se sente fraco, se sente filho de Deus, se humilha, e pede a Jesus a
salvação. Mas quem escandaliza não se arrepende. Continua a pecar, mas faz de
conta que é cristão : uma vida dupla. E a vida dupla de um cristão provoca
muitos danos’.
O Papa Francisco
afirmava muito duramente que o corrupto é aquele que é capaz de ir à Igreja, de
declarar-se a favor dos pobres, mas com a outra mão rouba do estado, rouba dos
mais pobres. ‘Aqui não se fala de perdão’,
pois quem faz vida dupla é um corrupto e está preso num estado de suficiência, ‘não sabe o que é a humildade’. O Papa
lembrava que Jesus falava deles como de um ‘sepulcro
caiado’, ou seja, externamente belos, mas podres por dentro.
‘Todos nós conhecemos alguém que está nesta
situação e quanto mal faz à Igreja! Cristãos corruptos, padres corruptos… Quanto
mal provocam à Igreja! Porque não vivem no espírito do Evangelho, mas no
espírito mundano’.
Na Carta aos
cristãos de Roma, São Paulo dizia para não entrar nos esquemas, nos parâmetros
deste mundo – esquemas que levam à vida dupla:
‘Uma podridão ‘vernizada ’: esta é a vida do
corrupto. E Jesus não os chamava simplesmente de pecadores, mas de
‘hipócritas’. Com os outros, os pecadores, Jesus não se cansa de perdoar, com a
condição de que não façam esta vida dupla. Peçamos hoje a graça ao Espírito
Santo de nos reconhecer pecadores. Pecadores sim, corruptos não’.
Motivado por estas
palavras de Francisco, resolvi aprofundar minhas pesquisas sobre a honestidade;
para minha surpresa, descobri que eu não conseguiria definir com muita precisão
o que é a honestidade. Minha concepção de honestidade ia pouco além de uma vaga
ideia de autenticidade, de sinceridade, de capacidade de viver coerentemente
com os próprios princípios e de falar abertamente sobre aquilo em que acredita.
Mas isto é muito pouco. Na minha já longa carreira profissional, conheci muitos
criminosos perigosos que, marcados pela psicopatia, eram capazes de uma enorme
autenticidade : falavam claramente sobre os crimes que cometeram e viviam uma
profunda coerência com seus próprios instintos destrutivos. Alguns
desenvolveram uma escala própria de valores extremamente coerente, como aqueles
que só roubavam de ricos ou só matavam ‘bandidos
emprestáveis’. Não foram poucos os empresários sonegadores, fraudadores e
lavadores de dinheiro que processei e que eram capazes de fazer uma defesa
lúcida e coerente de suas próprias condutas fraudulentas a partir de postulados
de teoria econômica ou política, e de transformar sua sonegação numa espécie de
manifesto de resistência aos ‘maus
políticos’ ou à ‘má política
econômica’, ou mesmo à ‘sobrevivência
do capitalismo’ ou à ‘liberdade de iniciativa’ ou de ‘oportunidade’, como ouvi, uma certa feita, de um réu que comandava
uma quadrilha de tráfico internacional de pessoas. Honestidade deve ser algo a
mais do que autenticidade, coerência ou franqueza, portanto.
Movido pelas
palavras do Papa, mergulhei no estudo do pensamento cristão mais antigo e, para
minha surpresa, encontrei uma bela defesa da honestidade numa página de São
Tomás de Aquino, da sua impressionante ‘Suma
Teológica’. Ali, Tomás relaciona a honestidade à temperança, e a define
como uma ‘beleza espiritual’; essa
definição estética da honestidade me surpreendeu. Tomás relaciona a honestidade
com a proporção delicada e admirável do equilíbrio que adquire uma pessoa
virtuosa. Ou seja, a honestidade é a capacidade de admirar e louvar as
qualidades da virtude, bem como a alegria contemplativa de ter virtudes e agir
em conformidade com elas. Uma capacidade estética muito mais profunda,
portanto, do que aquela parte da estética que se preocupa apenas com a
aparência das coisas e das pessoas. Trata-se, pois, de amar, em si mesmo,
aquilo que é bem proporcionado, justo, pensado, ponderado e medido, e buscar
viver em coerência com essa bela medida espiritual. Neste sentido, a
honestidade pode e deve ser aprendida e ensinada. E relaciona-se, segundo Tomás
de Aquino, com a virtude da temperança. Diz Tomás :
‘Chama–se honesto ao que tem uma certa beleza
subordinada à razão. Ora, o ordenado segundo a razão é naturalmente conveniente
ao homem. Pois, cada um naturalmente se deleita com o que lhe é conveniente.
Por isso, o honesto é naturalmente deleitável ao homem, como o prova o Filósofo
ao tratar dos atos de virtude.’ (S. Th, II, II, Q. 145).
O hipócrita, pois,
é alguém que de certo modo ainda paga um ‘tributo’
à estética da honestidade : quer ‘salvar’
as aparências externas da beleza que não possui no seu interior. Considera-se,
pois, justificado por cultivar uma vida cercada de confortos e riquezas, como
uma espécie de ‘maquiagem’ da sua
desarmonia interior, ainda que isto se dê às custas de sua probidade, da lisura
no tratamento dos bens de terceiros ou dos bens públicos, do prejuízo aos mais
fracos ou mais pobres, ou mesmo à coletividade.
O desonesto
contemporâneo, no entanto, vai além do hipócrita. Ele nem sequer admite que
haja, objetivamente, qualquer possibilidade de desenvolver uma beleza
espiritual, porque não admite nenhum critério, nenhuma direção, que possa
permitir qualquer julgamento estético no campo da ética. São desprovidos não
somente da virtude, mas da própria ideia de que algo como o bem possa existir
fora do campo da sua própria vontade. São monstros espirituais que elegeram a
monstruosidade como padrão estético, e portanto até podem, muito autenticamente
(segundo pensam), proclamar-se como ‘honestos’.
Neste sentido, eles vão além da hipocrisia denunciada pelo Papa como raiz da
corrupção: estragam os padrões estéticos de honestidade de gerações e gerações
– formam nossas crianças e jovens para nem sequer serem hipócritas, mas
verdadeiros ‘cegos morais’; adotam a
monstruosidade ética como padrão de beleza e criam monstrinhos que se acham
lindos. E em seguida proíbem os espelhos e denunciam a verdadeira estética
espiritual como ‘intolerância’ ou ‘imposição religiosa’. Não é. Se fosse,
não haveria tanta revolta no mundo inteiro, igualmente compartilhada entre
ateus, agnósticos e fiéis das mais diversas culturas e religiões, contra a
corrupção que assola nosso dia-a-dia.
Estabelecer a
deformação espiritual como padrão estético, pela promoção da intemperança e da
incontinência como virtude, como ocorre hoje na nossa educação formal e nos
nossos meios de comunicação, não transforma a ‘autenticidade’ em honestidade, apenas multiplica a corrupção e a
transforma no problema epidêmico em que ela se tornou hoje, porque destrói os
critérios. Junto com a honestidade vai embora aquela outra postura que Tomás de
Aquino aponta como pressuposto necessário à virtude, que é a capacidade de
envergonhar-se (S. Th. II-II, Q. 144). Lembro-me das mães de antigamente, que,
ao corrigirem seus filhos, diziam simplesmente : ‘que feio o que você fez!’. Temos que defender essa velha estética.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://pt.zenit.org/articles/a-honestidade-como-estetica-a-corrupcao-e-a-hipocrisia/
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