sexta-feira, 31 de julho de 2020

O dom de ser feliz com pouco

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 A pandemia pode ser tempo de aprender a valorizar o que realmente importa

A pandemia pode ser tempo de aprender a valorizar o que realmente importa

*Artigo de Pilar Jericó

  

‘O meio do ano é um bom momento para refletir e construir planos para o semestre que se inicia. Especialmente depois de termos vivido meses tão atípicos como os últimos. A crise econômica nos levará a perder parte do nosso poder aquisitivo, e teremos que aprender a viver com menos. Entretanto, sabemos que qualquer crise também pode ser uma oportunidade se mudarmos nossa maneira de contemplá-la.

Temos a ocasião perfeita para rever prioridades, desempoeirar sonhos que ficaram no papel e, sobretudo, aprender a valorizar o que realmente importa. Muitas vezes nos apegamos a coisas que, no fundo, só ocupam espaço, mas que não nos fazem felizes. Uma crise é um bom momento para nos desfazermos de tudo aquilo que não contribui para nós e para nos centrarmos no realmente importante. Temos uma valiosa pista em O Pequeno Príncipe, a maravilhosa obra de Antoine de Saint-Exupéry : ‘O essencial é invisível aos olhos’. Aproveite este mês para refletir sobre as coisas essenciais em nossa vida, treinar o desapego, que tanto nos custa, e confrontar o próximo semestre com mais força e maior determinação. Estas são algumas ideias práticas.

Comecemos com algo simples : revisar os armários e jogar fora tudo o que não nos sirva. Qualquer mudança começa com um pequeno passo. Neste caso, os armários são quase sempre os típicos espaços onde acumulamos tudo o que já não usamos ou não queremos. Revisar e eliminar as peças que não vestimos mais é um começo que nos oferece serenidade e dá espaço para treinar o que mais nos custa : o desapego. Além disso, se doarmos aquilo de que nos desprendemos, teremos uma dupla satisfação. Não podemos nos abrir a novas oportunidades se carregarmos uma mochila pesada. Se quisermos aprender algo novo, temos que saber dizer não ao que já não nos serve mais.

Outro exercício prático é fazer uma lista dos momentos mais felizes que vivemos e identificar o que tinham em comum. Muito possivelmente não estavam relacionados com o dinheiro, e sim com aspectos intangíveis : a amizade, a família, o contato com a natureza, a possibilidade de viver experiências novas… Quando as pessoas precisam aprender a viver com menos, devem se centrar no imaterial, naquilo que está ao nosso alcance sem que seja preciso comprar : cultivar a amizade, viver experiências em nossa própria cidade, aprender coisas novas ou cuidar dos pais se tivermos tido que voltar para a casa deles.

Muita gente vive presa em gaiolas de ouro. É verdade que no meio de uma crise, tomar decisões profissionais se torna mais vertiginoso que em outras épocas. Entretanto, vale a pena reconhecer qual é a gaiola de ouro onde estamos presos e que nos impede de alcançar a felicidade. Pode ser um trabalho, o sucesso, uma indenização, uma relação sentimental, uma casa… Talvez as gaiolas de ouro sejam as mais difíceis de se desapegar, mas também são as mais libertadoras. Uma vez que nos desfazemos delas, encontraremos o caminho livre. Agora que a crise econômica e sanitária causada pelo coronavírus deixou muitas seguranças de perna para o ar, é uma boa oportunidade para identificar o que nos mantém presos.

Para identificar o essencial de nossas vidas e nos centrar nisso, o autor norte-americano Stephen Covey propõe um exercício prático em seu emblemático Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes. Entre as primeiras dinâmicas do livro, sugere escrevermos a carta que gostaríamos que fosse lida em nosso funeral. Soa um tanto lúgubre, mas nos ajuda a tomar uma perspectiva de como queremos ser recordados e a que devemos dedicar nossa atenção. Queremos ser recordados como o mais rico ou como a pessoa que mais ajudou os outros? Talvez, em nossa carta, voltemos a nos centrar no essencial, naquilo que é invisível aos olhos, mas que realmente nos permite ser felizes.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/fato-em-foco/613/2020/07/o-dom-de-ser-feliz-com-pouco/


terça-feira, 28 de julho de 2020

Catequese como inserção na comunidade dos batizados

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 A fé cristã tem como eixo central, o seguimento a Jesus na comunidade dos batizados

*Artigo do Padre Francisco Thallys Rodrigues,

presbítero da Diocese de Crateús,

trabalha na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, Tauá, CE


‘Desde os inícios do cristianismo houve um processo de preparação para a inserção nas comunidades cristãs. Ao longo dos séculos, esta preparação passou por muitas mudanças em sua estrutura e organização, a partir das necessidades de cada tempo e lugar. Desde a virada antropocêntrica, iniciada na modernidade e radicalizada na subjetividade da modernidade líquida, a catequese é desafiada a romper o casulo do individualismo, para renascer como catequese que insere a pessoa no seguimento a Jesus, na comunidade dos batizados.

As primeiras comunidades cristãs estavam organizadas em torno da memória de Jesus e da fração do pão, os bens eram partilhados segundo as necessidades de cada um (At 2, 42-47). O crescimento e a expansão das comunidades trouxeram a necessidade de uma preparação para o ingresso pleno. Era necessário conhecer quem era Jesus e as exigências do ser cristão. Este processo ficou conhecido como catecumenato. Após um tempo de preparação, os catecúmenos eram acolhidos na comunidade, podendo participar, integralmente, da fração do pão (Eucaristia), bem como nas demais atividades. Neste percurso, os catecúmenos despojavam-se do homem velho para uma vida nova. No batismo se ‘passava dos ídolos ao Deus vivo e verdadeiro’ (TABORDA).

Ora, o anúncio da fé cristã, sua preparação e vivência, aconteciam dentro de uma comunidade concreta de pessoas que se entendiam como irmãos e irmãs, filhos de Deus, a partir do batismo. Era impensável cristãos sem comunidades, que vivessem isolados. Neste sentido, pôde-se dizer que a fé cristã é necessariamente eclesial, isto é, nasce a partir da comunidade dos batizados que professam a fé em Jesus Cristo ressuscitado, que revelou o Pai e nos enviou o Espírito. A comunidade gera, no batismo, filhos e filhas e os alimenta por meio da fração do pão, da vida fraterna e da caridade. 

Quando se toma os textos que compõem o Novo Testamento, nota-se a presença viva de diferentes comunidades, nas suas alegrias e tristezas, como seguidoras de Jesus. Os Evangelhos evidenciam as crises e os desafios enfrentados, enquanto que as Cartas de Paulo, são dirigidas as comunidades, que receberam o anúncio da fé e que passam por dificuldades. Portanto, desde uma perspectiva bíblica, não se pode pensar em cristãos avulsos, desligados de comunidades concretas.

No decorrer dos séculos, este processo de preparação passou por diversas mudanças. Por muito tempo, a catequese foi compreendida como preparação exclusiva para os sacramentos, estando ancorada em catecismos, que ensinavam ‘fórmulas e doutrinas’, sem uma clara contextualização desta vivencia da fé. Entretanto, mesmo neste tempo, a catequese acontecia no seio da comunidade, a partir de pessoas designadas para esta missão.

Nos últimos tempos, tem ocorrido muitos esforços, para uma preparação da catequese que brote desde a comunidade de fé e que conduza ao seguimento a Jesus. A catequese de inspiração catecumenal, é uma tentativa de resposta ao tempo presente, a partir das intuições fundamentais da Tradição da Igreja, sobretudo, a partir do Concílio Vaticano II. O êxito desta proposta, depende de um trabalho conjunto, que conjugue diferentes instâncias : famílias, animadores, membros da comunidade[1] e, principalmente, o protagonismo do catecúmeno em vista de gerar um verdadeiro discipulado, a partir da experiência concreta com uma pessoa, Jesus Cristo, morto e ressuscitado (Kerigma).  Todos devem sentir-se corresponsáveis pela formação dos novos membros.

Não se pode ceder à tentação da individualização da fé cristã que reduz o Reinado de Deus, anunciado por Jesus, a um sentimento, doutrina ou filosofia, que pode ser vivido de modo individualista. Cada vez mais, a fé cristã tem sido apresentada, desprovida de seu caráter comunitário, do seu compromisso com a vida em todas as suas expressões. Jesus é apresentado como um fazedor de milagres, que resolve todos os problemas, mas que não gera compromisso com o Reinado de Deus. A partir dos dados dos Evangelhos e das primeiras comunidades cristãs, fica evidente que esta é uma grave distorção. A fé cristã tem como eixo central, o seguimento a Jesus na comunidade dos batizados.

É preciso passar de uma catequese que ensina doutrinas e fórmulas, a uma catequese que leve ao encontro com Jesus Cristo. A catequese deve levar a inserção no mistério de Cristo dentro da comunidade, para que se experimente os mesmos sentimentos que perpassaram Jesus (Fl 2,5). Precisamos de uma catequese que prepare para a vivência do Evangelho, que não seja puramente sacramental. Nas palavras do papa Francisco : ‘A iniciação cristã exige que nas nossas comunidades se realize sempre mais um itinerário catequético que ajude a experimentar o encontro com o Senhor, o crescimento no seu conhecimento e o amor pelo seu seguimento’.

O encontro de Jesus com a Samaritana (Jo 4,5-42) ilustra o processo mistagógico que deve perpassar a catequese. Neste encontro, Jesus estabelece uma relação com a samaritana, rompendo todas as barreiras religiosas e étnicas, na qual apresenta a água viva que sacia todas as sedes humanas. Este encontro com Jesus, leva a samaritana a deixar o cântaro, para anunciar aos seus, que encontrou o sentido para a vida. Queira Deus que nossa catequese seja, cada vez mais, mistagógica, levando ao encontro com Jesus e com os irmãos.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1461191/2020/07/catequese-como-insercao-na-comunidade-dos-batizados/

 

[1] E principalmente o protagonismo do catecumeno em vista de gerir um verdadeiro DISCIPULADO, a partir da experiência concreta com uma pessoa, Jesus Cristo, morto e ressuscitado (Kerigma)

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Delírios e lições

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Achar-se a única referência ou a exclusiva fonte para se alcançar soluções é não se perceber como aprendiz

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘A pandemia da Covid-19 expõe, ao mesmo tempo, delírios e lições. Os delírios tornam-se evidentes nos descompassos sociais, a exemplo do descaso com os pobres, ou a partir das inabilidades dos representantes do povo. Situações que pedem mudanças, a partir do aprendizado de muitas lições. Esse aprendizado requer renovação de mentalidades, de práticas e de estilos de vida. Um reconhecimento dos equívocos em determinadas escolhas que incidem não apenas no mundo da política, mas também no campo da cultura e, lamentavelmente, até mesmo na esfera religiosa. Diante da necessidade de se aprender muitas lições, oportuno é lembrar-se de que a eficácia na aprendizagem depende de um importante aspecto : as pessoas, indistintamente, assumirem a condição de discípulos, uma nuance compartilhada por Jesus, em sua maestria.

Ensina muito e bem quem se coloca na condição de aprendiz. Essa condição permite o compartilhamento de convicções e experiências. E a atitude de compartilhar é vetor de mudanças, caminho para alcançar metas capazes de responder ao clamor do povo sofrido. Por isso, precisam estar matriculados na condição de aprendizes, prioritariamente, os que sufragam seus nomes em eleições, pois é lastimável constatar o despreparo de representantes do povo no exercício de suas funções. Falta substrato humanístico e há indiferença em relação à meta de se edificar uma sociedade solidária. Quando se analisa o conjunto de situações da atualidade, avaliando o desempenho de líderes de diferentes lugares do mundo, chega-se facilmente a uma conclusão : mudanças são necessárias. Percebe-se que a humanidade está aprisionada em entendimentos equivocados. E a qualidade de entendimentos é importante termômetro para avaliar a condição de uma civilização.

Essa qualidade depende dos processos educativos responsáveis pela formação do ser humano. Por isso mesmo, é preocupante quando um país convive com o sucateamento do campo educacional, confiando-o a mãos inábeis, a agentes pouco lúcidos. A consequência desse mal é a desconsideração e o desperdício da capacidade humana para promover o desenvolvimento integral da sociedade. Urgente é, pois, investir educativamente no desenvolvimento de entendimentos adequados, de pessoas capazes de conduzir a sociedade a partir de valores que sustentam a vida, promovendo relações sociais, políticas e culturais justas. Esses processos educativos qualificados exigem uma condição fundamental : cada pessoa se coloque na condição de aprendiz.

Ninguém pode acreditar que tudo sabe, particularmente no mundo contemporâneo, caracterizado também pela velocidade das mudanças e por suas muitas complexidades. Perceber-se, permanentemente, como aprendiz é também caminho para vencer delírios, que se propagam especialmente neste tempo de pandemia, afetando mentes, vidas e corações. Há os que se acham onipotentes. Outros se tornam vítimas do medo. E muitos se apegam a convicções equivocadas, que podem levar a graves enfraquecimentos institucionais, a partir de extremismos, por exemplo.

Achar-se a única referência ou a exclusiva fonte para se alcançar soluções é não se perceber como aprendiz. Isso leva a equívocos nos diferentes campos da vida, inclusive em contextos institucionais.  Trata-se de uma postura que deve, urgentemente, ser substituída pela humildade. Somente assim é possível seguir um percurso que vai possibilitar diálogos e, consequentemente, permitir encontrar a solução mais eficaz para diferentes desafios. Reconhecer-se aprendiz, sempre e de modo humilde, é uma atitude indispensável para ajudar a recompor os tecidos socioculturais, político e religioso da civilização contemporânea, sanando delírios, enquanto são aprendidas novas lições.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/artigo/8942/2020/07/delirios-e-licoes/


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Essas religiosas pegam o melhor da Idade Média para inovador projeto do século XXI

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  

*Artigo de Solene Tadié,

National Catholic Register, Redação ACI Prensa

Tradução : Nathália Queiroz

 

‘‘Uma start-up do século XII com o estilo do século XXI’, com este lema as monjas cistercienses da Abadia de Boulaur em Occitane, no sudoeste da França, descrevem o ambicioso projeto de renovação que fizeram para seu mosteiro.

Essa frase se refere a todo um universo do passado, a uma época em que o cristianismo alcançou o auge da glória na Europa, um tempo que muitas pessoas recordam nostalgicamente, pois no Velho Continente há uma séria crise de vocações, que se agrava pelo número crescente de mosteiros que se veem obrigados a fechar.

Nesse contexto complicado para a Igreja Católica, o anúncio recente de um plano de reconstrução de 4 milhões de euros para este antigo priorado de Fontevrist, localizado em uma cidade pobre e pequena da França, foi recebido como um presente da divina Providência. O monumento do século XII, que abriga uma comunidade de monjas cistercienses desde 1949, estava em péssimo estado quando decidiram restaurá-lo.

Este trabalho começou no final da quarentena de coronavírus e inclui a reconstrução de um grande estábulo para abrigar animais para o Natal assim como local para o processamento de queijos, geleias, patês e farinha.

O objetivo é a reprodução de uma antiga fazenda monástica, que permitiria às monjas cuidar de toda a cadeia de produção, utilizando os recursos em sua propriedade de 45 hectares, onde haverá árvores frutíferas, vacas e porcos, entre outros.

O ambicioso projeto, que recebeu o nome de Granja 21’, faz parte da vasta atividade da comunidade de Boulaur, que atualmente possui 27 membros (serão 31 em setembro), com uma média de cinco novos candidatos a cada ano. A idade média das religiosas é de 45 anos.

É uma graça muito bonita para nós em um momento em que faltam vocações em todos os lugares, mas também implica uma grande responsabilidade, porque temos que cuidar de todas essas mulheres, de suas necessidades primárias, saúde e aposentadoria’, explicou ao National Catholic Register (NCR) a Irmã Anne, que supervisiona o projeto.

As religiosas, que seguem a Regra de São Bento, começaram há cinco anos a pensar em diferentes maneiras de maximizar sua produção e obter renda, que também lhes permita ter um lugar estável e atrativo, em uma região relativamente pobre e isolada.

O projeto gerou muito entusiasmo em toda a região e em outros lugares. O vídeo da apresentação de 2019 foi muito bem-sucedido nas redes sociais e também recebeu ampla cobertura nos meios tradicionais.

Desde então, as doações começaram a chegar através da plataforma de crowdfunding chamada CredoFunding. No entanto, as religiosas ainda precisam de mais doações para tornar o projeto realidade.

Haverá projetos participativos durante todo o verão, nos quais os voluntários nos ajudarão a fazer tijolos de terra para construir as fachadas do estábulo, usando a terra da abadia’, indicou a irmã Anne, explicando que algumas pessoas que não creem também ajudarão pois ficaram edificadas e se sentiram animadas pelo dinamismo da comunidade e, sobretudo, pela audácia deste projeto liderado por mulheres.

Nesse sentido, as monjas já entraram em contato com outras abadias, bem como associações e empresas leigas que estão dispostas a seguir seu caminho, cada uma com o seu jeito particular.

Numa época em que o lugar das mulheres na Igreja é muito debatido e sujeito à instrumentalização política, esse projeto aparece para lembrar que a tradição monástica sempre foi uma maneira pela qual as religiosas podem expressar plena e livremente seu potencial.

O setor agrícola, que se converteu em um mundo predominantemente masculino, foi durante séculos uma maneira de garantir a independência econômica das ordens religiosas femininas.

Em nossa ordem de Císter, era comum no século XII que as abadessas fossem a cavalo visitar suas terras e fundações’, disse a irmã Anne. Embora o objetivo das religiosas seja ‘promover o gênero feminino’, reforçam que elas têm uma perspectiva inclusiva.

Estamos muito felizes em poder colaborar com os homens e seu gênero específico e, ao mesmo tempo, não aceitamos que nos restrinjam e que nos digam que somos apenas pequenas monjas que não podem desenvolver projetos de larga escala sozinhas’, disseram as religiosas.

Sabemos que podemos fazê-lo, mas precisamos trabalhar duro para isso, estar unidas e saber exatamente para onde estamos indo. Sempre com o Senhor’, acrescentou.

Queremos permanecer fiéis a essa dinâmica, que teve um impacto na economia do século XII, agora com os meios do século XXI : Não teremos carros de boi como antes, mas nossos amigos norte-americanos certamente terão orgulho do nosso trator John Deere’, disse a irmã Anne e recordou que, como na era dos construtores de catedrais, o que buscam é nutrir o gênio da cultura atual por meio de contribuições artísticas e arquitetônicas destinadas a preservar e melhorar as paisagens.

Essa perspectiva tem um custo significativo, mas nosso objetivo não é apenas ganhar a vida pelos próximos 30 anos. Queremos construir para a eternidade, construir um local histórico que dure e que possa ser transmitido às gerações futuras. A Idade Média é o exemplo perfeito dessa filosofia’.

Com essa aproximação em mente, o projeto Granja 21 também incluirá a construção de uma grande biblioteca para receber os manuscritos mais valiosos da comunidade, a maioria dos séculos XIII e XIV.

Lembrando que a dinâmica dos mosteiros na Idade Média permitiu que a Igreja crescesse e moldasse de maneira sustentável a paisagem cultural do Ocidente, a Irmã Anne afirmou que o Evangelho só pode enraizar-se na cultura europeia de hoje através da renovação da vida monástica que seja capaz de tocar almas.

Outro aspecto essencial do projeto refere-se aos benefícios que os habitantes locais poderão obter dele. Ao fazer da abadia um atraente centro cultural, turístico e patrimonial, as monjas de Boulaur esperam poder oferecer apoio às empresas locais e incentivar a criação de novos empregos, além de oferecer um local para comprar mantimentos para os habitantes do local que não podem ir facilmente fazer compras na cidade. Esse benefício poderia se estender a toda a região.

As pessoas da região são muito sensíveis ao que fazemos, porque priorizamos as empresas locais para concluir as obras da abadia, e favorecemos os canais de distribuição de varejo e as vendas diretas de produtos de qualidade fabricados no local’, assegurou a religiosa cisterciense.

Queremos criar uma nova aventura para ganhar a vida, enquanto apoiamos muitas pessoas, o maior número possível, considerando a evolução de nossa sociedade’, concluiu a irmã Anne.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.acidigital.com/noticias/essas-religiosas-pegam-o-melhor-da-idade-media-para-inovador-projeto-do-seculo-xxi-88731


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Por que nos secularizamos?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 ATEIZM

*Artigo de Josep Miró

‘Não pretendo falar do secularismo em geral, mas do secularismo dos próprios católicos, dentro da Igreja, porque é evidente que, se ele não existisse, a sociedade não teria seguido ao longo da história este caminho de afastamento de Deus – ou, pelo menos, não na proporção que esse afastamento atingiu. A origem dos danos, por conseguinte, está entre nós mesmos e continua viva e atuante, apesar das diversas respostas, em muitos casos acertadas.

Os movimentos eclesiais, implícita ou explicitamente, foram respostas a esse problema interno. Ao dizer isso, não estou menosprezando a força da dinâmica social. É evidente que não. Mais uma vez, refiro-me e teorizo sobre a sociedade desvinculada. A sociedade em si tem uma ontogênese cristã, que pode remontar a São Paulo e Santo Agostinho, e que consiste na descoberta do valor da consciência pessoal, da subjetividade. Mas, na lógica cristã, esta subjetividade se encontra delimitada pela relação com Deus e, quando este vínculo se rompeu, principalmente a partir do Iluminismo, o subjetivismo se desenvolveu como uma torrente imparável e arbitrária.

Voltando ao centro da questão, quero destacar que o que nos falta é algo muito elementar e ao mesmo tempo difícil de conseguir, aquilo que os mestres da oração procuram e que faz parte da riqueza comum dos grandes Padres da Igreja : viver e agir na presença de Deus. Em outras palavras, a ruptura interior, o secularismo católico, são maneiras de viver o cotidiano, individual ou coletivo, sem que se esteja na presença de Deus.

Quando as aulas de uma escola ou universidade católica não começam com uma oração ou algum tipo de referência a Deus, estão declarando que não existe nenhuma diferença entre essas instituições e as do âmbito laico ou mesmo ateu. Estão dizendo que Deus não existe; e não basta enunciar a Sua existência em algum documento cuidadosamente guardado ou em declarações oficiais. Deus só existe em nosso coração quando permitimos que Ele viva todos os dias, em cada ato cotidiano.

Não existe um momento específico para Deus, pois a vida toda é orientada a Ele. E isso é difícil para uma consciência acostumada com o pecado, para um espírito que não foi alimentado previamente com a satisfação que essa presença proporciona; por isso, o católico acaba fugindo desta necessidade, enganando a si mesmo e se comportando como se Deus não existisse, apesar dos enfeites religiosos que pode usar na sua forma de viver.

Viver na presença de Deus tem muitas consequências, mas há uma que se destaca e afeta a vida coletiva : a comunhão entre as pessoas. Deus se faz presente na medida em que somos capazes de fazer essa comunhão surgir. E, na proporção em que a comunhão é substituída pelo nada ou pelo enfrentamento, a ausência de Deus é notável.

Quando falamos de comunhão, que é um estágio superior, falamos também de construção da comunidade, que é o melhor antídoto para a sociedade desvinculada. Construir comunidade com todos aqueles com quem compartilhamos uma memória, um projeto, uma vida; comunidade na escola, no trabalho, na política – e nesta última, até mesmo entre os opostos, existe ou deveria existir um vínculo forte, uma união construída pela vontade de buscar o melhor para a pólis. Isto se chama amizade cívica, virtude apontada por Aristóteles para o bom governo da cidade. Poderíamos traduzir isso, mais ou menos, como concórdia.

Uma última reflexão diz respeito ao fato de que, em nossa época, a resposta política e econômica precisa ser buscada precisamente na teologia. Em um mundo secularizado radicalmente, como o nosso, só esta forma de pensar, esse instrumento intelectual, nos leva a conceber as respostas às necessidades humanas a partir da presença de Deus, buscando a perspectiva de Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2020/07/21/por-que-nos-secularizamos/


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Virtualização da Fé em tempos de templos vazios

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  A Fé sempre passou por uma mediação, e toda mediação vem de uma narrativa 'tecno-lógica'

*Artigo de Vinícius Paula Figueira

‘O novo normal, forçado pela pandemia, que poderíamos chamar de processo de rapidação, exigiu mudanças em inúmeros âmbitos do mundo. Tocou os estabelecimentos comerciais que se despertaram para o delivery; tocou o ambiente corporativo para transformar sua gestão, interligar a empresa à casa do colaborador; tocou a Igreja para que encontrasse uma forma nova de possibilitar experiências de fé; entre outros. Então, nasceram as Missas onlines, surgiram lives formativas, cultos remotos e por aí vai. São as novas formas de se conectar ao Sagrado? Há perigo nisso? Até onde a religião pode ir no mundo digital?  Será que pode desbravar?

Primeiro precisamos entender que os templos vazios geraram ou transformaram as próprias casas em um templo. Hoje, o banco da capela, se tornou o sofá da sala. As casas se tornaram espaços propícios para comunhão, já que não se pode ‘comer a eucaristia’. No fundo, temos um novo ambiente para a fé que é encontro, ou, se preferir, experiência de encontro com o Sagrado, que vem ao nosso encontro. Podemos até dizer que a ‘virtualização’ da vida já aconteceu, quando nos deparamos com o fato de que Deus se conectou a um ser humano, puramente gente, para que assim o ser humano pudesse se conectar ao Divino.

Assim, podemos perceber que, embora entendemos que tudo isso que estamos vivendo virtualmente, seja novo, sua forma já estava presente no começa do novo tempo. Hoje, esse formato ganha um novo jeito com a internet. A fé não se perde, mas ganha uma nova mediação. A Fé sempre passou por uma mediação, e toda mediação vem de uma narrativa tecno-lógica. Exemplo : a técnica da fala, que Jesus usou para pregar, permitiu e permite que o ser desenvolva sua própria humanidade, sendo que texto, imagem e fala, tudo está interligado.

Esse novo tempo exige uma nova forma de contato, mesmo que não estejamos perto. Hoje o contato nasce de uma interação que tem fala, vídeo, áudio. Nunca podemos pensar numa rede como robôs. A rede é uma conexão de pessoas humanas com sentimentos, crenças, fé, espiritualidade e incredulidade. Hoje, o com-tato, brota do sentimento. A fala do padre, o sermão do pastor, a música da liturgia, é esse contato com os humanos plugados na rede. O com-tato é tudo aquilo que nos tateia, que toca a nossa pele, arrepia, causa frios e calores internos. Esse é o novo contato que provém do confinamento litúrgico.

Vivemos uma ecologia comunicacional. Estar em comunhão ou em comunidade pelo ambiente virtual se tornou a saída, digamos assim, para vivermos ou expressarmos a fé nesse tempo. Porém, precisamos pensar que a tecnologia precisa apenas mediar essa experiência. A fé sempre será expressão da intimidade. Quando olhamos por essa lente, a sombra que é colocada sobre o tema da virtualização da fé é dissipada por uma luz. Por outro lado, estamos percebendo o valor ou a importância da presença, do estar junto, compartilhando e recebendo o mesmo calor em um templo.

Por fim, me parece que os templos vazios estão, de alguma maneira, modificando a forma de ser Igreja de um povo e de uma religião. É tempo de frequentar nossos vazios. Por isso, os olhos que se abrem para esse novo mundo, não podem mais se fechar. A mente que se abre para esse novo mundo, não pode mais voltar atrás. Não se experimenta a fé apenas dentro de quatro paredes, nem, tampouco, entre os fios de uma rede digital, mas na mediação desses formatos, e sobretudo, na intimidade.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1460389/2020/07/virtualizacao-da-fe-em-tempos-de-templos-vazios/

terça-feira, 21 de julho de 2020

Por que precisamos defender Francisco?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Papa Francisco chega sozinho à praça de São Pedro e reza pelo fim da pandemia, em 27 de março

Papa Francisco chega sozinho à praça de São Pedro e reza pelo fim da pandemia, em 27 de março

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘Cada vez mais, me surpreendo com o modo que Francisco conduz a Igreja. Sobretudo depois que estudamos a fundo a história dessa instituição complexa e milenar. Posso dizer que é um pontificado especial por várias razões. E para dar uma resposta à provocação feita pelo título deste artigo, argumentarei sem proposições ‘religiosas’.

Muitos não se dão conta da força deste pontificado, justamente por interpretarem o catolicismo somente por meio de seus dogmas e normas canônicas.  A instituição assume um papel na sociedade, e diferente das demais confissões cristãs, possui um ‘aparato estatal’ que lhe permite exercer uma certa influência. O papa é, do ponto de vista secular, o soberano do Estado do Vaticano, e precisamos analisar, de maneira concreta - e menos apaixonada -, se ele tem conduzido bem ou não esse governo.

Às vezes, dá a impressão que o pontífice trave uma corrida contra o tempo para ‘colocar a casa em ordem’. E essa postura é mais que compreensível, afinal, ele foi eleito para isso. O colégio de cardeais votou num candidato com personalidade forte o suficiente para assumir essa tarefa. E acertaram em cheio.

A meu ver, é um dos pontificados que mais acertam no quesito ‘gestão de crise’. Francisco trabalha por antecipação, lutando contra uma estrutura bastante lenta e engessada, que arrasta consigo os vícios de uma trajetória, acumulados desde papado de Avinhão. Ele consegue dar respostas práticas para temas espinhosos, e é motivado não pelo afã de satisfazer as exigências da opinião pública; mas para garantir a sobrevivência do próprio catolicismo.

Durante esta pandemia, por exemplo, Francisco tem assumido um papel fundamental, demonstrando, através de suas próprias iniciativas, que a igreja não está alheia ao clamor da sociedade. E não só : quer ser a protagonista dessa rede de solidariedade e reconstrução. Por conta disso, o santo padre, incontestavelmente, é um líder muito respeitado fora dos sagrados palácios. E tem conseguido, com sucesso, chamar a atenção de muitas pessoas para a palavra da Igreja.

Não é difícil encontrar alguém que, mesmo sem professar a fé católica, tenha citado, ao menos uma vez, algo que ele tenha dito. Há o despertar do interesse pelo que o papa tem a dizer; aliás, tem sempre alguém na expectativa do seu parecer. E dessa vez - menos mal - não somente sobre assuntos ligados à religião. Francisco vê o cristianismo como ‘fermento na massa’, como espaço de encontro, não como um antro de proselitistas, como Bento XVI já havia precisado. Ele quer convencer o mundo que o cristianismo ainda tem algo a dizer, mesmo que muitos de seus seguidores ainda o caricaturem e parte da sociedade ainda o rejeite.

O papa argentino concebe a cúria romana não somente como um organismo que coordena as ações da Igreja, mas um ente representativo desta mesma Igreja, que é romana e universal. Após os vários escândalos que acabaram ofuscando o pontificado brilhante de Bento XVI, os cardeais optaram pelo frescor de uma igreja ‘nova’, como a latino-americana, de modo que, através dessa escolha audaciosa e sem precedentes, a credibilidade da instituição fosse, de alguma forma, resgatada. E nesse processo, escolheram um papa que pudesse dar mais ênfase aos fundamentos do cristianismo em detrimento da manutenção desse corporativismo eclesial estéril.

E abraçar uma reforma não é para qualquer um. Para se ter uma ideia, na história do catolicismo foram realizadas somente cinco grandes reformas da cúria romana. E Francisco coordena uma das mais audaciosas já realizadas. ‘Ir às periferias existenciais’, que se tornou o mote deste pontificado, é também tocar nas mazelas da própria igreja. Apesar de ele ter a consciência, no tocante à reforma, que possivelmente serão seus sucessores a colherem seus frutos.

Os avanços diplomáticos de Francisco têm sido significativos. A começar pela lista de países que, até então, jamais tinham sido visitados por um pontífice. A reaproximação discreta com a China - visando a abertura de uma nunciatura apostólica que possa garantir a segurança dos cristãos do território -;  a declaração de Abu Dhabi, que em parceria com as alas mais moderadas do islamismo, lança um apelo pelo fim do terrorismo e pela difusão dos valores inegociáveis e uma série de outras iniciativas servem para reforçar a importância do catolicismo para a sociedade. A passos lentos, a Santa Sé se arrisca muito mais que antes. Com perdas e ganhos, mas com aberturas que se refletirão no futuro. E a história comprovará isso.

Francisco é um papa a ser estudado com afinco. Precisamos estar atentos a cada palavra que ele diz, pois nenhuma é em vão. Todas as suas atitudes fazem parte de um projeto de ‘relançamento’ do cristianismo, revolucionando a forma de concebê-lo a partir da sua própria essência. 

As dificuldades que ele enfrenta ao assumir essa missão, não foram vividas com exclusividade por ele. A diplomacia corajosa de João XXIII levaram-no a enfrentar e vencer vários leões. A coragem diplomática de Francisco, por sua vez, se depara com os mesmos resistentes de sempre, que concebem a igreja como uma confraria, não como organismo vivo que é capaz de transformar a sociedade através do seu testemunho.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1460201/2020/07/por-que-precisamos-defender-francisco/


domingo, 19 de julho de 2020

Que Deus é digno de fé em nossos tempos?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Precisamos encontrar Deus 'até mesmo na cozinha, entre as caçarolas' (Santa Teresa) e aprender a tocar as 'chagas de Cristo na carne sofredora do outro'

*Artigo do Padre Rodrigo Ferreira da Costa, SDN,

pároco de Santa Luzia, PI


‘Nos momentos de crise e desespero, quase sempre procuramos nos apegar a experiências, ideias ou conceitos do passado que nos deem alguma segurança no tempo presente. Na espiritualidade não é muito diferente. Muitas vezes, temos a tentação de ‘copiar’ modelos de espiritualidade de outros tempos, transpondo-os à nossa contemporaneidade. Porém, uma espiritualidade ‘plagiada’ é como colocar remendo novo em roupa velha (cf. Mt 9, 16), além de não responder às perguntas mais profundas do homem de hoje, ainda proporciona muitas vezes uma ‘esquizofrenia espiritual’, pois parece que a pessoa não se vê inteira na sua experiência de fé. ‘Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele. Pois a vida divina comunica-se a uns duma maneira e a outros doutra’ (Papa Francisco, GE, n. 11).

Susan Sontag, em seu ensaio intitulado A estética do silêncio, afirma que ‘cada época deve reinventar para si um projeto de espiritualidade’, ou seja, a cada época somos desafiados a encontrar uma nova gramática sapiencial que seja capaz de responder às perguntas mais profundas do existir humano. Isso não significa perder a memória da fé ou cortar o fio da Tradição que nos liga à experiência do povo de Deus ao logo da história, mas de encontrar uma nova hermenêutica, uma nova linguagem, capaz de anunciar um Deus que seja digno de fé em nossos tempos.

O ensaísta e poeta português, José Tolentino Mendonça, em sua obra A mística do instante, fala de uma espiritualidade do tempo presente que esteja integrada com todo o nosso ser. Uma espiritualidade que passa pelos sentidos, que redescubra o corpo como a língua materna de Deus, pois ‘há mais espiritualidade no nosso corpo que na nossa melhor teologia’, afirma. Reconciliar, pois, a espiritualidade com os nossos sentidos não é algo estranho à experiência cristã que confessa a fé num Deus criador que sopra seu ‘hálito vital’ sobre o ser humano e, ainda mais, num Deus que se encarna, assumindo a nossa condição humana, fazendo da ‘carne o eixo da salvação’ (Tertuliano).

Essa espiritualidade em paz com os sentidos, que escuta a linguagem do corpo, que toca a nossa condição humana, é uma espiritualidade reconciliada com o tempo. E quando nos entregamos ao ritmo do tempo, descobrimos ‘que para amar a Deus sobre a terra, não temos nada além do hoje’ (Santa Teresa de Lisieux). Por isso, não sentimos o tempo como um tirano, ao qual devemos servir como escravos, mas uma dádiva, ao nosso serviço. ‘A mística do instante nos reenvia, assim, para o interior de uma existência autêntica, ensinando a tornarmo-nos realmente presentes : a ver em cada fragmento o infinito, a ouvir o mergulhar da eternidade em cada som, a tocar o impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplêndido banquete daquilo que é ligeiro e escasso, a inebriar-nos com o odor da flor sempre nova do instante’ (MENDONÇA, 2016, p. 36).

Outro aspecto importante dessa espiritualidade integradora é passarmos de uma religiosidade natural que nos remete para o divino através da necessidade, para uma espiritualidade que aceita a vulnerabilidade de Deus, uma espiritualidade pautada numa relação de gratuidade com Deus. ‘A religiosidade natural do homem remete-o para o divino através da necessidade : o homem precisa de um Deus que lhe seja útil, que tenha poder no mundo que lhe proteja. Rapidamente, Deus, torna-se um ídolo, que serve para garantir-nos um funcionamento favorável do grande sistema do mundo’ (José Tolentino Mendonça). Há, pois, que se descobrir o rosto do Deus bíblico que se humilha para estar junto com o contrito e o humilde (cf. Is 57,15), um Deus inútil, um Deus revelado no extremo do abandono e da fragilidade do seu Messias.

Quiçá, o grande desafio da espiritualidade hoje seja experimentar e anunciar esse Deus ‘inútil’. Este Deus que não se impõe pela força e poder privando o ser humano da sua liberdade e responsabilidade em optar-se por Deus; nem tampouco se resume numa simples proposição, a partir da qual o ser humano, pela sua inteligência e vontade, responde positivamente a este chamado, mas um Deus exposto, gratuito, que ama desesperadamente.

Assim sendo, a experiência mais profunda de uma espiritualidade do tempo presente não se resume na heteronomia de Deus que se impõe a partir de uma lei externa a nós, nem tampouco numa autonomia na qual Deus se propõe e nós respondemos racionalmente em nossa liberdade, inteligência e vontade. Mas na alteronomia de um Deus que se expõe na desmesura do amor, que se deixa afetar pelo rosto humano, um Deus kenótico (cf. Ex 3,7-8; Fl 2, 1-11).

Quando contemplamos a cena da crucifixão de Jesus, percebemos essa extrema fragilidade de um Deus que é ‘incapaz’ de salvar-se a si mesmo. Os que assistiam a crucifixão de Jesus zombavam dele dizendo : ‘A outros ele salvou, a si mesmo não pode salvar! É Rei de Israel : desça agora da cruz, e acreditaremos nele. Confiou em Deus; que o livre agora, se é que o ama!’ (Mt 27,42-43), é que eles não compreendiam que ser Messias é dar a vida pelo outros. Neste sentido, a cruz de Cristo e os crucificados da história que ‘completam o que faltou no sofrimento de Cristo’ (Cl 1,24) são o fundamento último dessa espiritualidade da gratuidade, da ‘inutilidade’, a qual aceita o silêncio, as surpresas e até a ausência de Deus.

Noutras palavras, uma autêntica espiritualidade para o nosso tempo não pode ser ‘analfabeta sensorial’ nem tampouco manter-se longe das angústias e do sofrimento dos homens e mulheres. Pelo contrário, precisamos encontrar Deus ‘até mesmo na cozinha, entre as caçarolas’ (Santa Teresa) e aprender a tocar as ‘chagas de Cristo na carne sofredora do outro. Do contrário, a nossa fé será vazia de sentido e a palavra ‘Deus’ tornar-se-á um ídolo sem nenhuma eficácia em nossa existência.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1459986/2020/07/que-deus-e-digno-de-fe-em-nossos-tempos/


sábado, 18 de julho de 2020

Aceitar o joio nos humaniza

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

  Tolerância é respeito e valorização da pessoa, acima das diferenças, acima das atitudes contrárias

*Artigo do Padre Adroaldo Palaoro, SJ


 Reflexão sobre o Evangelho do 16º domingo do Tempo Comum - Mt 13,24-43

‘Deixai crescer um e outro até a colheita!’ - Mt 13,30

 

‘Jesus costumava contar parábolas com frequência e as pessoas gostavam de ouvi-lo. Suas parábolas, brotavam do chão da vida, estavam carregadas de vida e comprometiam as pessoas a viverem de um modo diferente, deixando-se inspirar por Aquele que é Fonte da Vida. Como relatos instigantes, as parábolas faziam emergir uma nova imagem de Deus e uma nova imagem do ser humano.

Sabemos que as imagens, que cada um guarda em seu interior, tem um peso e marcam a vida : elas podem fazer adoecer ou ativar uma vida sadia, podem alimentar medos ou despertar coragem, podem estreitar a vida ou expandi-la... Todos temos experiências das funestas consequências das falsas imagens de Deus, que acabam alimentando, em cada um, uma auto-imagem atrofiada e paralisante. Jesus, com suas parábolas provocativas, desejava quebrar tais imagens nocivas e substitui-las por outras saudáveis.

Para isso, Ele usa uma pedagogia para nos provocar e dirigir nossa atenção para algo específico, que nos inquieta : quando nos sentimos incomodados com Suas imagens, isso significa que estamos sendo confronta-dos com imagens falsas de Deus e de nós mesmos, petrificadas em nosso interior. Algum aspecto nosso, que até então havia permanecido na sombra, é iluminado; agora somos capazes de nos ver de modo diferente. 

Essa transformação interior, de nossa visão e de nossos sentimentos, não pode ser alcançada por meio de meras palavras de ensinamento. Para isso, precisamos da arte das parábolas, pois elas desvelam, põem às claras situações e modos fechados de viver, visões distorcidas, falsas verdades, ideias atrofiadas, crenças vazias que nos dão uma sensação de segurança e temos resistências de abrir mão.

Como muitas outras parábolas, também a do ‘joio e do trigo’ é um relato provocativo. Não só porque parece ir contra o ‘senso comum’, que aconselha arrancar o joio que impede o crescimento do trigo, mas porque é também uma resposta às críticas que o próprio Jesus recebia por sua atitude com relação àqueles que a religião tinha excluído. Não em vão Ele foi acusado de ser ‘amigo de publicanos e pecadores’.

Por outro lado, a parábola pode deixar transparecer as inquietações da comunidade de Mateus, preocupada por separar com clareza os ‘bons discípulos’ daqueles que não eram. Como tantos grupos humanos, a tentação é marcar uma linha divisória, entre o ‘trigo’ e o ‘joio’. Essa separação, no interior da comunidade cristã, acaba se projetando nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais..., criando ‘muros’ e ‘fronteiras’ que esvaziam o processo de humanização.

Pois bem, seja porque se refira à vida histórica de Jesus, seja porque se tenha adaptado para responder a alguma polêmica comunitária posterior, o certo é que a mensagem da parábola não deixa lugar a dúvidas : ‘deixai crescer um e outro até a colheita!’.

Por isso, a atitude sábia de deixar o ‘trigo e o joio crescerem juntos’, nos remete precisamente ao que temos de fazer com o nosso próprio ‘joio’ : aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo, reconhecê-lo como nosso, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por mais estranho que pareça, a aceitação do joio nos humaniza, pois nos faz descer de nosso pedestal egoico – feito de exigência, perfeccionismo e de complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.

Quanto mais nós nos conhecemos e conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos e mais nos humanizamos.

Humanizar-se, não no sentido de ser mais virtuoso, brilhante, bem-sucedido, perfeccionista... Humanizar-se é também a capacidade de acolher-se frágil, vulnerável e, ao mesmo tempo, ativar o vigor, ser criativo, resistir, poder traçar caminhos... Fazer a síntese entre ternura e vigor.

Não pretendamos, pois, arrancar o joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano.

Nossa vida está repleta da graça divina. Vivemos mergulhados na Graça que nos santifica. Ser santo(a) é viver em plenitude nossa humanidade. É aprender a descobrir e a redescobrir a ‘presença de Deus em tudo e tudo em Deus’ (S. Inácio).

Já foi dito que o ser humano nunca é tão grande como quando sabe reconhecer e aceitar sua fragilidade, sua limitação... Reconhecer e aceitar sua própria ‘humanidade’, diante de Deus e dos outros, significa percorrer um caminho em direção a uma visão positiva, madura e profunda de si mesmo.

Com isso, já não desperdiçamos as nossas energias para tentar, inutilmente, afastar de nós algo que faz parte de nossa vida e que devemos aprender a integrar, a preencher de sentido, a transformar... Às vezes, no mal que queremos extirpar, há um bem que não sabemos descobrir.

Com efeito, temos sempre a tentação de querer extirpar logo e totalmente o joio do nosso coração, arriscando-nos a arrancar com ele, pela raiz, os germes do bem que estão crescendo com dificuldade e que exigem uma atitude muito diferente, isto é, paciência e delicadeza, capacidade de intuição e clarividência, disponibilidade para alimentar uma sadia tolerância para conosco.

Todo este processo de integração interior se faz visível na integração com os outros com quem convivemos.

Parece claro que, nós seres humanos, ficamos incomodados com o diferente, com aquele que sente, pensa e crê de outra maneira. Se a isso agregamos a necessidade de ‘ter razão’, característica do ego, poderíamos explicar a origem de tantas intolerâncias, fanatismos, juízos, processos inquisitoriais e condenações... 

Tanto as religiões, como os grupos sociais, insistem em ter tudo bem clarificado e estabelecido, para evitar sobressaltos. Detrás de tudo isso, o que se busca é assegurar a sobrevivência e defender-se da ameaça da insegurança ou da necessidade de mudanças. Sair das próprias posições e convicções, no campo religioso, social, político, cultural é, para muitos, um processo doloroso.

A parábola que estamos comentando (joio e trigo) é um chamado à tolerância e à paciência. A virtude da tolerância não é sinônimo de ‘bonzinho amorfo’, nem constitui um relativismo suicida. Tolerância é respeito e valorização da pessoa, acima das diferenças, acima das atitudes contrárias e inclusive, segundo Jesus, frente às agressões recebidas : ‘Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem’.

A personalidade fanática tende a ver a realidade dividida completamente em duas : tudo é branco ou preto, verdadeiro ou falso, bom ou mau, trigo ou joio; para ela, não existem outras tonalidades. Por isso, ela se converte em juiz implacável que salva ou condena, assume atitudes fascistas ou nazistas, com a ilusão da raça pura, da ideologia pura, da religião pura...

Niels Bohr, um dos grandes iniciadores da física quântica, afirmou que o oposto de uma verdade profunda pode ser também outra verdade profunda. E para ele não se tratava de uma crença ou de uma opinião pessoal, mas de uma constatação, fruto de seus experimentos com partículas sub-atômicas.

Há um fato inegável : ninguém é igual a outro, todos temos algo que nos diferencia. Por isso existe a biodiversidade, milhões de formas de vida. O mesmo, e mais profundamente, vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas e devemos ser tolerantes, como toda a realidade é tolerante. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada.

Texto bíblico : Mt 13,24-43

Na oração : O rigorismo não faz parte do caminho da Graça. O caminho da graça se chama compreensão e tolerância. A melhor resposta é dar a oportunidade para que o trigo amadureça. A melhor solução é abrir possibilidade para que o joio seja transformado. É questão de saber esperar. E disso, o amor é especialista.

  • Frente ao joio presente em seu interior, que atitudes assume : auto-julgamento? Moralismo? Intransigência?
  • E frente ao outro, que ‘pensa, sente e ama de maneira diferente’, como você se situa?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1460351/2020/07/aceitar-o-joio-nos-humaniza/