domingo, 30 de outubro de 2022

Por que a regulamentação da mídia pode se tornar uma arma de guerra – Parte 2

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Francisco Vêneto,

jornalista

 

É a dose errada do remédio o que o transforma em veneno

Regulação e regulamentação da mídia

‘Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da ‘democratização da mídia’, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da manipulação de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos ‘regulação’ e ‘regulamentação’.

Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa regulamentação, que não são a mesma coisa.

Regulação é uma atividade atribuída a um órgão ou agência governamental que tem poder especial para legislar sobre como um setor de interesse público deve operar. No Brasil, este é o caso, entre outras, da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia que regula e fiscaliza o setor elétrico brasileiro, ou da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), que regula e fiscaliza as atividades da aviação civil e a infraestrutura aeronáutica e aeroportuária no país.

(Que as agências funcionem adequadamente a favor do cidadão já é outra questão que também precisa ser discutida : o simples fato de que um órgão regulador exista não quer dizer que funcione como promete).

Já a regulamentação é uma atividade de competência do Chefe do Poder Executivo : grosso modo, consiste em detalhar e suprir eventuais lacunas de uma regulação que já existe, a fim de esclarecer como essas leis devem ser aplicadas e como o seu fiel cumprimento deve ser garantido.

Vamos aos exemplos.

No caso da mídia como um todo, a Constituição Federal do Brasil prevê, no artigo 220, § 5, que ‘os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’. No entanto, não existe até hoje nenhuma regulamentação do Poder Executivo que determine o que são o monopólio e o oligopólio nas comunicações sociais do país. Existe uma regulação, mas não existe a sua regulamentação.

De modo semelhante, existe no país um bagunçado arcabouço de leis que regulam assuntos ligados à mídia. É assim desde o Império, quando surgiram os primeiros decretos que regulavam a imprensa. Na década de 1930 vieram as regulações da radiodifusão. Na década de 1960, entrou em vigor o Código Brasileiro de Telecomunicações, que, diga-se de passagem, continua vigente até hoje, anacronismos inclusos. Ao longo das décadas, dezenas de leis continuaram surgindo para regular a comunicação de forma esparsa e desconectada, como a lei do cabo, a das rádios comunitárias, a que disciplina a participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão, a que criou a Empresa Brasil de Comunicação… Há leis também para regular conteúdo, como a que define punição diferenciada para os crimes resultantes de preconceitos de raça ou cor veiculados na mídia, ou a lei de tela, que determina cotas para produções nacionais no audiovisual. Há também a regulação da publicidade, que, por exemplo, proíbe a publicidade infantil.

Mas não há no país uma lei geral das comunicações eletrônicas e de massa, que, na visão dos seus defensores, regulamentaria, como mínimo, os artigos da Constituição Federal (como o já citado 220), além das regras aplicáveis a veículos mais recentes, como a internet.

No caso da internet, se falarmos em regulamentação, estaremos falando de como o Poder Executivo deve detalhar leis já existentes, como o Marco Civil da Internet, em particular no tocante à neutralidade de rede, à privacidade na rede e à guarda de dados – considerando-se, ainda, que, sobre o último ponto, já contamos também com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Quanta regulação e quanta regulamentação?

Como se observa, regulação e regulamentação são instrumentos neutros. É o seu uso o que determina se eles serão ou não transformados em armas de guerra.

Por um lado, regras claras, que valham independentemente do governo de turno, são necessárias até para impedir que esse governo se torne perpetrador ou cúmplice de abusos de censura e desinformação. Por outro, um engessamento de regras, sobretudo quando se arrogam poderes altamente subjetivos de análise da ‘verdade’, são praticamente a sacramentação do enviesamento ideológico.

Há cenários em que as regras já existentes são suficientes, como as que, preservando a liberdade de imprensa, de opinião e de expressão, também protegem contra a injúria, a calúnia e a difamação. Há outros, como o da já citada ausência de regulamentação sobre o que é um monopólio ou oligopólio de mídia, que requerem ao menos ‘algum’ grau de detalhamento.

O problema está em definir que grau é esse: afinal, a dose errada do  remédio é o que o transforma em veneno.

De quanta regulação e de quanta regulamentação precisamos objetivamente, para além das leis, garantias, vetos e obrigações que já temos? O desafio é definir o ponto de equilíbrio entre os extremos de nenhuma e da imposição de um pensamento único, passando por distintos graus de censura (inclusive quando em alegado caráter ‘excepcionalíssimo’).

Este desafio é global. O Twitter pode banir para sempre um presidente dos Estados Unidos? Se sim, com base em que regulação ou regulamentação? Qual é o grau aceitável de poder de policiamento, censura, julgamento e condenação que uma ‘big tech’ pode exercer sobre as opiniões e sobre quem as emitiu? Em que contextos o YouTube pode legitimamente censurar um vídeo ou um canal inteiro por questionar o que outros dogmatizam que é ‘ciência’ inquestionável, muito embora a ciência não seja dogma e o seu método pressuponha necessariamente o questionamento? Quem define a verdade, seja para Pôncio Pilatos, seja para dona Zefinha? Quando se pode vetar um documentário que nem sequer foi lançado, se é que se pode? E, entre tantas outras, a pergunta subvalorizada que, no fim das contas, ainda ninguém respondeu : quem checa os checadores?

Se é preciso haver ‘alguma’ regulamentação e o desafio é definir quanta, a resposta mais democrática deve ser a que mais garanta espaço às liberdades e menos tolere a sua restrição : portanto, ‘alguma’ regulamentação significa a mínima regulamentação possível.

‘Fake news’ não se combatem com cerceamento e censura, mas com ampla liberdade de imprensa, de opinião e de expressão para contestar e refutar, com argumentos e comprovações, com réplica e tréplica, e não com tarjas, canetaços e medidas ‘excepcionalíssimas’. E se as afirmações mentirosas ainda forem agravadas pelo crime de calúnia, difamação ou congêneres, nem assim a censura será o remédio : a lei prevê os devidos processos para que os responsáveis sejam denunciados, julgados e sentenciados, e é isto o que deve ser aprimorado num legítimo estado democrático de direito.

Um Ministério da Verdade sempre terá um Goebbels como ministro

A história tem fartos registros de que é suicida plantar os alicerces de um Ministério da Verdade, seja qual for o seu nome, porque o seu ministro será sempre um Joseph Goebbels.

Nenhuma alegação de combate à desinformação pode se arrogar o inexistente direito de vedar o livre debate sobre a verdade e a mentira, a menos que se queira reposicionar um país na seleta companhia de Bielorússia, Turcomenistão, Coreia do Norte, Afeganistão, Irã e, entre outros primores da democracia, as já mencionadas China, Rússia, Venezuela, Nicarágua e Cuba.

A regulação e a regulamentação da mídia são instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem manejadas para cortar.

E tanto é verdade que, se alguém tiver uma opinião diferente desta, esse mesmo alguém quererá o direito de proclamá-la e defendê-la sem pressões nem cerceamentos – basta que assuma as consequências da própria liberdade e cobre as do próximo quando discordar do que ele diz.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/10/26/por-que-a-regulamentacao-da-midia-pode-se-tornar-uma-arma-de-guerra-parte-2/


sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Por que a regulamentação da mídia pode se tornar uma arma de guerra – Parte 1

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Francisco Vêneto,

jornalista

 

‘A regulação e a regulamentação da mídia são instrumentos neutros, e, como facas de dois gumes, cortarão o que forem manejadas para cortar.

Por isso mesmo, a depender de quem as maneja, a comparação com uma arma branca pode ficar muito aquém da realidade : esses instrumentos já chegaram a ser transformados em devastadoras armas de guerra.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de fato, não foi apenas o maior de todos os conflitos bélicos graças ao poder destruidor de armamentos até então inéditos na história da humanidade, mas também foi a primeira grande guerra de (des)informação estratégica e sistemática em larga escala, com o respaldo de leis de comunicação social impostas por regimes autoritários desde antes do conflito deflagrado.

É argumentável, mas também contestável, que não se tratasse de legítima regulação e regulamentação da mídia – e disso falaremos adiante. Por agora, continuemos em guerra.

O rádio e a guerra

Nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial, um aparelho inofensivo começou a ser transformado eficazmente em um dos mais poderosos armamentos a favor de regimes autoritários. A massificação do rádio foi fundamental para que governos tirânicos criassem o ambiente de controle de que precisavam para implantar e consolidar o seu poder sobre a própria população, despejando diuturnamente a sua ideologia na rotina dos cidadãos e minando implacavelmente quaisquer oposições mediante o seu silenciamento e criminalização.

A visão de mundo desses regimes era imposta à população sem quaisquer filtros nem intermediários : os governos tinham entendido, com maquiavélica perspicácia, que controlar a mídia significava controlar a mente e até o coração dos cidadãos – se não de todos, ao menos de uma parcela suficientemente grande para coibir o resto de tentar uma reação.

Entre os casos mais clássicos de sujeição da opinião pública mediante o controle da mídia está o do nazismo alemão, cujo ministro da propaganda, Joseph Goebbels, identificou no rádio um meio de excelência para moldar as massas com as ideias racistas, eugenistas e supremacistas do regime de Adolf Hitler.

Goebbels determinou a massiva fabricação do aparelho de rádio VE301 e coordenou uma extensa campanha para torná-lo acessível, a fim de atingir, através das suas ondas, o máximo possível de casas e consciências alemãs. De fato, em 1939, ano em que Hitler invadiu a Polônia e fez eclodir a Segunda Guerra Mundial, cerca de 90% das residências da Alemanha tinham pelo menos um aparelho de rádio e em torno de 70% dos alemães ouviam programas de rádio regularmente. A doutrinação nazista era metralhada ao longo das 24 horas do dia, num meio de comunicação decididamente dominado pelo regime.

Era o regime que definia o que era verdade, o que era mentira, o que podia ser transmitido e o que não podia, coibindo energicamente quaisquer discursos contrários ao dogma nazista. O próprio Goebbels cunhou a diretriz que se tornaria um clichê na boca dos que atacam a desinformação alheia em defesa da própria : ‘Uma mentira dita mil vezes se transforma em verdade’.

A situação não era diferente na Itália de Mussolini nem no Japão imperial – nações que, para surpresa de ninguém, se aliaram à Alemanha nazista na mesma guerra contra a verdade.

Da União Soviética à Rússia e à China

Mas o cenário também era idêntico na União Soviética de Joseph Stalin, violentíssimo opressor de qualquer liberdade de expressão e brutal extirpador de qualquer oposição. E o colapso do comunismo soviético não sepultou esse afã de controle. Embora a Rússia beligerante de Vladimir Putin pareça menos terrível que os gulags de cujas ruínas é a principal herdeira, ainda assim é indisfarçável o temor que as políticas de controle da informação provocam na população russa em pleno 2022. O grau de interferência do governo russo na mídia no país, bem conhecido havia décadas, tornou-se surreal em 4 de março deste ano, quando o regime determinou que a sua guerra na Ucrânia não é uma guerra na Ucrânia e que todos os que se atreverem a chamá-la de outra coisa que não de ‘operação militar especial’ vão se ver com a plenitude da democracia em forma de 15 anos de cadeia.

Co-herdeira da União Soviética no culto fanático ao Partido Único, a China acumula uma das mais sangrentas histórias de controle da informação já vistas em todos os tempos. Num país de milhões de analfabetos famintos, o monopólio da informação exigiu extremos como a Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Tsé-Tung, nada menos que uma década (1966-1976) de extensa lavagem cerebral e purgação radical de opositores, que destruiu a economia e a cultura tradicional chinesa e trouxe como resultado um número estimado de mortos que varia de centenas de milhares a estarrecedores 20 milhões.

A década de horror dedicada ao controle total das mentes numa China ainda miserável incluiu massacres e perseguições tão chocantes que, no final de 1978, o novo líder supremo, Deng Xiaoping, lançou o programa Boluan Fanzheng para ‘corrigir os erros da Revolução Cultural’. Em 1981, o próprio Partido Comunista Chinês teve de reconhecer oficialmente que a Revolução Cultural tinha sido o ‘retrocesso mais severo’ desde a fundação da China comunista em 1949.

O rígido controle chinês da informação, porém, apenas mudou de formatos e prossegue até a data, com onipresente e opressiva propaganda pró-Partido e devastadora perseguição de opositores. O panorama, aliás, piorou sob o comando do atual presidente Xi Jinping, que tem usado a tecnologia para transformar o país, literalmente, no ‘Big Brother’ previsto por George Orwell no clássico ‘1984’ (confira neste artigo). Os tentáculos do controle da mídia pelo Partido Comunista Chinês já sufocam inclusive Hong Kong, apesar do seu teórico status de autonomia e relativa liberdade.

Ditaduras de todos os espectros ideológicos

Nos pós-guerra, o discurso do combate à desinformação continuou sendo alardeado pelas ditaduras mundo afora – na sua grande maioria, ditaduras comunistas, mas também no franquismo da Espanha e em regimes militares direitistas como os do Chile, da Argentina e do Brasil, onde o selo da censura federal abundou nas mídias impressas, radiofônicas e televisivas, além da música, do teatro, do cinema e do material didático.

Têm sido as ideologias de esquerda, porém, quase pandemicamente, as mais teimosas em continuar inoculando na atualidade o vírus do controle da informação por entre rótulos de combate à desinformação e sob a máscara da ‘democratização’ da informação.

Cuba, Venezuela e Nicarágua

Em Cuba, referência suprema de ditadura latino-americana, o rígido controle da informação foi imposto desde o início de La Revolución, com ferrenha censura de todos os meios de comunicação para garantir que eles incutissem nas mentes e nos corações as palavras de ordem do comunismo, ‘hasta la victoria siempre’. Um dos resultados menos catastróficos e mais folclóricos deste sufocamento da informação e deste despejamento obsessivo de doutrinação foram os discursos intermináveis de Fidel Castro, que se tornaram tragicomédia internacional. Mas mesmo isto é indicativo : quantas críticas a qualquer desses discursos, ainda que fosse apenas às suas histriônicas horas de duração, foram publicadas em algum jornal cubano?

Na pouco distante Venezuela, eis outra população engabelada pelo discurso de combater a desinformação e as alegadas mentiras de opositores, externos ou internos, reais ou fictícios. Só em 2017, já com o regime bolivariano em mãos de Nicolás Maduro, a ditadura de Caracas fechou 69 veículos de mídia : 46 rádios, 3 emissoras de TV e 20 jornais impressos. Pelo menos 300 jornalistas venezuelanos foram presos ou impedidos de exercer a atividade jornalística no país. Tudo, registradamente, em nome da luta contra as ‘fake news’, ainda nos primórdios desse famigerado estrangeirismo que virou um chavão obsessivo e onipresente nas guerras de narrativas dos últimos anos.

Um dos mais recentes sepultamentos da democracia sob o túmulo da suposta ‘regulação’ ou ‘regulamentação da mídia’ aconteceu na Nicarágua, cujo ditador, Daniel Ortega, repete ad nauseam as palavras mágicas ‘fake news’ para rotular qualquer notícia que o seu necrotério afirme ser falsa. A elástica manipulação da regulação nicaraguense da mídia é usada para calar a boca de autores e também dos veículos que lhes dão voz, seja com multa, seja com prisão, seja com a cassação dos direitos de transmissão ou publicação. A alegada aplicação das regulações da mídia no regime de Ortega não poupou sequer uma rede de viés esquerdista como a CNN – não assombra, então, que tenha varrido rádios católicas como as seis que mandou fechar de uma única vassourada só na diocese de Matagalpa, em paralelo à onda de perseguição contra padres e freiras que foram sitiados, presos ou expulsos arbitrariamente do país por se atreverem a questionar a sua ‘democracia’.

Na Venezuela e na Nicarágua, o controle ditatorial da informação pelo regime foi implementado, ostensivamente, sob a máscara da ‘democratização da mídia’, valendo-se, já no processo de cancelamento de objetores, da manipulação de termos técnicos elegantes, como os profusamente repetidos ‘regulação’ e ‘regulamentação’.

Por isso mesmo, antes de seguir em frente, é necessário esclarecer o que significa regulação e o que significa regulamentação, que não são a mesma coisa.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/10/26/por-que-a-regulamentacao-da-midia-pode-se-tornar-uma-arma-de-guerra-parte-1/

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Sessenta bispos do Brasil escrevem carta contra Bolsonaro

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘A uma semana do segundo turno das eleições presidenciais, que acontece no próximo domingo, dia 30, parte da hierarquia católica resolveu se manifestar. Dessa vez, para se declararem publicamente contra o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Os prelados dizem que a motivação para a publicação do documento ‘está na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz’. Os bispos refutam as práticas adotadas por Bolsonaro, mostrando que a postura do atual mandatário da República não condiz com os 10 mandamentos bíblicos.

Por medo de represálias por parte dos apoiadores do candidato à reeleição, os bispos resolveram não assinar o texto. Portanto, é um documento original, mas redigido de maneira anônima.

Nossa equipe de reportagem teve acesso à carta por meio de um dos bispos redatores, que não quis se identificar, haja vista a onda de violência que tem se registrado em alguns lugares do Brasil durante missas e eventos religiosos. Eles têm medo de que, em suas dioceses, os fundamentalistas atentem contra sua integridade física.

‘Não cabe neutralidade quando se trata de decidir entre dois projetos de Brasil : um democrático e outro autoritário’, enfatizam.

Sem usar meias palavras, os bispos também rechaçam o terrorismo eleitoral praticado por centros culturais, padres e influencers católicos contra os eleitores que não apoiam o atual governo.

‘O chefe do governo e seus apoiadores, principalmente políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar seus atos e ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é desrespeito do segundo mandamento’, completam.

O slogan da campanha de Bolsonaro, usado pelo presidente em 2018, também foi criticado pelo grupo de prelados.

‘Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o presidente ofendia mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas, além de não demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas para a Covid-19 e com as 33 milhões de pessoas famintas em seu país.

A política do armamento, também defendida pelo atual governo, também foi mencionada na carta.

‘Os discursos e medidas que visam armar todas as pessoas e eliminar os opositores estão em contradição com o 5 mandamento, que diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que propõe o desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 508).

Os autores do documento, que se apresentam como ‘bispos do diálogo pelo Reino’, encerram lançando um apelo ao povo brasileiro, e explicando que não se trata, dada a urgência da situação, de abraçar um projeto político, mas de uma escolha ética.

‘A Igreja não tem partido, nem nunca terá, porém ela tem um lado, e sempre terá : o lado da justiça e da paz, da verdade e da solidariedade, do amor e da igualdade, da liberdade religiosa e do Estado Laico, da inclusão social e do bem viver para todos. [...] Nossa motivação é ética e não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências pessoais, mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus’, concluem.

Veja a carta completa  :

A GRAVIDADE DO SEGUNDO TURNO DAS ELEIÇÕES 2022

Irmãos e irmãs,

Somos bispos da Igreja Católica de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em plena comunhão com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB que, no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Lideramos a escrita de uma primeira Carta ao Povo de Deus, em julho de 2020. Diante da gravidade do momento atual, nos dirigimos novamente a vocês.

O segundo turno das eleições presidenciais de 2022 nos coloca diante de um dramático desafio. Devemos escolher, de maneira consciente e serena, pois não cabe neutralidade quando se trata de decidir sobre dois projetos de Brasil, um democrático e outro autoritário; um comprometido com a defesa da vida, a partir dos empobrecidos, outro comprometido com a ‘economia que mata’ (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho, 53); um que cuida da educação, saúde, trabalho, alimentação, cultura, outro que menospreza as políticas públicas, porque despreza os pobres. Os dois candidatos já governaram o Brasil e deram resultados diferentes para o povo e para a natureza, os quais podemos analisar.

Iluminados pelas exigências sociais e políticas de nossa fé cristã e da Doutrina Social da Igreja Católica, precisamos falar de forma clara e direta sobre o que realmente está em jogo neste momento. Jesus nos mandou ser ‘luz do mundo’ e a luz não deve ficar escondida (Mt 5,15).

Somos testemunhas de que o atual Governo, que busca a reeleição, virou as costas para a população mais carente, principalmente no tempo da pandemia. Apenas às vésperas da eleição, lançou um programa temporário de auxílio aos necessitados. A 59ª Assembleia Geral da CNBB constatou ‘os alarmantes descuidos com a Terra, a violência latente, explícita e crescente, potencializada pela flexibilização da posse e porte de armas […]. Entre outros aspectos destes tempos, estão o desemprego e a falta de acesso à educação de qualidade para todos. A fome é certamente o mais cruel e criminoso deles, pois a alimentação é um direito inalienável’ (Mensagem da CNBB ao Povo Brasileiro sobre o Momento Atual). A vida não é prioridade para este governo.

O chefe de Governo e seus apoiadores, principalmente políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar seus atos e ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é um desrespeito ao 2º mandamento. O abuso da religião para fins eleitoreiros foi condenado em nota oficial da presidência da CNBB (11/10/2022), para a qual ‘a manipulação religiosa sempre desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil’.

Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o Presidente ofendia as mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas, além de não demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas para a covid-19 e com os 33 milhões de pessoas famintas em seu país. Lembramos que o Brasil havia saído do mapa da fome em 2014, por acerto dos programas sociais de governos anteriores. Na prática, esse apelo a Deus é mentiroso, pois não cumpre o que Jesus apresentou como o maior dos mandamentos : amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37). Quem diz que ama a Deus, mas odeia o seu irmão é ‘mentiroso’ (1Jo 4,20).

Os discursos e as medidas que visam armar todas as pessoas e eliminar os opositores estão em contradição tanto com o 5º mandamento, que diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que propõe o desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 508).

Vivemos quatro anos sob o reinado da mentira, do sigilo e das informações falsas. As fake news (notícias falsas veiculadas como se fossem verdades) se tornaram a forma ‘oficial’ de comunicação do Governo com o povo. Isso fere o 8º mandamento, de não levantar falso testemunho, mas mostra também quem é o verdadeiro ‘senhor’ dos que, perversamente, se dedicam a espalhar falsidades e ocultar informações de interesse público. Jesus diz que o Diabo é o pai da mentira (Jo 8, 44), enquanto Ele é o ‘caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6).

Mensagem ao Povo Brasileiro, da 59ª Assembleia Geral da CNBB, alertou-nos, também, de que ‘nossa jovem democracia precisa ser protegida, por meio de amplo pacto nacional’. No entanto, o atual governo e os parlamentares que o apoiam ameaçam modificar a composição do Supremo Tribunal Federal para criar uma maioria de apoio aos seus atos. O controle dos poderes Legislativo e Judiciário sempre foi o passo determinante para a implantação das ditaturas no mundo.

Os cristãos têm capacidade para analisar qual dos dois projetos em disputa está mais próximo dos princípios humanistas e da ecologia integral. Basta analisar com dados e números e perguntar : qual dos candidatos concorrentes valorizou mais a saúde, a educação e a superação da pobreza e da miséria e qual retirou verbas do SUS, da educação e acabou com programas sociais? Quem cuidou da natureza, principalmente, da Amazônia e quem incentivou a queima das florestas, o tráfico ilegal de madeiras e o garimpo em terras indígenas?

Não se trata de uma disputa religiosa, nem de mera opção partidária e, tampouco, de escolher o candidato perfeito, mas de uma decisão sobre o futuro de nosso país, da democracia e do povo. A Igreja não tem partido, nem nunca terá, porém ela tem lado, e sempre terá : o lado da justiça e da paz, da verdade e da solidariedade, do amor e da igualdade, da liberdade religiosa e do Estado laico, da inclusão social e do bem viver para todos. Por isso, seus ministros não podem deixar de se posicionar, quando se trata de defender a vida do ser humano e da natureza. Nossa motivação é ética e não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências pessoais, mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus, à Doutrina Social da Igreja e ao magistério profético do Papa Francisco.

Deus abençoe o povo brasileiro e o Espírito Santo de sabedoria e verdade ilumine nossas mentes e corações, na hora de votarmos nesse segundo turno das eleições de 2022. Vejamos Jesus no rosto de cada pessoa, especialmente dos pobres que sofrem e não em autoridades humanas que os manipulam em nome de um projeto ideológico de poder político e econômico.

 

Em 24 de outubro de 2022, Memória de Santo Antônio Maria Claret, bispo.

 

Bispos do Diálogo pelo Reino

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1591954

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Cardeal Hollerich: uma Igreja pobre uma Igreja viva

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Andrea Monda e Roberto Cetera


Jean-Claude Hollerich, 64 anos, cardeal arcebispo de Luxemburgo, é presidente da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia e vice-presidente do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, bem como Relator-geral para o Sínodo sobre a Sinodalidade. Com a abertura da fase continental do Sínodo sobre a Sinodalidade, aceitou de bom grado a oportunidade de conversar com L’Osservatore Romano sobre o andamento da mais difusa consulta da história da Igreja na Europa, e sobre os seus conteúdos. Encontramo-nos com ele na igreja paroquial em Roma da qual é titular, enquanto se entretém como um ‘bom pároco’ com as crianças da primeira comunhão. «A igreja não é este edifício - explica-lhes - igreja significa assembleia. A Igreja sois vós. Porque, como diz o Papa Francisco, sem os jovens não há igreja, pois Deus é jovem».  Depois, caminha na nossa direção e diz : «Estou realmente feliz por ser titular, não de uma das bonitas igrejas do centro histórico, mas desta paróquia de periferia; quando aqui venho redescubro a alegria de ser sacerdote no meio do povo».   

No mês passado, o cardeal Zuppi concedeu-nos uma longa entrevista sobre o Sínodo da Igreja Italiana, na qual, com muita honestidade, não escondeu o facto de a participação ter sido inferior ao esperado, tanto em quantidade como em qualidade. Qual é a sua visão sobre a atuação do Sínodo no panorama europeu? 

Sim, li aquela entrevista com grande interesse. Com igual honestidade, parece-me que as observações de Zuppi podem também se aplicar a outros países europeus, embora com as necessárias distinções entre um país e outro. Vedes, acredito que na Europa de hoje estamos a sofrer de uma patologia, isto é, não conseguimos enxergar claramente qual é a missão da Igreja.  Falamos sempre de estruturas, o que certamente não é um mal, porque as estruturas são importantes e certamente precisam de ser repensadas.  Mas não se fala o suficiente sobre a missão da Igreja. Que é anunciar o Evangelho. Anunciar, e sobretudo testemunhar, a morte e a ressurreição de Jesus o Cristo. Um testemunhar que o cristão deve interpretar principalmente através do seu compromisso no mundo para a salvaguarda da criação, para a justiça, para a paz.  O ensinamento do Papa Francisco é tudo e nada mais do que a explicação do Evangelho. Não é difícil de compreender isto. No mundo secularizado de hoje, o anúncio direto nem sempre é compreendido, mas o nosso testemunho sim.  Somos observados e avaliados no mundo pela forma como vivemos o Evangelho. É um pouco como os professores na escola : é certamente importante o que eles dizem, mas ainda mais importante é o que eles comunicam sobre si. No nosso caso, o que importa é a coerência com o Evangelho. Tomemos por exemplo a encíclica Laudato si’.  Muitos leram-na, inclusive entre os não-crentes, e entre quantos  não conhecem o Evangelho. E todos aqueles que a leram partilharam o seu valor, a sua importância, a sua urgência. Constatei isto diretamente nos meus contactos diários com políticos do parlamento  e da comissão europeia em Bruxelas. Todos leram, portanto, Laudato si’, e admiram-na.  E o mesmo se aplica a Fratelli tutti.  Ou seja, todos reconhecem a Papa Francisco a paternidade da proposta de um novo humanismo. Que muitas vezes propõe em solidão entre os grandes líderes mundiais.  Mas depois cabe a nós explicar que o humanismo de Francisco não é apenas uma proposta política, mas uma proclamação do Evangelho. Quem está fora da Igreja por vezes compreendem melhor o Evangelho do que os que estão dentro dela.  O Papa Francisco indicou assim esta forma de proclamar o Evangelho, que parte da realidade, aquela realidade que nos vê a todos como criaturas e filhos do mesmo Pai. Mas para responder à vossa pergunta inicial : em todos os países europeus nos sínodos falou-se muito de comunhão, de participação, mas muito pouco de missão. 

Certamente as dificuldades verificadas nos sínodos dos vários países foram influenciadas por uma certa defesa instintiva do próprio status por parte do clero e por outro lado por uma  atitude persistente de delegação dos leigos.

O conceito de sinodalidade foi introduzido pelo Papa Paulo vi como um requisito de colegialidade, de comunhão entre os bispos.  O Concílio Vaticano ii tinha a necessidade preliminar de completar o que tinha ficado por acabar com o Concílio Vaticano i, cujo foco estava inteiramente na figura e nas prerrogativas do pontífice romano. Assim, o esforço da assembleia foi, antes de mais, definir o papel do bispo. Mas a Lumen gentium introduziu pela primeira vez o conceito de ‘povo de Deus a caminho’ e da Igreja como ‘templo do Espírito Santo’, e tornou explícito o ‘sacerdócio universal’ que diz respeito a todos os batizados.   Então penso que estas intuições gigantescas dos padres conciliares ainda não foram suficientemente desenvolvidas.  Mas concordo plenamente com o Papa Francisco quando diz que são necessários cem anos para implementar um concílio. Passaram apenas 60... não estamos atrasados (diz isto com uma risada de coração ndr)!  Mas, brincadeiras à parte, devemos estar cientes de que o sacerdócio batismal nada tira ao sacerdócio ministerial. Pelo contrário, todos nós sacerdotes devemos compreender que não há sacerdócio ministerial sem um sacerdócio universal dos cristãos, pois dele tem origem.   Estou bem ciente de que a dificuldade de assimilar um conceito, no fundo tão elementar, é impedida por uma formação sacerdotal que ainda se mantém sobre uma «diversidade ontológica» que não existe. Os teólogos devem começar a trabalhar sobre isto e fornecer definições mais certas em torno do tema do caráter e da graça sacramental. Mas sobretudo, os bispos devem colocar as mãos a sério e profundamente na formação dos futuros sacerdotes.  Ainda hoje temos seminários que defino «tridentinos liberalizados».  Não devemos dar mais passos rumo à «liberalidade», mas empreender o caminho da «radicalidade».  A formação deve consistir em ser capaz de viver hoje o Evangelho de uma forma radical.

Também neste aspeto, olhemos para o Papa Francisco : na Europa ouvimos muitas vezes que Francisco é um Papa liberal.  O Papa Francisco não é liberal :  é radical.  Ele vive a radicalidade do Evangelho. É o paradigma integral não só da sua missão, mas da sua vida, porque interiorizou a radicalidade do Evangelho.  Pensai na sua radicalidade na misericórdia, e também na proclamação do Reino de Deus.  Vedes, não se pode manter um jovem separado do mundo, numa vida de tipo monástico durante seis anos e depois queixar-se que ele acaba por pressupor uma própria diversidade.   Também neste caso não é um problema - repito - de estruturas, mas, de missão. Precisamos de compreender, ou melhor, de recompreender, o que significa ser pastores hoje.  Assim como todos nos devemos perguntar o que significa ser cristãos hoje.   Esta é a questão.  E esta pergunta é também a marca deste pontificado : aceitar a inadequação de uma pastoral filha de épocas já passadas e repensar a missão. Uma escolha que tem difíceis e corajosas implicações teológicas.

E a atitude de delegação dos leigos?

Acho que, tanto devido aos resultados deste Sínodo como à redução das vocações, o equilíbrio entre leigos e clero será muito diferente no futuro do que o atual.  No entanto, existe um obstáculo ao desenvolvimento de um diálogo construtivo que deve ser removido primeiro. Refiro-me ao facto de que o confronto gira frequentemente apenas em volta do tema do «poder».  O sínodo alemão, por exemplo, é muito influenciado por este tópico.   Penso que limitar o confronto intra-eclesial à questão do poder é profundamente errado. Tanto da parte daqueles que «contestam» o poder, como da parte de quantos «defendem» o poder.  A sinodalidade vai muito além do discurso sobre o poder.  Se as pessoas perceberem a autoridade do bispo ou pároco como «poder», bem, então temos um problema. Pois somos ordenados para um ministério, para um serviço.  Autoridade não é poder. 

Vossa Eminência fala de uma inadequação da pastoral em relação aos tempos. Por quê? Em que tempos vivemos?

É muito interessante o que Zuppi diz na entrevista concedida a vós, quando tratais o tema da mudança antropológica.   E concordo com ele que este é o tema que mais precisa de nos interpelar.  Vedes, a minha geração já experimentou e está a experimentar mudanças que nenhuma geração experimentou antes. Eu diria que as maiores desde a invenção da roda. Com a diferença de que hoje tudo muda com uma velocidade inaudita há apenas algumas décadas.  É impressionante como, por exemplo, um rapaz de 15 anos já é radicalmente diferente de um rapaz de 20. Hoje nem sequer o podemos imaginar, mas haverá transformações antropológicas muito grandes. Sabendo que o homem só pode influenciar parcialmente a própria evolução. A questão que levantastes, e que precisa de ser mais desenvolvida, é que não estamos a falar de antropologia cultural, mas de mudanças que também dizem respeito à esfera biológica, natural.

E portanto também a pastoral deveria dar-se conta...

Não quero parecer tranchant, mas com muita franqueza, a nossa pastoral  fala a um homem que já não existe. Devemos ser capazes de proclamar o Evangelho, e fazer compreender o Evangelho, ao homem de hoje que, na sua maioria, o ignora. Isto implica uma grande abertura da nossa parte, e também uma disponibilidade - embora firmes no Evangelho - para nos deixarmos transformar também nós. 

Quando falamos de mudanças antropológicas, o pensamento corre em primeiro lugar para o da relação homem-mulher. A maior mudança. Já Paulo vi tinha-a prefigurada.

Sim. Humanae Vitae é um texto maravilhoso. É realmente uma pena que só tenha ficado na história por causa do julgamento sobre os contracetivos. Pensai por exemplo na ideia que propõe do amor esponsal como uma imagem do Deus Trino. Quando ensinei no Japão sobre estes temas, desenhava um triângulo explicativo cujos vértices eram :  sexualidade,  dom da vida e  amor esponsal.  Hoje, as coisas no mundo mudaram radicalmente. Antes, a sexualidade e o dom da vida eram separados, e agora também sexualidade e  afetividade. Muitos jovens vivem a sexualidade de uma forma totalmente separada da afetividade. E não inventaram isto sozinhos, mas aprenderam-no com o mundo adulto. O matrimónio - não apenas o  sacramental - é uma prática que caiu em desuso em grande parte da Europa. E o mesmo se aplica à transmissão da herança; as pessoas na Europa podem agora viver sem a herança cultural dos pais. Cada geração é praticamente um novo começo. E o distanciamento nas idades dado por uma população cada vez mais idosa dificulta ainda mais esta transmissão.

Cardeal Hollerich, permanecendo neste argumento, há a questão da adaptação da pastoral a estas mudanças antropológicas.

Certamente. E é precisamente a necessidade pastoral que tem suscitado uma reflexão sobre   o tema dos géneros que  suscitou algumas críticas. Há uma suposição que me inspirou.  Procuro, por quanto me é possível nas dificuldades do meu papel, manter uma relação pessoal viva com os jovens. Porque antes de ser cardeal sou um sacerdote; um pastor.  E vejo constantemente que os jovens deixam de considerar o Evangelho, se tiverem a impressão de que estamos a discriminar. Para os jovens de hoje, o valor mais elevado é a não discriminação. Não só a do género, mas também étnica, de proveniência, de classe social. Sobre a discriminação zangam-se mesmo! Há algumas semanas conheci uma jovem de vinte anos que me disse : «Quero deixar a Igreja, porque ela não acolhe casais homossexuais», e eu perguntei-lhe : «Sentes-te discriminada porque és homossexual?» e ela respondeu : «Não, não! Não sou lésbica, mas a minha melhor amiga é. Conheço o seu sofrimento, e não quero fazer parte daqueles que a julgam».  Isto fez-me refletir muito. 

Mas, cardeal, as igrejas protestantes que adotam uma abordagem mais liberal e abençoam casais homossexuais, não parece que encontrem uma maior apreciação entre os jovens...

Claro que não.  Porque isso não é suficiente.  Precisamos de uma mudança de paradigma cultural mais profunda, e de uma conversão de espírito. Não se trata de um problema de direito canónico, normas ou estruturas.   Foi o que o Papa disse à Igreja alemã. «Estai atentos a não começar pelas estruturas; começai antes pela vida do povo de Deus, pela missão, pela evangelização».  Anunciar o Evangelho hoje significa proclamar a alegria da vida em Deus, encontrar o sentido da vida em Jesus Cristo. O que não é uma frase feita, porque devemos ser capazes de comunicar que viver no seguimento de Cristo significa viver bem, significa desfrutar a vida. Somos chamados a anunciar uma boa notícia, não um conjunto de normas ou proibições. 

Onde a boa notícia é o kerigma original...

Sim, é claro.  Vedes a pós-modernidade, tal como o racionalismo que a precedeu, debate contra um limite insuperável.  Que é a perceção angustiante da finitude humana. Quanto mais cresce a capacidade intelectual e cognitiva do homem, mais resulta  evidente a sua incapacidade de responder à pergunta que o acompanha - racional mas também inconscientemente – por toda a sua existência : «por que a vida acaba?», «por que este meu ‘eu’, que ninguém mais conhece na sua profundidade, está destinado a morrer?». O movimento astuto da civilização de consumo na qual vivemos é esconder e exorcizar a questão, com o engano do mito da eterna juventude. Assim, a «nova evangelização» hoje é mostrar uma hóstia elevada dizendo «quem como deste pão nunca morre».  Uma ética do amor - e da misericórdia - é portanto sucedânea à revelação que «já não se morre».   Devemos gritar nas praças e  dos terraços «já não se morre»! E se não o gritarmos, limitando-nos a propor uma ética do bom viver, não podemos então queixar-nos de que já não há crentes!  Acreditar na vida eterna, no entanto, significa acreditar que a vida eterna já está aqui, agora.  E que como tal deve ser vivida, e desfrutada. Estou muito assustado neste sentido por uma crescente conceção funcionalista da vida, pela qual, se não funcionar, deita-se fora. Fiquei aterrorizado ao ver nos Países Baixos a extensão da prática da eutanásia até aos doentes psicológicos.  Isto também é o resultado da ideologia consumista penetrante : antes, se a  televisão se avariasse, levava-a ao reparador, e os  sapatos ao sapateiro; hoje deitamos-os fora. E querem fazer o mesmo com a vida, se esta não «funcionar», se se tornar um fardo para a sociedade, deitam-no fora.  O mesmo se aplica ao início da vida : preocupa-me ouvir no Parlamento Europeu aqueles que invocam a atribuição do status de direito «‘fundamental’ ao aborto, porque se é um direito fundamental então é um direito absoluto e por isso já não admite uma recusa de consciência.   Isto também é absurdo.  Lembremo-nos sempre que a vida, mesmo que limitada, é bela».

Assim, começar de novo a partir de um túmulo vazio numa manhã de Domingo de Primavera em Jerusalém.

Claro que sim. Essa é a boa notícia! E quero acrescentar : todos são chamados a isso. Ninguém excluído : também os divorciados casados de novo, os homossexuais, todos. O Reino de Deus não é um clube exclusivo. Abre as suas portas a todos, sem discriminação. A todos!  Por vezes há debates na Igreja sobre a acessibilidade destes grupos ao Reino de Deus. E isto cria uma perceção de exclusão entre alguns do povo de Deus. Eles sentem-se excluídos e isto não é correto! Não se trata de sutilezas teológicas ou dissertações éticas : aqui é simplesmente uma questão de afirmar que a mensagem de Cristo é para todos!

No entanto, existe objetivamente um problema teológico. O senhor mesmo já o referiu em entrevistas anteriores, apelando a um repensamento da doutrina.

 O Papa Francisco recorda frequentemente a necessidade de a teologia se originar e desenvolver a partir da experiência humana, e não continuar a ser fruto apenas da elaboração académica. Muitos dos nossos irmãos e irmãs dizem-nos que seja qual for a origem e causa da sua orientação sexual, certamente não a escolheram. Não são «maçãs estragadas». São também fruto da criação. E em Bereshit lemos que em cada passo da criação Deus está satisfeito com a sua obra, dizendo «...e viu que era coisa boa». Dito isto, quero ser claro : não penso que haja espaço para um matrimónio sacramental entre pessoas do mesmo sexo, porque não há uma finalidade procriadora que o caraterize, mas isso não significa que a  relação afetiva não tenha valor algum. 

No entanto, os bispos belgas pronunciaram-se a favor da possibilidade de abençoar estas uniões.

Francamente, a questão não me parece decisiva. Se nos cingirmos à etimologia do ‘bem-dizer’, pensai  que Deus poderia alguma vez ‘dizer-mal’ de duas pessoas que se amam? Eu estaria mais interessado em discutir outros aspetos do problema. Por exemplo : o que está a impulsionar o vistoso crescimento da orientação homossexual na sociedade? Ou por que a percentagem de homossexuais nas instituições eclesiásticas é mais elevada do que na sociedade civil?

Cardeal Hollerich, Vossa Eminência é o presidente da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia. Estamos a viver um momento dramático. Após quase 80 anos, a guerra voltou a aparecer na Europa. Por incrível que pareça, a ameaça nuclear nunca como antes de hoje se tornou atual.  Perante isto, a presença ativa da Europa política promotora eficaz de paz parece fraca, débil, não escutada.

Temos de fazer a paz. Promover a paz entre as nações é como fazer a paz entre homens : deve haver sempre um compromisso entre as respetivas razões presumidas. Todos devem procurar identificar-se com as razões dos outros, mesmo que não as partilhem. E a partir daí, encontrar um compromisso.  Caso contrário, podemos ter uma trégua do conflito armado, mas não uma verdadeira paz.  A história ensina-nos que os conflitos latentes mais cedo ou mais tarde explodem em guerras.  Este também era um conflito que se arrastava há muito tempo, mas ninguém queria realmente trabalhar pela paz. Dito isto, confirmo o que dizeis : a Europa política é muito fraca.  É assim porque a prioridade política da Europa é manter os seus países constituintes, que são muito diferentes uns dos outros, unidos às suas instituições, especialmente após o alargamento a 27.   Claro que, concentrando-se mais na dinâmica interna, enfraquece a sua projeção externa, o seu protagonismo político.  Mas os líderes europeus devem compreender que o equilíbrio não é alcançado ad intra, mas ad extra, através de políticas de confrontação e proposta original com outras potências.  E isto constitui hoje um grave vulnus nos equilíbrios mundiais porque a Europa tem a inspiração para a paz no seu adn. Acho que também as forças que se  inspiram no popularismo devem comprometer-se a redefinir a sua identidade. Atualmente, o léxico europeu comum ‘popular’ é identificado com ‘conservador’, e isto não é bom. Portanto, é necessário especificar ‘popular’ na tradição dos democratas-cristãos, que tanto significado tiveram em muitos países europeus. Ou seja, recuperar esse perfil ‘social’ dos populares que o liberalismo de certo modo obscureceu. Também porque o popularismo é o único antídoto sério para o populismo.

Mas o populismo parece ainda estar a aumentar em muitos países europeus.

Onde o populismo ganha, enfrenta o desafio do governo. O problema com o populismo é que ele fornece respostas simplificadas às questões cada vez mais complicadas colocadas pelo mundo de hoje.  Pensai, por exemplo, nas receitas soberanistas propostas a um mundo que, ao contrário, está cada vez mais inextricavelmente ligado.  Preocupo-me com o que poderá acontecer caso os populistas falhem o desafio do governo.  Iriam culpar irrevogavelmente outras pessoas : migrantes, refugiados, Bruxelas. Exacerbando ainda mais as tensões sociais. E não há absolutamente necessidade disso.

Mas acredita que as derivas autoritárias, ou como se diz hoje em dia, autocratas, ainda podem ter lugar na Europa?

Não sei. Espero que não. Mas acredito que todos devemos começar a pensar sobre as condições da democracia. Pensamos até agora que a democracia era a única forma política possível no Ocidente. Mas até no Ocidente podemos sentir alguns rangidos. Temos de pensar no que significa ser um país democrático, um continente democrático, hoje. Espera-nos um inverno rigoroso, no qual muitos sofrerão de frio, pobreza, desemprego : será um teste à resiliência da democracia.  Até agora a democracia era sustentada através do bem-estar da maioria, hoje isso não é suficiente. É fácil ser amigos e democratas no rico almoço de domingo, mais complicado no dia do jejum.

Uma última questão. Como imagina a Igreja na Europa daqui a 20 anos?

Será muito menor. A maioria dos europeus não conhecerá Deus nem o seu Evangelho. Menor, mas também mais viva. Creio que esta redução em números é, no plano de Deus, necessária para ganhar um novo impulso. Nalgumas partes do norte da Europa será predominantemente uma igreja de migrantes; os ricos autóctones  são os primeiros a abandonar o barco, porque o Evangelho choca com os seus interesses. O  desejo do Papa Francisco é este : uma igreja pobre, uma igreja viva.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-10/cardeal-hollerich-igreja-pobre-viva-entrevista.html

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

De que modo mudas o mundo?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor

 

O que assistimos hoje com a guerra na Ucrânia fez-me pensar na série da Amazon Prime, “Os Anéis do Poder” que conta a história de fantasia vinda da mente de J.R.R. Tolkien sobre a criação dos anéis do poder e a ascensão do Senhor das Trevas Sauron ao poder. A mestria da visão de Tolkien é a de nos ajudar a perceber que não existem bons e maus no sentido binário do termo. Também Sauron, o Senhor das Trevas, deseja curar a Terra Média e trazer-lhe a paz. A diferença está no modo como o faz.

À nossa volta somos diariamente confrontados com coisas que não nos parecem bem. E quando discutimos sobre algo com alguém, a intenção de base é a de chegar à paz e curar a terra dos corações. Porém, uns pensam que só com poder e força podemos fazê-lo, caso contrário, os outros não aceitarão ou compreenderão a paz do modo como a entendemos. Outros, porém, pensam que a paz que cura faz-se na aventura que partilhamos juntos, sem saber muitas vezes por onde caminhar e como, seguindo apenas um aroma.

A pandemia e, agora, a guerra na Ucrânia, mostraram como a Humanidade está permanentemente numa aventura e que a paz assemelha-se, mais do que desejaríamos, a pausas entre conflitos. Se entre nós sentimos dificuldade em dialogar sobre as coisas difíceis, as consequências dessa mesma dificuldade ao nível político global torna as coisas difíceis ainda maiores. Mas, se soubéssemos os meandros de todas as histórias que conduziram à paz, a intuição diz-me que foram inúmeros os pequenos passos dados por pessoas simples que fizeram escolhas determinantes pelo efeito em cadeia que geraram.

Uma das mais recentes e mediáticas é a história de Greta Thunberg que, com 15 anos apenas, decidiu sentar-se em frente ao parlamento sueco em 2018 com um cartaz a dizer “Greve à escola pelo clima”, gerando uma onda de crescente sensibilidade ambiental entre jovens e adultos, sem prever que o seu pequeno gesto pudesse ter tamanho impacto.

Existem outros exemplos, mas se cada um sondar a sua história, certamente encontrará aquela pequena palavra que lhe disseram, ou disse; aquele gesto que lhe fizeram, ou fez; aquela presença que lhe proporcionaram, ou proporcionou; e que se tornou um ponto de viragem na sua história ou na história de alguém. Recordo-me de em 2019, após um período de incerteza relativa à ansiedade que sentia no corpo, e de inúmeros exames médicos que nada acusavam, ter recebido uma palavra da minha esposa que se tornou um ponto de viragem para mim.

A dimensão digital da nossa comunicação entra na nossa vida porque a consideramos útil. Porém, o isolamento digital que resulta dessa comunicação abre em nós a possibilidade de compreendermos melhor o valor que a dimensão física e relacional da vida tem ao comunicarmos entre nós. A guerra que vemos nos notíciários é uma expressão das guerras interiores que vivemos todos os dias, dentro de nós e que ninguém vê. Ciclos viciosos dos quais é muito difícil sair. No silêncio gritamos por ajuda, mas as pessoas à nossa volta estão tão entretidas a olhar para o seu ecrã e a partilhar fotos que nos tornamos invisíveis para elas. A inversão da espiral recessiva do mundo digitalizado talvez comece por sermos melhores a prestar atenção ao modo como agimos, pensamos, falamos e sentimos, sem esquecer que todo aquele que está ao nosso lado faz, pensa, fala e sente se lhe dermos espaço para isso.

Parece uma utopia querer resolver os problemas do mundo a partir do quotidiano de cada um de nós. Até podem dar-nos esperança de que por via da teoria do caos, um gesto de amor que fazemos será o suficiente para gerar um efeito em cadeia que muda o mundo sem termos essa pretensão. Mas nunca saberemos. E, talvez, signifique ser necessário aceitar que nunca saberemos o resultado dos nossos pequenos gestos. Porém, não saber não nos impede de não fazer.

O modo como trilhamos os nossos caminhos enche-se de incerteza, ainda que estejamos atentos aos sinais. O modo como escutamos pode abrir-nos a uma compreensão nova da realidade. O modo como falamos pode imprimir uma dinâmica nova à realidade que nos rodeia. O modo como agimos pode iniciar um efeito em cadeia cujo desfecho imprevisível pode nunca ser-nos comunicado, mas não importa. Pois, o modo como fazemos cada coisa é o modo como fazemos qualquer coisa. E se tudo o que fizermos for por amor, como diz São João da Cruz, «onde não existe amor, coloca amor e amor encontrarás».’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/829/de-que-modo-mudas-o-mundo/