domingo, 30 de junho de 2013

O trabalho na tradição monástica beneditina (Capítulo 1 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo de Dom Mateus de Salles Penteado, OSB
  

Introdução  
Foi-me pedido que apresentasse um breve apanhado histórico do trabalho na tradição monástica beneditina. O adjetivo ‘beneditina’ é aqui importante porque impõe limites bem definidos de tempo de espaço. De tempo, porque deixo de lado a tradição monástica anterior a São Bento, e de espaço, porque não abordo o monaquismo fora da órbita da Regra Beneditina. Nada, portanto, referente à gênese do problema do trabalho e de sua discussão nas origens do monaquismo, e nada também do monaquismo oriental, bem como do monaquismo ocidental não-beneditino (como é o caso das monjas carmelitas e de outras congregações) e dos movimentos monásticos recentes, sempre mais numerosos, situados fora do mundo beneditino (como Taizé, Bose, Fraternidade de Jerusalém, Fraternidade Monástica de Belém, Irmãozinhos e Irmãzinhas de Jesus, etc.).
 
Procurei não fazer uma mera crônica, o que seria tão entediante quanto pouco útil, e muito menos ater-me somente ao trabalho manual. Entendi por trabalho qualquer gênero de atividade – manual, intelectual, artística ou apostólica.
 
Normalmente se diz que a Regra Beneditina é ‘pluralista’ e por isso suscitou através dos séculos, e suscita ainda hoje, as mais variadas formas de trabalho nos mosteiros. Propus-me a questionar esse axioma, verificando até que ponto de fato foi e é algo aceito pacificamente e até que ponto representa as águas calmas da superfície que escondem o mar revolto das profundezas.
 
 
I – Séculos VII-VIII 
 
É importantíssimo o período compreendido entre São Bento e a reforma de Bento de Aniane, isto é, os séculos VII e VIII, quando a Regra não adquirira ainda os contornos de uma ‘Torah intocável’ (S. Hilpisch), tomada como norma absoluta e exclusiva. A Regra, então, estava harmoniosamente inserida na tradição, enquanto que mais tarde tornou-se a norma interpretativa da tradição. É a época da regula mixta e do pluralismo de observâncias, pluralismo este assumido muito mais sob o aspecto de comunhão do que de alternativa. Há o mosteiro-solidão, o mosteiro-escola, o mosteiro-missionário, o mosteiro-basílica, cada um com suas atividades específicas, sem a discussão se um é ‘mais monástico’ do que os outros. Tal maneira de conceber o monaquismo e a observância da Regra obviamente não deixou de influir também no trabalho. Assim, já São Gregório Magno demonstra grande liberdade em relação à Regra Beneditina. Ao mesmo tempo em que considera a contemplação o único fim da vida monástica, encarrega os monges de diversos serviços eclesiásticos e atividades missionárias. Ao fazer isso, não estava interpretando a ‘Regra’ e sim a tradição, que incluía também a Regra. Num tempo em que o fim de Roma era considerado como o fim do mundo, o monaquismo de Gregório surgia como uma esperança, tendo os monges o trabalho de lutar contra o paganismo, evangelizar e formar uma nova polis. Os monges romanos foram para a Inglaterra com esse objetivo e, por isso, o mosteiro-escola está na raiz do monaquismo inglês. É significativo que para a obra de conversão dos anglos São Gregório não tenha recorrido aos monges que fugiram de Monte Cassino, certamente mais ligados à Regra de São Bento e de tradição mais solitária, e sim aos monges formados no ambiente monástico de Santo André. Não se pode falar aqui de trabalho manual, já que, enraizados no já tradicional aristocratismo do cenobitismo ocidental, os monges eram geralmente sustentados pelos fiéis. O trabalho dos monges era acima de tudo evangelizador e formador de uma cultura religiosa, apesar de certa tensão causada pela tentativa de conjugar o apostolado com a solidão. Expoente típico desse ideal monástico cultural é São Beda, o Venerável, enquanto que o aspecto apostólico e missionário é bem representado por São Bonifácio. Para um e outro não havia contradição entre suas atividades e o ideal monástico. São Beda inseria seu estudo e ensinamento num quadro de vida regular e litúrgica, ao passo que o monge-missionário São Bonifácio, originário de um mosteiro-escola, fundou o mosteiro-solidão de Fulda, onde os monges deviam levar vida de silêncio e contemplação.
 
Quanto às monjas, a clausura sempre lhes limitou o campo de trabalho, embora não fosse ainda absoluta nessa época. Outro limite onipresente ao longo da história é o da própria condição submissa da mulher na sociedade. O trabalho manual, entre as monjas, ao contrário dos homens, era praticado por todas, compreendendo a manutenção da casa, cozinha, padaria, alfaiataria, etc. Geralmente os serviços eram realizados em turnos semanais, se não exigiam especial competência. Outros serviços como costura, bordados e tecelagem eram feitos em sala comum, acompanhados com o canto de Salmos. Frequentemente as monjas não trabalhavam somente para suprir as próprias necessidades, mas também para os mosteiros masculinos e para as igrejas. Além disso, não descuidavam da ajuda aos pobres e doentes. Muitas abadias dirigiram hospitais. Outras mantiveram pequenas escolas para crianças de ambos os sexos.
 
 
II – A reforma de São Bento de Aniane 
 
No início do século IX a situação do monaquismo ocidental era de confusão e relaxamento, quando muitos mosteiros tinham sido entregues a abades comendatários (1). Ao mesmo tempo, Carlos Magno tentava unificar seu império, incluindo nesse projeto a unificação dos mosteiros, vendo na Regra de São Bento um bom instrumento para realizar tal empresa. Para tanto, o imperador encontrou em São Bento de Aniane um ótimo colaborador. Desse modo, diante da inegável necessidade de reforma dos mosteiros, aplicou-se um remédio por demais simplista : impor a Regra Beneditina em toda parte, com exclusão das demais.
 
Podemos com muita propriedade chamar São Bento de Aniane de ‘o primeiro beneditino’ : com ele termina o tempo da diversidade de observâncias; a Regra de São Bento passa a ser absoluta e sacralizada. Basta lembrar que datam dessa época os primeiros comentários da Regra, enquanto que até então somente a Bíblia era objeto de estudo. A Regra continua sendo lida à luz da tradição monástica, mas o critério agora não é mais a pluralismo e sim a própria Regra. A legislação de Aix-la-Chapelle (817) estabeleceu a distinção entre monges e cônegos. Todos os mosteiros deviam fazer a escolha por um dos estados de vida e somente os que optassem pela Regra de São Bento poderiam continuar a ser considerados monges, estabelecendo-se até mesmo inspetores imperiais para controlar a observância e a interpretação da Regra. Em outras palavras, excluiu-se do mundo monástico ocidental tudo o que não fosse atinente à Regra de São Bento. Foi o fim do pluralismo mais genuíno e a própria Regra passou a ter somente uma única interpretação considerada ‘autêntica’. Tudo isso foi decisivo para o futuro do monaquismo ocidental e, consequentemente, para o trabalho dos monges. Nessa visão redutiva, o trabalho cresceu em importância para a auto-compreensão do monaquismo, na consideração de seu próprio significado na Igreja, mas isto muito mais por exclusão, isto é, trabalhos que os monges não poderiam fazer se quisessem continuar a ser monges. Mais do que no passado, o trabalho passou a ser critério de avaliação do ser-monge. O que o monge faz, ou melhor ainda, o que ele não faz é agora fundamental.
 
Bento de Aniane tinha uma idéia bem determinada do que deveria ser um mosteiro beneditino. Para ele, o beneditino é o monge consagrado à oração e ao trabalho, vivendo na completa separação do mundo. Por isso, recusou outros tipos de mosteiro que exigiam contato com o mundo, como o mosteiro-basílica (quase sempre um mosteiro de peregrinação) e o mosteiro-escola (desejava a instrução somente para os oblatos e não mais para as crianças seculares). Mantém a trilogia Ofício-‘lectio’-trabalho manual, mas o equilíbrio começa a ser rompido em prejuízo tanto da ‘lectio’ como do trabalho, dando início à tendência de fazer do Ofício divino não apenas a primeira ocupação do monge, mas a única. Embora pretendendo seguir literalmente a Regra, Bento de Aniane estabeleceu um Ofício exageradamente alongado, com Salmos suplementares e visitas a altares. Os documentos sobre a reforma franca tratam sobretudo do Ofício e suas prescrições. O tempo restante devia ser dividido entre ‘lectio’ divina e trabalho manual. O trabalho era dirigido principalmente para a manutenção do mosteiro, incluindo cozinha, padaria, lavanderia, confecção de calçados e de vestes, cultura dos campos ao redor e colheita de frutos. Em suma, somente trabalhos que não impedissem a estrita observância da clausura.
 
Após a morte de Bento de Aniane (821), os efeitos da reforma em parte desapareceram, permanecendo, porém, o realce dado à liturgia, bem como a tendência à centralização, que foi num crescendo até nossos dias. Muitos mosteiros, entre os quais as célebres abadias de Fulda, Reichenau e Saint-Gall, pouco conservaram da reforma, subsistindo como centros agrícolas, culturais e de hospitalidade. Além disso, embora o gosto pelos estudos não fosse novidade entre os monges, o renascimento carolíngio trouxe-lhe novo impulso. Todo mosteiro importante deverá possuir seu scriptorium e seu ateliê de copistas, cujas atividades desenvolveram-se bastante no século IX. Em Saint-Gall, por exemplo, de seus 120 monges, cerca de 90 trabalhavam no scriptorium. Demonstrando largueza de espírito, os monges não distinguiam as obras pagãs das cristãs no trabalho de cópia, preservando-se, assim, muitíssimas obras da Antiguidade clássica e da Patrística. A própria complexidade administrativa das abadias, sempre crescente, exigiu também uma ampla diversificação nos estudos. Daí a existência de monges juristas, geômetras, médicos, engenheiros, músicos, botânicos, escultores, poetas, historiadores, etc. Assim, um monge como Rabano Mauro (+856), discípulo do grande Alcuíno, pode escrever uma obra como a De Universo, que compreendia todo o saber de seu tempo em seus 22 livros. Apesar da tentativa em contrário por parte de São Bento de Aniane, as escolas monásticas proliferaram e a abadia carolíngia adquiriu um acentuado caráter de centro cultural e universitário.
  

Fonte :  
* Dom Mateus de Salles Penteado, OSB, é monge do Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa, Paraná – Conferência pronunciada em 1988 – CIMBRA - RJ 

Revista Beneditina nrº 17, Julho/Agosto de 2006, editado pelas monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora/Minas Gerais. 

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Notas :  

(1)   De acordo com a Regra  Beneditina, a comunidade elege o seu abade. Mas, a partir do século VIII, visando mais o seu próprio interesse do que o da vida monástica, reis e bispos, como recompensa a alguns leigos pelos serviços prestados, entregavam-lhes uma abadia, nomeando-os abades. Estes abades comendatários geralmente eram dóceis auxiliares dos reis, causando grande prejuízo à vida monástica. 

 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Carta Apostólica Mulieris Dignitatem (Capítulo 7 de 9)


Capítulo VII


Nasce a Igreja

A IGREJA — ESPOSA DE CRISTO

O « grande mistério »

Uma importância fundamental a este respeito têm as palavras da Carta aos Efésios: « Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de santificá-la, purificando-a com o lavacro de água juntamente com a palavra, para apresentar a si próprio essa Igreja resplandecente de glória, sem mancha, nem ruga, nem coisa alguma semelhante, para que seja santa e irrepreensível. Desse modo devem também os maridos amar as mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne, antes, cada qual a nutre e dela toma cuidados, como Cristo faz também com a Igreja, pois nós somos membros do seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, unir-se-á à sua mulher e passarão os dois a formar uma só carne. Grande mistério é este: mas digo-o referindo-me a Cristo e à Igreja » (5, 25-32).

Nesta Carta o autor exprime a verdade sobre a Igreja como esposa de Cristo, indicando igualmente como esta verdade se radica na realidade bíblica da criação do homem como varão e mulher. Criados à imagem e semelhança de Deus como « unidade dos dois », ambos foram chamados a um amor de caráter esponsal. Pode-se dizer também que, seguindo a descrição da criação no Livro do Gênesis (2, 18-25), este chamamento fundamental se manifesta juntamente com a criação da mulher e é inscrito pelo Criador na instituição do matrimônio, que, segundo o Gênesis 2, 24, desde o início possui o caráter de união das pessoas (« communio personarum »). Embora não diretamente, a mesma descrição do « princípio » (cf. Gên 1, 27 e Gên 2, 24) indica que todo o « ethos » das relações recíprocas entre o homem e a mulher deve corresponder à verdade pessoal do seu ser.

Tudo isto já foi considerado precedentemente. O texto da Carta aos Efésios confirma ainda uma vez a verdade acima apresentada e, ao mesmo tempo, compara o caráter esponsal do amor entre o homem e a mulher com o mistério de Cristo e da Igreja. Cristo é o Esposo da Igreja, a Igreja é a Esposa de Cristo. Esta analogia não deixa de ter precedentes: ela transfere para o Novo Testamento o que já estava presente no Antigo Testamento, particularmente nos profetas Oséias, Jeremias, Ezequiel e Isaías. (48) As respectivas passagens merecem uma análise à parte. Citemos pelo menos um texto. Eis como Deus fala ao seu povo eleito através do profeta: « Não temas, porque não terás que te envergonhar; não te confundas, porque não terás do que te enrubescer; antes, esquecerás a vergonha da tua juventude, e não te lembrarás mais da afronta da tua viuvez; porque o teu esposo é o teu Criador, cujo nome é Senhor dos exércitos; o teu redentor é o Santo de Israel, que se chama Deus de toda terra ... Será, por acaso, repudiada a mulher desposada na juventude? Diz o teu Deus. Por um breve instante eu te abandonei, e com grande afeto, voltarei a acolher-te. Num rapto de ira, ocultei-te o meu rosto por um momento; mas com perene clemência compadeci-me de ti, diz o teu redentor, o Senhor ... Abalar-se-ão os montes e os outeiros vacilarão, mas a minha clemência de ti não se apartará, e o meu pacto de paz não vacilará » (Is 54, 4-8.10).

O ser humano — homem e mulher — foi criado à imagem e semelhança de Deus, Deus pode falar de si pelos lábios do profeta, servindo-se da linguagem que é por essência humana: no texto citado de Isaías é « humana » a expressão do amor de Deus, mas o amor em si mesmo é divino. Sendo amor de Deus, esse amor tem um caráter esponsal propriamente divino, ainda que venha expresso com a analogia do amor do homem para com a mulher. Essa mulher-esposa é Israel, enquanto povo escolhido por Deus, e esta eleição tem sua origem exclusiva no amor gratuito de Deus. É justamente por este amor que se explica a Aliança, apresentada frequentemente como uma aliança matrimonial, que Deus renova sempre com o seu povo escolhido. Esta aliança, da parte de Deus, é « um compromisso » duradouro; ele permanece fiel ao seu amor esponsal, embora a esposa se tenha demonstrado muitas vezes infiel.

Esta imagem do amor esponsal ligada com a figura do Esposo divino — uma imagem muito clara nos textos proféticos — encontra a sua confirmação e coroamento na Carta aos Efésios (5, 23-32). Cristo é saudado como esposo por João Batista (cf. Jo 3, 27-29): antes, o próprio Cristo aplica a si esta comparação tomada dos profetas (cf. Mc 2, 19-20). O apóstolo Paulo, que traz em si todo o patrimônio do Antigo Testamento, escreve aos Coríntios: « Pois bem, eu sou ciumento de vós, do mesmo ciúme de Deus, por vos ter desposado com um único esposo, para apresentar-vos a Cristo como virgem pura » (2 Cor 11, 2). A expressão mais plena, porém, da verdade sobre o amor de Cristo redentor, segundo a analogia do amor esponsal no matrimônio, se encontra na Carta aos Efésios: « Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela » (5, 25); e nisto se confirma plenamente o fato de a Igreja ser a esposa de Cristo: « O teu redentor é o Santo de Israel » (Is 54, 5). No texto paulino, a analogia da relação esponsal toma ao mesmo tempo duas direções, que formam o conjunto do « grande mistério » (« sacramentum magnum »). A aliança própria dos esposos « explica » o caráter esponsal da união de Cristo com a Igreja, e esta união, por sua vez, como « grande sacramento », decide da sacramentalidade do matrimônio como aliança santa dos esposos, homem e mulher. Lendo esta passagem, rica e complexa, que, no seu conjunto, é uma grande analogia, devemos distinguir o que nela exprime a realidade humana das relações interpessoais daquilo que exprime, com linguagem simbólica, o « grande mistério » divino.

A « novidade » evangélica

24. O texto dirige-se aos esposos como homens e mulheres concretos, e recorda-lhes o « ethos » do amor esponsal que remonta à instituição divina do matrimônio desde o « princípio ». A verdade desta instituição corresponde a exortação: « Maridos, amai as vossas mulheres », amai-as em virtude do vínculo especial e único, pelo qual o homem e a mulher, no matrimônio, se tornam « uma só carne » (Gên 2, 24; Ef 5, 31). Existe neste amor uma afirmação fundamental da mulher como pessoa, uma afirmação graças à qual a personalidade feminina pode desenvolver-se plenamente e enriquecer-se. É precisamente assim que age Cristo como esposo da Igreja, desejando que ela seja « resplandecente de glória, sem mancha, nem ruga » (Ef 5, 27). Pode-se dizer que aqui esteja plenamente assumido aquilo que constitui o « estilo » de Cristo no trato da mulher. O marido deveria fazer seus os elementos deste estilo em relação à sua esposa; e, analogamente, deveria fazer o homem a respeito da mulher, em todas as situações. Assim, os dois, homem e mulher, atuam o « dom sincero de si mesmos »!

O autor da Carta aos Efésios não vê contradição alguma entre uma exortação formulada dessa maneira e a constatação de que « as mulheres sejam submissas aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher » (5, 22-23). O autor sabe queesta impostação, tão profundamente arraigada nos costumes e na tradição religiosa do tempo, deve ser entendida e atuada de um modo novo: como uma « submissão recíproca no temor de Cristo » (cf. Ef 5, 21); tanto mais que o marido é dito « cabeça » da mulher como Cristo é cabeça da Igreja; e ele o é para se entregar « a si mesmo por ela » (Ef 5, 25 ) e se entregar a si mesmo por ela é dar até a própria vida. Mas, enquanto na relação Cristo-Igreja a submissão é só da parte da Igreja, na relação marido-mulher a « submissão » não é unilateral, mas recíproca!

Em relação ao « antigo » isto é evidentemente algo « novo »: é a novidade evangélica. Encontramos várias passagens em que os escritos apostólicos exprimem esta novidade, embora nelas se faça ouvir também aquilo que é « antigo », aquilo que ainda está arraigado na tradição religiosa de Israel, no seu modo de compreender e de explicar os textos sagrados como, por exemplo, a passagem de Gênesis (c. 2). (49)

As Cartas apostólicas são dirigidas a pessoas que vivem num ambiente que tem o mesmo modo de pensar e de agir. A « novidade » de Cristo é um fato: ela constitui o conteúdo inequívoco da mensagem evangélica e é fruto da redenção. Ao mesmo tempo, porém, a consciência de que no matrimônio existe a recíproca « submissão dos cônjuges no temor de Cristo », e não só a da mulher ao marido, deve abrir caminho nos corações e nas consciências, no comportamento e nos costumes. Este é um apelo que não cessa de urgir, desde então, as gerações que se sucedem, um apelo que os homens devem acolher sempre de novo. O apóstolo escreveu não só: « Em Cristo Jesus ... não há homem nem mulher », mas também: « não há escravo nem livre ». E, contudo, quantas gerações tiveram que passar, até que esse princípio se realizasse na história da humanidade com a abolição do instituto da escravidão! E que dizer de tantas formas de escravidão, às quais estão sujeitos homens e povos, que ainda não desapareceram da cena da história?

O desafio, porém, do « ethos » da redenção é claro e definitivo. Todas as razões a favor da « submissão » da mulher ao homem no matrimônio devem ser interpretadas no sentido de uma « submissão recíproca » de ambos « no temor de Cristo ». A medida do verdadeiro amor esponsal encontra a sua fonte mais profunda em Cristo, que é o Esposo da Igreja, sua Esposa.

A dimensão simbólica do « grande mistério »

25. No texto da Carta aos Efésios encontramos uma segunda dimensão da analogia que, no seu conjunto, deve servir à revelação do « grande mistério »: a dimensão simbólica. Se o amor de Deus para com o homem, para com o povo escolhido, Israel, é apresentado pelos profetas como o amor do esposo pela esposa, tal analogia exprime a qualidade « esponsal » e o caráter divino e não humano do amor de Deus: « O teu esposo é o teu Criador ... que se chama Deus de toda a terra » (Is 54, 5). O mesmo se diga também do amor esponsal de Cristo redentor: « Com efeito, Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito » (Jo 3, 16). Trata-se, portanto, do amor de Deus expresso mediante a redenção, operada por Cristo. Segundo a Carta paulina, este amor é « semelhante » ao amor esponsal dos cônjuges humanos, mas naturalmente não é « igual ». A analogia, com efeito, implica conjuntamente uma semelhança e uma margem adequada de não-semelhança.

É fácil observá-lo, se tomarmos em consideração a figura da « esposa ». Segundo a Carta aos Efésios, a esposa é a Igreja, tal como para os profetas a esposa era Israel: portanto, é um sujeito coletivo, e não uma pessoa singular. Este sujeito coletivo é o Povo de Deus, ou seja, uma comunidade composta de muitas pessoas, tanto homens como mulheres. « Cristo amou a Igreja » precisamente como comunidade, como Povo de Deus e, ao mesmo tempo, nesta Igreja, que na mesma passagem é chamada também seu « corpo » (cf. Ef 5, 23), ele amou cada pessoa singularmente. De fato, Cristo remiu todos, sem exceção, todos os homens e todas as mulheres. Na redenção exprime-se justamente este amor de Deus e realiza-se, na história do homem e do mundo, o caráter esponsal desse amor.

Cristo entrou na história e permanece nela como o Esposo que « se entregou a si mesmo ». « Entregar-se » significa « tornar-se um dom sincero », da maneira mais completa e radical: « Ninguém tem maior amor do que este » (Jo 15, 13). Nesta concepção, por meio da Igreja, todos os seres humanos — tanto homens como mulheres — são chamados a ser a « Esposa » de Cristo, redentor do mundo. Assim, « ser esposa », portanto o « feminino », torna-se símbolo de todo o « humano », segundo as palavras de Paulo: « não há homem nem mulher: todos vós sois um só em Cristo Jesus » (Gál 3, 28).

Do ponto de vista linguístico, pode-se dizer que a analogia do amor esponsal segundo a Carta aos Efésios reporta o que é « masculino » ao que é « feminino », dado que, como membros da Igreja, também os homens estão compreendidos no conceito de « Esposa ». E isto não pode causar admiração, pois o apóstolo, para exprimir a sua missão em Cristo e na Igreja, fala de « filhinhos por quem eu sofro as dores de parto » (cf. Gál 4, 19). No âmbito daquilo que é « humano », daquilo que é humanamente pessoal, a « masculinidade » e a « feminilidade » se distinguem e, ao mesmo tempo, se completam e se explicam mutuamente. Isso está presente também na grande analogia da « Esposa » na Carta aos Efésios. Na Igreja, todo ser humano — homem e mulher — é a « Esposa », enquanto acolhe como dom o amor de Cristo redentor, e enquanto procura corresponder-lhe com o dom da própria pessoa.

Cristo é o Esposo. Nisto se exprime a verdade sobre o amor de Deus que « foi o primeiro a nos amar » (1 Jo 4, 19) e que com o dom gerado por este amor esponsal pelo homem superou todas as expectativas humanas: « amou até o fim » (Jo 13, 1). O Esposo — o Filho consubstancial ao Pai enquanto Deus — tornou-se filho de Maria, « filho do homem », verdadeiro homem, do sexo masculino. O símbolo do Esposo é de gênero masculino. Neste símbolo masculino é representado o caráter humano do amor pelo qual Deus expressou o seu amor divino por Israel, pela Igreja, por todos os homens. Meditando no que os Evangelhos dizem sobre o comportamento de Cristo com as mulheres, podemos concluir que como homem, filho de Israel, ele revelou a dignidade das « filhas de Abraão » (cf. Lc 13, 16), a dignidade possuída pela mulher desde o « princípio » em igualdade com o homem. E, ao mesmo tempo, Cristo colocou em evidência toda a originalidade que distingue a mulher do homem, toda a riqueza a ela conferida no mistério da criação. No comportamento de Cristo em relação à mulher realiza-se de maneira exemplar aquilo que o texto da Carta aos Efésios exprime com o conceito de « esposo ». Precisamente porque o amor divino de Cristo é amor de Esposo, esse amor é o paradigma e o exemplar de todo amor humano, particularmente do amor dos homens-varões.

A Eucaristia

26. Sobre o amplo horizonte do « grande mistério », que se exprime na relação esponsal entre Cristo e a Igreja, é possível também compreender de modo adequado o fato do chamamento dos « Doze ». Chamando só homens como seus apóstolos, Cristo agiu de maneira totalmente livre e soberana. Fez isto com a mesma liberdade com que, em todo o seu comportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também pela legislação do tempo. Por conseguinte, a hipótese segundo a qual ele teria chamado homens como apóstolos, seguindo a mentalidade difusa no seu tempo, não corresponde em absoluto ao modo de agir de Cristo. « Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus com verdade ... pois não fazes acepção de pessoas » (Mt 22, 16). Estas palavras caracterizam plenamente o comportamento de Jesus de Nazaré. Nisto se pode encontrar também uma explicação para o chamamento dos « Doze ». Eles estão com Cristo durante a última Ceia; só eles recebem o mandato sacramental: « fazei isto em minha memória » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24), ligado à instituição da Eucaristia. Eles, na tarde do dia da Ressurreição, recebem o Espírito Santo para perdoar os pecados: « àqueles a quem perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos » (Jo 20, 23).

Encontramo-nos no próprio centro do Mistério pascal, que revela até o fundo o amor esponsal de Deus. Cristo é o Esposo porque « se entregou a si mesmo »: o seu corpo foi « dado », o seu sangue foi « derramado » (cf. Lc 22, 19-20). Deste modo « amou até o fim » (Jo 13, 1). O « dom sincero » atuado no sacrifício da Cruz ressalta de modo definitivo o sentido esponsal do amor de Deus. Cristo é o Esposo da Igreja, como redentor do mundo. A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa. A Eucaristia torna presente e de modo sacramental realiza novamente o ato redentor de Cristo, que « cria » a Igreja, seu corpo. Com este « corpo » Cristo está unido como o esposo com a esposa. Tudo isto está presente na Carta aos Efésios. No « grande mistério » de Cristo e da Igreja é introduzida a perene « unidade dos dois », constituída desde o « princípio » entre o homem e a mulher.

Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é « feminino » e o que é « masculino », querida por Deus, tanto no mistério da criação como no da redenção. É na Eucaristia que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja Esposa. Isto se torna transparente e unívoco, quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age « in persona Christi », é realizado pelo homem. É uma explicação que confirma o ensinamento da Declaração Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial. (50)

O dom da Esposa

27. O Concílio Vaticano II renovou na Igreja a consciência da universalidade do sacerdócio. Na Nova Aliança há um só sacrifício e um só sacerdote: Cristo. Deste único sacerdócio participam todos os batizados, tanto homens como mulheres, enquanto devem « oferecer a si mesmos como vítima viva, santa, agradável a Deus » (cf. Rom 12, 1), dar em toda parte testemunho de Cristo e, a quem pergunte, dar uma resposta acerca da esperança da vida eterna (cf. 1 Pdr 3, 15 ). (51) A participação universal no sacrifício de Cristo, no qual o Redentor ofereceu ao Pai o mundo inteiro e, particularmente, a humanidade, faz com que todos, na Igreja, sejam « um reino de sacerdotes » (Apoc 5, 10; cf. 1 Pdr 2, 9), isto é, participem não só na missão sacerdotal, mas também na profética e real de Cristo Messias. Esta participação determina, outrossim, a união orgânica da Igreja, como Povo de Deus, com Cristo. Nela se exprime ao mesmo tempo o « grande mistério » da Carta aos Efésios: a Esposa unida ao seu Esposo, unida porque vive a sua vida; unida porque participa na sua tríplice missão (tria munera Christi); unida de maneira a responder com um « dom sincero de si mesma » ao dom inefável do amor do Esposo, redentor do mundo. Isto diz respeito a todos na Igreja, tanto a mulheres como a homens, e diz respeito obviamente também àqueles que são participantes no « sacerdócio ministerial », (52) que possui o caráter de serviço. No âmbito do « grande mistério » de Cristo e da Igreja, todos são chamados a responder — como uma esposa — com o dom da sua vida ao dom inefável do amor de Cristo, o qual, como Redentor do mundo, é o único Esposo da Igreja. No « sacerdócio real », que é universal, exprime-se contemporaneamente o dom da Esposa.

Isso é de fundamental importância para compreender a Igreja na sua própria essência, fazendo com que se evite transferir à Igreja — também na sua qualidade de « instituição » composta de seres humanos e inserida na história — critérios de compreensão e de julgamento que não dizem respeito à sua natureza. Mesmo que a Igreja possua uma estrutura « hierárquica », (53) esta, todavia, se ordena integralmente à santidade dos membros corpo místico de Cristo. E a santidade é medida segundo o « grande mistério », em que a Esposa responde com o dom do amor ao dom do Esposo, e o faz « no Espírito Santo », pois « o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado » (cf. Rom 5, 5). O Concílio Vaticano II, confirmando o ensinamento de toda a tradição, recordou que, na hierarquia da santidade, precisamente a « mulher », Maria de Nazaré, é « figura » da Igreja. Ela « precede » todos no caminho rumo à santidade; na sua pessoa « a Igreja já atingiu a perfeição, pela qual existe sem mácula e sem ruga » (cf. Ef 5, 27). (54) Neste sentido, pode-se dizer que a Igreja é conjuntamente « mariana » e « apostólico-petrina ». (55)

Na história da Igreja, desde os primeiros tempos existiam — ao lado dos homens — numerosas mulheres, para as quais a resposta da Esposa ao amor redentor do Esposo adquiria plena força expressiva. Como primeiras, vemos aquelas mulheres que pessoalmente tinham encontrado Cristo, tinham-no seguido e, depois da sua partida, juntamente com os apóstolos, « eram assíduas na oração » no cenáculo de Jerusalém até ao dia do Pentecostes. Naquele dia, o Espírito Santo falou por meio de « filhos e filhas » do Povo de Deus, cumprindo o anúncio do profeta Joel (cf. At 2, 17). Aquelas mulheres, e a seguir outras mais, tiveram parte ativa e importante na vida da Igreja primitiva, na edificação desde os fundamentos da primeira comunidade cristã — e das comunidades que se seguiram — mediante os próprios carismas e o seu multiforme serviço. Os escritos apostólicos anotam os seus nomes, como Febe, « diaconisa da Igreja de Cêncreas » (cf. Rom 16, 1), Prisca com o marido áquila (cf. 2 Tim 4, 19), Evódia e Síntique (Flp 4, 2), Maria, Trifena, Perside, Trifosa (Rom 16, 6. 12). O apóstolo fala de suas « fadigas » por Cristo, e estas indicam os vários campos de serviço apostólico da Igreja, a começar pela « igreja doméstica ». Nesta, de fato, a « fé sincera » passa da mãe aos filhos e netos, como realmente se verificou na casa de Timóteo (cf. 2 Tim 1, 5).

O mesmo se repete no decorrer dos séculos, de geração em geração, como demonstra a história da Igreja. A Igreja, com efeito, defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que — fiéis ao Evangelho — em todo o tempo participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus. Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja.

Em cada época e em cada país encontramos numerosas mulheres « perfeitas » (cf. Prov 31, 10), que — não obstante perseguições, dificuldades e discriminações — participaram na missão da Igreja. Basta mencionar aqui Mônica, mãe de Agostinho, Macrina, Olga de Kiev, Matilde de Toscana, Edviges da Silésia e Edviges de Cracóvia, Elisabeth de Turíngia, Brígida da Suécia, Joana d'Arc, Rosa de Lima, Elisabeth Seaton e Mary Ward.

O testemunho e as obras de mulheres cristãs tiveram um influxo significativo na vida da Igreja, como também na da sociedade. Mesmo diante de graves discriminações sociais, as mulheres santas agiram de « modo livre », fortalecidas pela sua união com Cristo. Semelhante união e liberdade enraizadas em Deus explicam, por exemplo, a grande obra de Santa Catarina de Sena na vida da Igreja e de Santa Teresa de Jesus na vida monástica.

Também em nossos dias a Igreja não cessa de enriquecer-se com o testemunho das numerosas mulheres que realizam a sua vocação à santidade. As mulheres santas são uma personificação do ideal feminino, mas são também um modelo para todos os cristãos, um modelo de « sequela Christi », um exemplo de como a Esposa deve responder com amor ao amor do Esposo.
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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Eu te adoro com afeto, Deus oculto (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A Contemplação Eucarística
 
              Na última linha da 1ª estrofe a chama do fervor se eleva ainda :  Quia te contemplans totum déficit (literalmente = porque ao contemplar-te tudo se rende). Uma característica de certos veneráveis hinos litúrgicos latinos, como o ‘Adoro te devote’, o ‘Veni creator’ e outros, é a extraordinária densidade de significado presente em suas palavras. Cada uma delas está cheia de conteúdo.
 
     Para compreender plenamente o sentido desta frase, como, aliás, de todo o hino, é necessário considerar o ambiente e o contexto em que foi escrito. Como vidos, nosso hino surgiu quando a teologia eucarística passava por grande mudança ocasionada pela reação às teorias de Berengário de Tours. A reflexão cristã concentra-se quase exclusivamente na presença real de Cristo na Eucaristia, de tal modo que, às vezes, exagera na afirmação de uma presença física e quase material (9). Surge na Bélgica a grande onda de fervor eucarístico que, em pouco tempo, contagiará toda a cristandade e culminará com a instituição da festa de Corpus Christi em 1264, pelo Papa Urbano IV. Cresce nos fiéis o respeito pela Eucaristia e, ao mesmo tempo, o sentimento de indignidade para aproximar-se dela, por causa das condições quase impraticáveis exigidas para receber a comunhão (jejum, penitências, confissão, abstinência das relações conjugais). A comunhão dos fiéis passou a ser um fato tão raro que, em 1215 o Concílio Lateranense IV determinou a obrigação de comungar ao menos na Páscoa. Contudo, a Eucaristia continuou atraindo irresistivelmente as almas e assim, pouco a pouco, a falta do ato de ‘comer’ a comunhão levou ao desenvolvimento do ato de ‘ver’ da contemplação. No Oriente, pelas mesmas razões, os leigos não Têm também o contato visual : o rito central da Missa é realizado atrás de uma cortina, posteriormente transformado no mudo do iconóstase.
 
            Por conseguinte, a elevação da hóstia e do cálice no momento da consagração – até esta época era desconhecida (o primeiro testemunho escrito de sua instituição é de 1196) – transforma-se para os fiéis na ocasião mais importante da Missa. É quando irrompem os sentimentos de devoção e eles esperam receber graças. Os sinos repicam nesse instante para advertir os ausentes, e algumas pessoas correm de uma Missa para outra, a fim de assistir a várias ‘elevações’. Muitos hinos eucarísticos, entre eles o ‘Ave verum’, foram compostos para acompanhar este ato; são hinos para a ‘elevação’. Entre eles encontra-se também nosso ‘Adoro te devote’. Do começo ao fim sua linguagem é a de ver, contemplar : te contemplo; não vejo; agora vejo; feliz contemplando.
            Hoje, já não agimos assim em relação à Eucaristia; há tempos que a comunhão se insere na participação inteira na Missa; as conquistas da teologia (movimento bíblico, litúrgico, ecumênico), que confluíram no Concílio Vaticano II e na reforma litúrgica, restituíram junto à fé na presença real o devido valor a outros aspectos da Eucaristia : o banquete, o sacrifício, o memorial, a dimensão comunitária e eclesial.
            Poder-se-ia pensar que neste novo clima já não há lugar para o ‘Adoro te devote’ e as práticas eucarísticas nascidas naquele período da Idade Média. Ao contrário, é precisamente agora que se tornam mais úteis e necessárias, para não perdermos, por causa das conquistas de hoje, as de ontem. Não podemos reduzir a Eucaristia somente à contemplação da presença real da Hóstia consagrada, mas seria igualmente uma grande perda renunciar a ela. O Papa João Paulo II não faz senão recomendá-la desde sua primeira carta, ‘O ministério e o culto da Santíssima Eucaristia’, da Quinta-Feira Santa de 1980 :
            A adoração a Cristo neste sacramento de amor deve encontrar sua expressão em diversas formas de devoção eucarística : oração pessoal ante o Santíssimo, oras de adoração, exposições breves, prolongadas, anuais (...) Jesus nos espera neste Sacramento de Amor. Não economizemos tempo para ir encontrá-lo na adoração e na contemplação cheia de fé’.
            Nossos irmãos ortodoxos não compartilham este aspecto da piedade católica; alguns deles assinalam amavelmente  que o pão é para ser comido, não para ser visto. Outros, também entre os católicos, observam que essa prática se desenvolver em um tempo de grave ofuscamento da vida litúrgica e sacramental.
            A favor da riqueza da contemplação eucarística não encontramos especiais explicações teológicas e teóricas, mas sim o imponente testemunho dos fatos, literalmente ‘uma nuvem de testemunhas’. Bastante recente é o de Carlos de Foucauld, que fez da adoração da Eucaristia um dos pontos fortes de sua espiritualidade e da de seus seguidores. Inumeráveis almas alcançaram a santidade praticando a adoração eucarística e já foi demonstrada sua contribuição decisiva para a experiência mística (10). A Eucaristia, dentro e fora da Missa, foi para a Igreja católica o que na família era até há pouco o fogo doméstico durante o inverno : o lugar em torno do qual a família reencontrava sua própria unidade e intimidade, o centro ideal de tudo.
            Isto não quer dizer que não existam igualmente razões teológicas na base da contemplação eucarística. A primeira decorre da palavra de Cristo : ‘Fazei isto em memória de mim’. Na noção de memorial há um aspecto objetivo e sacramental que consiste em repetir o rito realizado por Cristo recordando e tornando presente seu sacrifício. Todavia, existe também um aspecto subjetivo e existencial, cultivar a lembrança de Cristo, ‘ter constanttetemente na memória pensamentos que se referem a Cristo e a seu amor’ (11). Esta ‘doce memória de Jesus’ (‘Jesu dulcis memoria’) não está limitada ao tempo que se passa ante o sacrário; pode ser alimentada com outros meios, como a contemplação dos ícones; é certo porém, que a adoração ao Santíssimo é um meio privilegiado para fazê-lo.
            Os dois aspectos do memorial – celebração e contemplação da eucaristia – não se excluem reciprocamente, mas se completam. A contemplação, de fato, é o meio com o qual nós ‘recebemos’, em sentido forte, os mistérios, com o qual os interiorizamos e nos abrimos a sua ação; é o equivalente dos mistérios no plano existencial e subjetivo; é um modo para permitir à graça, recebida nos sacramentos, plasmar nosso universo interior, isto é, os pensamentos, os afetos, a vontade, a memória.
            Há uma grande afinidade entre Eucaristia e Encarnação. Na Encarnação – diz Santo Agostinho – ‘Maria concebeu o Verbo antes com a mente que com o corpo’ (Prius concepit mente quam corpore). E mais, acrescenta, de nada lhe valeria levar Cristo em seu ventre se não o tivesse levado com amor também em seu coração (12). Igualmente o cristão deve acolher a Cristo em sua mente antes de acolhê-lo e tê-lo em seu corpo. E acolher a Cristo na mente significa, concretamente, pensar nele, ter o olhar posto nele, fazer memória dele, contemplando o sinal que ele mesmo escolheu para permanecer entre nós. 
 

Esqueço de Tudo 
            Ao te contemplar’ (Te contemplans), diz nosso hino. Que encerra o pronome ‘te’? Decerto refere-se a Cristo realmente presente na hóstia, não uma presença estática e inerte; indica todo o mistério de Cristo, a pessoa e a obra; é importante escutar silenciosamente o Evangelho ou um versículo na presença do próprio autor do Evangelho, que traz à palavra uma força imediata particular.

     Porém, não estamos ainda no cume da contemplação. Os grandes mestres espirituais definiram a contemplação como ‘Um olhar livre, penetrante e imóvel’ (Hugo de São Vitor), ou : ‘Um olhar afetivo em Deus’ ( São Boaventura). Estar em contemplação eucarística significa, portanto, concretamente, estabelecer um contato de coração a coração com Jesus presente realmente na Hóstia. A contemplação tende sempre à pessoa, ao todo e não às partes. Contemplação eucarística é olhar para quem me olha. 
     Esta fase da contemplação é a descrita pelo autor do ‘Adoro te devote’ quando afirma : quia te contemplans totum déficit (literalmente = porque ao contemplar-te tudo se rende). São palavras nascidas certamente da experiência. ‘Tudo se rende’, que ‘tudo’? Não só o mundo exterior, as pessoas, as coisas, mas também o mundo interior dos pensamentos, das imagens, das preocupações. ‘Esqueço tudo, exceto Deus’, escrevia Pascal, referindo-se a uma experiência semelhante. E Francisco de Assis advertia seus irmãos : ‘Seria grande miséria e terrível mal se, tendo a Ele assim presente, se ocuparem de qualquer outra coisa existente em todo o universo!(13).
            Pela mesma época em que se compunha nosso hino, ou seja, no final do século XIII, Roger Bacon, um grande enamorado da Eucaristia, escrevia estas palavras que parecem um comentário à primeira estrofe do ‘Adoro te devote’ é uma confirmação da experiência que dela se transluz : ‘Se a majestade divina se tivesse manifestado sensivelmente, não poderíamos suportá-la e nos teríamos rendido (deficeremus!) de todo pela reverência, a devoção e o assombro... A experiência o demonstra. Os que se exercitam na fé e no amor deste sacramento não conseguem suportar a devoção que nasce de uma pura fé, sem desfazer-se em lágrimas e sem que sua alma, saindo de si mesma, se espraie pela doçura da devoção, até a ponto de não saber já onde se encontra, nem por quê(14).
            A contemplação eucarística é tudo menos indulgência ao quietismo. Já foi observado como o homem reflete em si, às vezes também fisicamente, o que contempla. Não se fica por muito tempo exposto ao sol sem que se note na face. Permanecendo prolongadamente e com fé, não necessariamente com fervor sensível, ante o Santíssimo, assimilamos os pensamentos e os sentimentos de Cristo, por via não discursiva, mas intuitiva; quase ‘ex opere operato’.
            É o que se verifica no processo de fotossíntese das plantas. Na primavera brotam as folhas verdes; estas absorvem da atmosfera certos elementos que, sob a ação da luz solar, ‘se fixam’, sendo transformados em alimento da planta. Precisamos ser como estas folhas verdes! Elas simbolizam as almas eucarísticas que, contemplando Cristo, ‘o sol de justiça’, ‘fixam’ o alimento – o próprio Espírito Santo – em benefício de toda a grande árvore, ou seja, a Igreja. Em outras palavras é o que diz o apóstolo Paulo : ‘Todos nós, porém, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, e, segundo esta imagem, somos transformados com uma glória cada vez maior, pelo Espírito do Senhor’ (2 Cor 3,18).
            Se agora, após termos vislumbrado esses raios de luz que o autor do hino nos fez entrever, voltarmos com o pensamento à nossa realidade e ao nosso pobre modo de estar ante a Eucaristia, e nos sentirmos abatidos e desanimados, isto seria completamente errado. É já um alento e um consolo saber que estas experiências são possíveis; que o que nós mesmos talvez tenhamos experimentado nos momentos de maior fervor de nossa vida e depois perdido poderá ser reacendido (...).
            A única coisa que o Espírito Santo requer de nós é que lhe demos nosso tempo, ainda que no início possa parecer tempo perdido. Nunca esquecerei a lição que um dia recebi a esse respeito. Eu dizia a Deus : ‘Senhor, dá-me o fervor e eu te darei todo o tempo que queiras para a oração’. Em meu coração, encontrei a resposta : ‘Raniero, dá-me teu tempo e eu te darei todo o fervor que queres na oração’. Esta recordação poderá ser útil a alguém como a mim.

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(9) A primeira formula de fé que se seguiu a Berengário sustentava que, na comunhão, o corpo e o sangue de Cristo estavam presentes no altar ‘sensivelmente e eram em verdade tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fiéis’ (Denzinger – Schnmetzer, Enchiridion symbolorum, 690). São Tomás de Aquino corrige esta afirmação, dizendo que o corpo de Cristo ‘não é partido, nem quebrado, nem dividido por quem o recebe’ (cf. S. Th. III, q. LXXVII, a. 7). 

(10) Cf. E. Longpré, Eucharistie et expérience mystique, in Dic. Spir. IV, coll. 1586-1621.

(11) N. Cabasilas, Vita in Cristo, VI, 4 (PG 150, 653). 

(12) Cf. Agostinho, Sulla santa verginità, 3 (PL40, 398). 

(13) S. Francisco, Lettera a tutti I frati, 2 (FF 220). 

(14) Roger Bacon, De sacramento altaris, in Moralis Philosophia, ed. E. Massa, Zurigo 1953, pp. 231 s.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Santo Antonio de Pádua


O Pérolas Finas não poderia deixar passar em branco o dia 13 de junho, pois que é dia do grande Doutor da Igreja, Santo Antônio,  santo que conta com imensa devoção popular, especialmente em nosso país. Na matéria que segue há uma gama de informações sobre Santo Antônio que não é comum saber-se. Mas o Papa Emérito nos dá tantas informações maravilhosas que levamos aos nossos visitantes e leitores.

São António de Pádua
 

PAPA BENTO XVI AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 2010
 

São António de Pádua
Queridos irmãos e irmãs!

 
Há duas semanas apresentei a figura de São Francisco de Assis. Esta manhã gostaria de falar de outro santo pertencente à primeira geração dos Frades Menores: António de Pádua ou, como é também chamado, de Lisboa, referindo-se à sua cidade natal. Trata-se de um dos santos mais populares de toda a Igreja Católica, venerado não só em Pádua, onde foi construída uma maravilhosa Basílica que conserva os seus despojos mortais, mas em todo o mundo. São queridas aos fiéis as imagens e as imagens que o representam com o lírio, símbolo da sua pureza, ou com o Menino Jesus no colo, em recordação de uma milagrosa aparição mencionada por algumas fontes literárias.

António contribuiu de modo significativo para o desenvolvimento da espiritualidade franciscana, com os seus salientes dotes de inteligência, equilíbrio, zelo apostólico e, principalmente, fervor místico.

Nasceu em Lisboa numa família nobre, por volta de 1195, e foi baptizado com o nome de Fernando. Uniu-se aos cónegos que seguiam a regra monástica de Santo Agostinho, primeiro no mosteiro de São Vicente em Lisboa e, sucessivamente, no da Santa Cruz em Coimbra, famoso centro cultural de Portugal. Dedicou-se com interesse e solicitude ao estudo da Bíblia e dos Padres da Igreja, adquirindo aquela ciência teológica que fez frutificar na actividade do ensino e da pregação. Aconteceu em Coimbra o episódio que contribuiu para uma mudança decisiva na sua vida: ali, em 1220 foram expostas as relíquias dos primeiros cinco missionários franciscanos, que tinham ido a Marrocos, onde encontraram o martírio. A sua vicissitude fez nascer no jovem Fernando o desejo de os imitar e de progredir no caminho da perfeição cristã: então, pediu para deixar os Cónegos agostinianos e para se tornar Frade Menor. O seu pedido foi aceite e, tomando o nome de António, partiu também ele para Marrocos, mas a Providência divina dispôs de outro modo. Após uma doença, foi obrigado a partir para a Itália e, em 1221, participou no famoso "Capítulo das Esteiras" em Assis, onde encontrou também São Francisco. Em seguida, viveu algum tempo no escondimento total num convento de Forli, no norte da Itália, onde o Senhor o chamou para outra missão. Enviado, por circunstâncias totalmente casuais, a pregar por ocasião de uma ordenação sacerdotal, mostrou ser dotado de ciência e eloquência, e os Superiores destinaram-no à pregação. Começou assim na Itália e na França, uma actividade apostólica tão intensa e eficaz que induziu muitas pessoas que se tinham afastado da Igreja a reconsiderar a sua decisão. António foi também um dos primeiros mestres de teologia dos Frades Menores, ou até o primeiro. Iniciou o seu ensino em Bolonha, com a bênção de São Francisco, o qual, reconhecendo as virtudes de António, lhe enviou uma breve carta, que iniciava com estas palavras: "Agrada-me que ensines teologia aos frades". António lançou as bases da teologia franciscana que, cultivada por outras insignes figuras de pensadores, teria conhecido o seu ápice com São Boaventura de Bagnoregio e com o beato Duns Escoto.

Tornando-se Superior dos Frades Menores da Itália setentrional, continuou o ministério da pregação, alternando-o com as funções de governo. Concluído o cargo de Provincial, retirou-se para perto de Pádua, aonde já tinha ido outras vezes. Após um ano, faleceu nas portas da cidade, a 13 de Junho de 1231. Pádua, que o tinha acolhido com afecto e veneração durante a vida, tributou-lhe para sempre honra e devoção. O próprio Papa Gregório IX, que depois de o ter ouvido pregar o tinha definido "Arca do Testamento", canonizou-o só um ano depois da morte, em 1232, também após os milagres que se verificaram por sua intercessão.

No último período de vida, António pôs por escrito dois ciclos de "Sermões", intitulados respectivamente "Sermões dominicais" e "Sermões sobre os Santos", destinados aos pregadores e aos professores dos estudos teológicos da Ordem franciscana. Nestes Sermões ele comentava os textos da Escritura apresentados pela Liturgia, utilizando a interpretação patrístico-medieval dos quatro sentidos, o literal ou histórico, o alegórico ou cristológico, o antropológico ou moral, e o analógico, que orienta para a vida eterna. Hoje redescobre-se que estes sentidos são dimensões do único sentido da Sagrada Escritura e que é justo interpretar a Sagrada Escritura procurando as quatro dimensões da sua palavra. Estes Sermões de Santo António são textos teológico-homiléticos, que reflectem a pregação bíblica, na qual António propõe um verdadeiro itinerário de vida cristã. É tanta a riqueza de ensinamentos espirituais contida nos "Sermões", que o Venerável Papa Pio XII, em 1946, proclamou António Doutor da Igreja, atribuindo-lhe o título de "Doutor evangélico", porque desses escritos sobressai o vigor e a beleza do Evangelho; ainda hoje os podemos ler com grande proveito espiritual.

Nestes Sermões Santo António fala da oração como de uma relação de amor, que estimula o homem a dialogar docilmente com o Senhor, criando uma alegria inefável, que suavemente envolve a alma em oração. António recorda-nos que a oração precisa de uma atmosfera de silêncio que não coincide com o desapego do rumor externo, mas é experiência interior, que tem por finalidade remover as distracções causadas pelas preocupações da alma, criando o silêncio na própria alma. Segundo o ensinamento deste insigne Doutor franciscano, a oração é articulada em quatro atitudes indispensáveis que, no latim de António, são assim definidas: obsecratio, oratio, postulatio, gratiarum actio. Poderíamos traduzi-las do seguinte modo: abrir com confiança o próprio coração a Deus; é este o primeiro passo do rezar, não simplesmente colher uma palavra, mas abrir o coração à presença de Deus; depois, dialogar afectuosamente com Ele, vendo-o presente comigo; e depois muito natural apresentar-lhe as nossas necessidades; por fim, louvá-lo e agradecer-lhe.

Deste ensinamento de Santo António sobre a oração captamos uma das características específicas da teologia franciscana, da qual ele foi o iniciador, isto é, o papel atribuído ao amor divino, que entra na esfera dos afectos, da vontade, do coração, e que é também a fonte da qual brota uma consciência espiritual, que supera qualquer conhecimento. De facto, amando, conhecemos.

Escreve ainda António: "A caridade é a alma da fé, torna-a viva; sem o amor, a fé esmorece"(Sermomes Dominicales et Festivi II, Messaggero, Pádua 1979, p. 37).

Só uma alma que reza pode realizar progressos na vida espiritual: é este o objecto privilegiado da pregação de Santo António. Ele conhece bem os defeitos da natureza humana, a nossa tendência a cair no pecado, e portanto exorta a continuar a combater a inclinação da avidez, do orgulho, da impureza, e a praticar as virtudes da pobreza e da generosidade, da humildade e da obediência, da castidade e da pureza. No início do século XVIII, no contexto do renascimento das cidades e do florescer do comércio, crescia o número de pessoas insensíveis às necessidades dos pobres. Por este motivo, António convidou várias vezes os fiéis a pensar na verdadeira riqueza, a da cruz, que tornando bons e misericordiosos, faz acumular tesouros para o Céu. "Ó ricos assim exorta ele tornai-vos amigos... dos pobres, acolhei-os nas vossas casas: serão depois eles, os pobres, quem vos acolherão nos eternos tabernáculos, onde há a beleza da paz, a confiança da consciência, a opulenta tranquilidade da eterna saciedade" (Ibid., p. 29).

Não é porventura este, queridos amigos, um ensinamento muito importante também hoje, quando a crise financeira e os graves desequilíbrios económicos empobrecem não poucas pessoas, e criam condições de miséria? Na minha Encíclica Caritas in veritate recordo: "A economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa" (n. 45).

António, na escola de Francisco, coloca sempre Cristo no centro da vida e do pensamento, da acção e da pregação. Esta é outra característica típica da teologia franciscana: o cristocentrismo. Ela contempla benevolamente, e convida a contemplar, os mistérios da humanidade do Senhor, o homem Jesus, de modo particular, o mistério da Natividade, Deus que se fez Menino, se entregou nas nossas mãos: um mistério que suscita sentimentos de amor e de gratidão para com a bondade divina.

Por um lado a Natividade, ponto central do amor de Cristo pela humanidade, mas também a visão do Crucifixo inspira em António pensamentos de reconhecimento para com Deus e de estima pela dignidade da pessoa humana, de modo que todos, crentes e não-crentes, possam encontrar no Crucificado e na sua imagem um significado que enriquece a vida. Escreve Santo António: "Cristo, que é a tua vida, está pendurado diante de ti, para que tu olhes para a cruz como para um espelho. Nela poderás conhecer quanto mortais foram as tuas feridas, que nenhum remédio teria podido curar, a não ser o do sangue do Filho de Deus. Se olhares bem, poderás dar-te conta de como são grandes a tua dignidade humana e o teu valor... Em nenhum outro lugar o homem pode aperceber-se melhor do seu valor, a não ser olhando para o espelho da cruz" (Sermones Dominicales et Festivi III, pp. 213-214).

Meditando estas palavras podemos compreender melhor a importância da imagem do Crucifixo para a nossa cultura, para o nosso humanismo nascido da fé cristã. Precisamente olhando para o Crucifixo vemos, como diz Santo António, como é grande a dignidade humana e o valor do homem. Em nenhum outro ponto se pode compreender quanto o homem vale, precisamente porque Deus nos torna tão importantes, nos vê tão importantes, que somos, para Ele, dignos do seu sofrimento; assim, toda a dignidade humana aparece no espelho do Crucifixo e olhar em sua direcção é sempre fonte do reconhecimento da dignidade humana.
 
Queridos amigos, possa António de Pádua, tão venerado pelos fiéis, interceder pela Igreja inteira, e sobretudo por aqueles que se dedicam à pregação; oremos ao Senhor para que nos ajude a aprender um pouco desta arte de Santo António. Os pregadores, inspirando-se no seu exemplo, tenham a preocupação de unir doutrina sólida e sã, piedade sincera, incisiva na comunicação. Neste Ano sacerdotal, rezemos para que os sacerdotes e os diáconos desempenhem com solicitude este ministério de anúncio e de actualização da Palavra de Deus aos fiéis, sobretudo através das homilias litúrgicas. Sejam elas uma apresentação eficaz da eterna beleza de Cristo, precisamente como António recomendava: "Se pregas Jesus, Ele comove os corações duros; se o invocas, alivia das tentações amargas; se o pensas, ilumina o teu coração; se o lês, sacia-te a mente" (Sermones Dominicales et Festivi III, p. 59
Saudações

Saúdo, com fraterna amizade, os grupos vindos de São Paulo, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto e demais peregrinos de língua portuguesa, desejando que esta visita aos lugares santificados pela pregação e martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo possa confirmar a todos na fé, esperança e caridade. A Virgem Mãe vos acompanhe e proteja!

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