segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A forma como o Vaticano lidou com o caso Rupnik mostra que a Igreja considera as mulheres desiguais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Doris Reisinger,

filósofa, teologa e ex-freira

Tradução : Ramón Lara


A ordem jesuíta global emitiu um aviso no início de dezembro de que havia colocado restrições ao ministério do jesuíta Marko Rupnik, um artista religioso conhecido internacionalmente, após acusações de ter abusado de várias mulheres adultas. Embora permanecendo deliberadamente vagos sobre os motivos da mudança, os jesuítas pareciam ansiosos para enfatizar que ‘nenhum menor estava envolvido’.

Enquanto os jesuítas e o Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano evitaram mais comentários sobre o caso, alguns blogs italianos relataram que Rupnik, uma estrela carismática em certos círculos, havia sido acusado de abusar espiritual e sexualmente de mulheres consagradas da Comunidade Loyola, uma comunidade religiosa que ele co-fundou na Eslovênia no início dos anos 1980.

Somente em uma coletiva de imprensa com jornalistas no final de meados de dezembro, o superior geral jesuíta, pe. Arturo Sosa, confirmaram os rumores de que Rupnik havia sido excomungado em 2019 como resultado de um delito chamado ’absolutio complicis’. Especificamente, Sosa disse que Rupnik havia absolvido uma mulher em confissão de ter se envolvido em atividade sexual com ele.

No entanto, os comentários de Sosa soaram como se quisesse minimizar o fato.

‘Ele foi excomungado. Como você suspende uma excomunhão? A pessoa tem que reconhecer e tem que se arrepender, o que ele fez’, disse o general jesuíta.

Então, alguns dias antes do Natal, o jornal italiano Domani divulgou uma entrevista com uma mulher que se identificou como uma das vítimas de Rupnik. Chamando-se Anna, um pseudônimo, ela descreveu em detalhes o abuso que sofreu.

Anna disse que começou com encontros e conversas aparentemente inofensivos com Rupnik, que se tornou seu diretor espiritual quando era uma estudante de medicina de 21 anos visitando-o em seu estúdio em Roma. Ela lembrou como lhe mostrava imagens do Kama Sutra, pedia que posasse para fotos e pedia beijos.

Depois que Rupnik convenceu Anna a ingressar na Comunidade Loyola, seus pedidos e ações tornaram-se cada vez mais sexualmente agressivos, terminando em ‘masturbação violenta’, ‘sexo oral’ e assistindo pornografia juntos, disse.

‘A dinâmica era sempre a mesma : se eu duvidasse ou recusasse, Rupnik me desacreditava diante da comunidade dizendo que eu não estava crescendo espiritualmente’, disse Anna. ‘Ele não tinha inibições, usou todos os meios para atingir seu objetivo, inclusive as coisas confidenciais que ouviu em confissão.’

Anna também descreveu como confrontou Rupnik e procurou oficiais superiores, mas disse que ninguém iria ouvi-la ou tomar qualquer atitude.

Anna estima que cerca de 20 de suas companheiras da comunidade foram abusadas por Rupnik da mesma forma que ela.

Na entrevista, Anna disse que fez esforços para contatar vários jesuítas e autoridades do Vaticano sobre seu caso no verão de 2022, mas nunca teve resposta. No final do artigo, o jornal italiano Domani publicou uma declaração dos jesuítas instando todas as vítimas de Rupnik a relatar suas experiências à ordem.

Padrões familiares

Há muitas coisas típicas no relato de Anna : o enorme poder de um padre carismático; o processo de aliciamento cuidadosamente planejado que explora a confiança da vítima e reduz seu espaço de manobra; e a reticência diplomática das autoridades competentes.

Há também a concessão gradual que vem somente após persistentes investigações e publicidade através do trabalho tenaz dos jornalistas; a falta de transparência e o caráter clericalista de um sistema que permite que padres sejam investigados por outros padres; o foco do direito canônico na santidade da confissão em vez dos direitos das vítimas; e o confinamento das vítimas ao banco das testemunhas em vez de reconhecê-las como partes no processo.

Isso é exatamente a mesma dinâmica devastadora do abuso infantil do clero. Mas no caso Rupnik há semelhanças ainda mais marcantes com casos de abuso de adultos em geral e religiosas em particular.

Provavelmente não é coincidência que o caso só agora esteja ganhando atenção pública e eclesiástica. Até muito recentemente, desde que ‘nenhum menor estivesse envolvido’ (ou, para alguns, desde que não fosse comportamento do mesmo sexo), a atividade sexual dos padres era considerada indecente, na melhor das hipóteses, mas não criminosa. Só gradualmente se desenvolveu o sentido da inadequação do comportamento sexual em fortes relações de poder, especialmente no que diz respeito a dependentes, subordinados ou pessoas confiadas ao cuidado pastoral de um clérigo.

Também não é surpreendente que os casos que primeiro atraíram atenção considerável - como o fundador da Legião de Cristo, Pe. Marcial Maciel Degollado e o ex-cardeal Theodore McCarrick em desgraça - foram aqueles que envolveram vítimas do sexo masculino. Em uma igreja fortemente dominada por homens, partes da qual são permeadas por um mal-entendido homofóbico sobre a questão do abuso, isso é de se esperar.

No entanto, houve muitos casos igualmente devastadores envolvendo mulheres jovens, especialmente religiosas e fundadoras de suas comunidades. Desse ângulo, Rupnik aparece como apenas um em uma longa e inglória linhagem de fundadores que se tornaram abusadores em série, incluindo Josef Kentenich, Marie-Dominique Philippe, Gérard Croissant e Jean Vanier, para citar apenas alguns dos casos mais proeminentes.

Há muito mais casos envolvendo fundadores de comunidades menos conhecidas, como Thierry de Roucy, padres solteiros como Robert Meffan, ou membros de comunidades religiosas menores, como no meu caso.

As mulheres são as mais vulneráveis

Para os estudiosos que pesquisam sobre o abuso sexual de adultos pelo clero, uma estimativa do falecido Richard Sipe e uma pesquisa sobre abuso sexual de irmãs religiosas nos EUA fornecem uma linha de base para o risco relativo que os adultos experimentam.

Em um artigo de 2007, Sipe estimou que ‘quatro vezes mais padres se envolvem sexualmente com mulheres adultas e duas vezes mais com homens adultos do que padres que se envolvem sexualmente com crianças’.

A pesquisa, publicada por três pesquisadores da Universidade de St. Louis em 1998, sugere que as religiosas correm um risco particularmente alto. Em um estudo com 856 irmãs em três comunidades do meio-oeste, cerca de 39,9% relataram traumas sexuais passados, com 29,3% relatando tal trauma durante sua vida religiosa. Os efeitos naqueles que vivenciaram o trauma variaram de depressão a pensamentos suicidas.

Mulheres e adolescentes em geral também vivem com risco elevado de efeitos particularmente adversos do abuso sexual, como gravidez indesejada e partos forçados ou abortos, bem como com uma cultura de culpabilização da vítima e misoginia que usa mitos de estupro e estereótipos sexistas para descartar mulheres sofrem e simpatizam com os agressores masculinos.

Além disso, as religiosas são particularmente vulneráveis ao abuso e ao silenciamento, dada a sua imensa e abrangente dependência de suas comunidades e da hierarquia eclesiástica masculina, e sua falta de direitos sob a lei canônica. Como resultado, os obstáculos para falar pelas vítimas e a cultura do silêncio em torno do abuso sexual de mulheres consagradas são imensos.

Em uma reunião em 2021, a jornalista italiana Federica Tourn, que há anos cobre o tema, disse que encontrar pessoas prontas para falar sobre abuso sexual de mulheres religiosas era muito mais difícil do que encontrar pessoas prontas para falar sobre a máfia.

Além dos muitos níveis de imensa mudança estrutural e cultural que seriam necessários para lidar melhor com o abuso na Igreja Católica em geral, há necessidade de uma mudança ainda mais profunda quando se trata de abuso de mulheres, tanto leigas quanto religiosas.

As religiosas devem receber um status legal e canônico que lhes permita defender-se efetivamente até mesmo contra os superiores e o clero, e a cultura profusamente sexista e misógina da Igreja Católica deve ceder a uma cultura de verdadeiro respeito pelas mulheres.

A amarga verdade é : enquanto a Igreja for governada por um sistema canônico no qual haja desigualdade entre homens e mulheres, clérigos e leigos, nada disso poderá ser efetivamente alcançado, e agora esse tipo de igualdade parece além da utopia.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1599330


domingo, 29 de janeiro de 2023

Ser missionário em Taiwan

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo do Padre Eduardo Revolledo Villanueva,

Missionário Comboniano


Para falar da minha vocação, tenho de recordar a minha experiência na paróquia comboniana Cristo Missionário del Padre, situada na periferia de Lima, no Peru.  Desde criança e adolescente participei com grande entusiasmo nos grupos de acólitos, liturgia, catequese e jovens. Sinto que a minha vocação para a vida religiosa missionária nasceu do contacto que tive com os combonianos que lá conheci. Marcou-me muito o seu testemunho de vida e, sobretudo, a proximidade com as pessoas. Eram sacerdotes «com cheiro de ovelha», como diz o Papa Francisco. Serviam com muita dedicação o povo simples e pobre, esforçando-se para ser sinal de um Deus próximo. Foi isso que me chamou a atenção e me motivou a querer ser missionário.

Caminho formativo

Animado pelo testemunho dos combonianos, comecei um caminho de discernimento mais aprofundado para poder descobrir o que Deus queria para mim. Com muitos medos e dúvidas, mas com a convicção de que Deus me acompanharia, no ano de 2008 ingressei no postulantado dos Missionários Combonianos, naquela que é a primeira etapa de formação para a vida religiosa, e iniciei os estudos de Filosofia. Foi uma experiência muito positiva e pude partilhar as minhas inquietações vocacionais com jovens peruanos e chilenos que tinham o mesmo ideal e queriam ser missionários ao estilo de São Daniel Comboni.

Depois fui para o México por quase dois anos para continuar o meu processo de formação. Foi a primeira vez que saí do meu país e tive uma experiência internacional. Nesse período, reafirmei o meu desejo de seguir Jesus Cristo e dedicar a minha vida à missão segundo o carisma dos Missionários Combonianos. Por isso, em 2014 fiz os primeiros votos religiosos. Para realizar os estudos teológicos, os meus superiores destinaram-me ao Quênia. Estive nesse país da África Oriental por quase quatro anos e a experiência que fiz ficou marcada no meu coração.

Ir para outro continente e aprender novos idiomas foi, sem dúvida, um grande desafio para mim. Como missionário, foi necessário abrir a mente e o coração, afiançar a vontade e a determinação de aprender com as pessoas, conhecer a sua cultura e os seus costumes. A partilha quotidiana com os Quenianos ajudou-me a confirmar a minha vocação para a vida religiosa missionária.

Depois de terminar os meus estudos no Quénia, fui destinado à Ásia. Passei o primeiro ano no Vietname a estudar a língua e, em seguida, vim para Taiwan para aprender chinês. Foi ali que entreguei a minha vida para a missão, com a consagração perpétua a Deus e ordenação diaconal na paróquia comboniana que servimos nos arredores de Taipei. Posteriormente, regressei ao Peru, onde fui ordenado sacerdote para o serviço do povo de Deus.

Missão em Taipei

Atualmente, sirvo como pároco numa paróquia da periferia da cidade onde vivem os combonianos em Taipei (Taiwan). A paróquia é pequena, pois a percentagem de católicos na região é baixa, no entanto, a comunidade cristã é viva e muito entusiasta na expressão da sua fé. A paróquia é muito peculiar, pois acolhe imigrantes vietnamitas e pessoas provenientes da China continental, de Hong Kong e Taiwan. É um verdadeiro lugar multicultural, em que a fé é o ponto de encontro e união. Na paróquia realizamos diversas tarefas pastorais, nomeadamente o acompanhamento de grupos de crianças e adolescentes, o atendimento de migrantes, a pastoral indígena, a visita a famílias, os cursos bíblicos.

Todavia, porque a nossa paróquia está junto de uma casa para doentes de lepra, oferecemos o nosso serviço como voluntários e cuidamos deles com muito carinho, apesar de a maioria deles não ser cristã. É uma bela oportunidade para o encontro inter-religioso e o diálogo com os nossos irmãos budistas e taoistas.

Normalmente, tendemos a pensar que os missionários são os que ensinam as pessoas sobre Deus. Não obstante, considerando a minha curta experiência no Vietname e em Taiwan, acho que é o oposto. São as pessoas que encontro que, na sua simplicidade, me revelam o rosto misericordioso de Deus. Na verdade, são elas que me ensinam a ser um pároco missionário, incentivando-me a ser uma pessoa próxima, com disponibilidade para aprender dia a dia com elas, que comigo partilham a sua cultura, a sua fé e a sua experiência com o nosso Deus, que é amor e está presente nos seus corações.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/860/ser-missionario-em-taiwan/

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Tribunal do coração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

Tribunal do coração é referência ao ‘centro de comando’ que define atitudes, sentimentos e escolhas no percurso da vida. Uma expressão que faz parte do processo de direção espiritual, por sublinhar que a qualificação da existência humana se relaciona com o que está no interior do coração. Ora, viver é uma arte, pedindo, a cada pessoa, o cultivo de certas habilidades, sendo imprescindível a espiritualidade. As virtudes cidadãs e a sensibilidade social, dentre outras qualidades, são essenciais para o ser humano, mas, sozinhas, são insuficientes para se alcançar o bem viver. É preciso investir na espiritualidade e, nesse processo, cuidar do próprio coração, dedicando atenção às suas dinâmicas. O coração precisa hospedar belas estampas, reunidas a partir de cada experiência vivida. São essas estampas bem cultivadas que podem alimentar o bem viver e enriquecer as atitudes do ser humano. É preciso, pois, reconhecer que sem as qualificadas estampas no coração, não se alcança a paz. E sem um coração de paz, os próprios julgamentos e atitudes ficam contaminados por sentimentos ‘tortos’, preconceituosos, que levam à incompetência humanística.

O compromisso pessoal no cultivo da paz no coração é contribuição indispensável no propósito de alcançar a paz social. É, pois, questão que vai além de um simples bem-estar individual, para ser reconhecido como tarefa educativa indispensável, que não pode ser renunciada. Desconsiderar essa tarefa significa conviver com prejuízos pessoais e sociais. Todos são convocados a investir cada vez mais na própria interioridade, um arrumar-se essencial para se tornar coração de paz. Isto porque a paz é dom de Deus. Esse dom, para ser recebido, requer, de cada pessoa, um especial cuidado com a própria interioridade. Deus é fonte inesgotável de paz, mas a acolhida desse dom depende de um esforço humano indispensável. Esse esforço diz respeito à avaliação e à gestão dos sentimentos que podem fazer do próprio coração um tribunal implacável. Tribunal de julgamentos que inviabilizam a construção de vínculos e as ações que sustentam a fraternidade universal.

Conta decisivamente o especial cuidado com o que se hospeda no coração. Trata-se de uma responsabilidade moral e afetiva que, quando não é assumida, leva à emissão de juízos comprometidos sobre os outros e a respeito das muitas situações que marcam a existência humana. E o tribunal do coração precisa ser justo para não se contrapor à grandeza do amor. O amor é a vocação e a missão de cada coração. Essa vocação e missão são desrespeitadas quando corações se fecham para a escuta do outro, de suas razões, tornando-se um tribunal implacável. Corações fechados emitem juízos caracterizados por uma rigidez na consideração do próximo, inviabilizando a constituição de vínculos qualificados, de relações pautadas pelo respeito. O tribunal do coração precisa contemplar a capacidade de escutar o semelhante, buscando estabelecer diálogos que gerem entendimentos e escolhas acertadas. A escuta é remédio que salva o coração de fechar-se sobre si mesmo, estreitando o seu alcance com maus sentimentos, a exemplo da inveja, da ingratidão e do excesso de rigor na consideração das outras pessoas.

Interiorizar no coração sentimentos qualificados é indispensável para não se correr o risco de simplesmente buscar se agigantar na racionalidade, enquanto se apequena no aspecto afetivo-emocional. Desconsiderar a dimensão afetivo-emocional leva à confusão entre sentimentos e juízos, com impactos negativos nas relações e nas avaliações, promovendo inadequada percepção sobre os próprios desempenhos e responsabilidades. Não raramente, corre-se o risco de leituras que justificam inimizades e ressentimentos, a busca pelo poder mesmo que com consequências prejudiciais para o bem comum. A qualidade das atitudes humanas, do desempenho de líderes, das tarefas exercidas dentro da responsabilidade de cada um, depende da adequada regência dos sentimentos que habitam os corações.

No cuidado dessa regência, são preciosas as indicações do Mestre Jesus, que terapeuticamente trata do coração de seus discípulos. Jesus, em vários momentos, adverte seus discípulos sobre a importância de se cuidar da própria interioridade para garantir justiça e amor. Em certa ocasião, o Mestre sublinhou que a dureza do coração humano produziu a relativização da lei, com consequências graves para a humanidade. Focalizou ainda a incompetência humana e moral revelada na disputa entre seus discípulos que, em determinada situação, almejavam poder e lugar privilegiado revelando vaidade e soberba. Jesus argumentou, reiteradamente, sobre a importância da autoconsciência. Apontou indicações e práticas para se evitar a substituição do amor recíproco por mágoas - multiplicadoras de sombras, de ingratidão e de leituras da realidade sem as virtudes de um coração simples. O Mestre sublinhou especial advertência: não traz condenação o que entra, mas o que sai da boca, considerando imoralidades que ferem a grandeza da vocação humana.

Investir na qualificação do próprio coração, em um fecundo itinerário espiritual, é indispensável para alicerçar juízos, decisões e escolhas que levem à paz. Um itinerário para promover os valores e os princípios essenciais à fraternidade solidária, meta que precisa ser alcançada urgentemente, para que seja respeitada sempre, e cada vez mais, a dignidade humana.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigos/?id=10239

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Bento XVI: "Tudo se desmorona se falta a verdade"

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Élio Gasda


O Papa mais longevo da história da Igreja renunciou em 2013 alegando ‘incapacidade de administrar bem o ministério’. Como bispo emérito da Diocese de Roma, viveu seus últimos dias em um mosteiro, onde faleceu em 31 de dezembro de 2022. O último pontífice a renunciar foi Gregório XII, em 1415.

Para Bento XVI, ‘no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem’ por isso seu lema : Colaborador da Verdade. 

Foram três encíclicas : Deus Caritas Est, Spe salvi. Caritas in Veritate (CV) é sua encíclica social sobre o ‘desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade’. Foi publicada em 2009, com dois anos de atraso, devido à crise econômica que explodiu em 2007. A mais grave desde 1929, começou nos Estados Unidos e se alastrou pelo mundo, derrubou governos, gerou elevadas taxas de desemprego, aumento dos preços e a fome em todo planeta. ‘A fome ceifa a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão’ (CV 27). A reforma agrária, o acesso à alimentação e à água como direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações são urgências (CV 27). Em pleno século XXI, ‘dar de comer aos famintos é um imperativo ético de Jesus. Eliminar a fome tornou-se um objetivo para paz e a vida na terra’ (CV 27).

Caritas in Veritate, dividida em sete capítulos e conclusão, recebeu muitas reações. Esquerdista! Socialista! Bradaram os capitalistas neoliberais. Será que realmente leram o texto de quase 130 páginas contendo 159 notas, escrito em latim por um teólogo alemão?

Ratzinger reserva o primeiro capítulo da CV à releitura da Populorum Progressio (PP) de Paulo VI. Escrita em 1967, é uma profunda reflexão sobre o desenvolvimento humano. ‘Deesenvolvimento não se reduz a simples crescimento econômico. O desenvolvimento somente é moral quando promove a todas as pessoas’ (PP 14). Para que os seres humanos possam ser cada mais humanos é preciso passar de ‘condições de vida menos humanas a condições de vida mais humanas’ (PP 20).

Como teólogo, Bento XVI foi ao essencial da fé : ‘A experiência de Deus leva a reconhecer no outro a imagem divina e a viver um amor que se torna cuidado do outro e pelo outro’ (CV 11). ‘Amor eterno e Verdade absoluta - constituem ‘a principal força propulsora para o autêntico desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade’ (CV 1). Esta vinculação desautoriza o assistencialismo descomprometido que não transforma a realidade (CV 4). A Caridade informada pela Verdade será sempre libertadora (CV 5).

A Verdade tem seu maior inimigo na mentira. Se verdade é o caminho da vida, a mentira leva à morte. O principal confronto de Jesus é com a mentira que mata (Jo 8,44-45). Matar a verdade leva a matar seres humanos (Jo 19,5). É preciso denunciar as políticas, as ideologias e os sistemas alicerçados na mentira.

A Doutrina Social da Igreja é expressão do amor ao próximo vinculado à Verdade (CV 2). Amor, Verdade e Justiça constituem uma unidade em Deus. A caridade exige a justiça : ‘O amor - caritas - é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz (CV 1). O amor ganha forma operativa na justiça como critério orientador da ação política que busca o bem comum (CV 6).

Toda a sociedade deve estar fundada no direito e na justiça. A justiça é medida e virtude que deve orientar a vida social e política. Sua concreção em estruturas sociais e estatais é competência da política. Mas cabe aos cristãos contribuir na formação da consciência ética fundada na justiça (CV 7). Querer o bem comum e trabalhar por ele é uma exigência de justiça e de caridade. Isso implica ‘valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade’ (CV 7).

Toda pessoa é chamada a entrar em comunhão fraterna na sociedade civil, na economia e na política (CV 2). Tolerar a injustiça é tolerar o sofrimento humano. O dever moral para com os que sofrem é dever de justiça.

Bento XVI confirma a Igreja como advogada da justiça e defensora dos Lázaros que morrem de fome às portas dos ricos (CV 27). A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica (Bento XVI).

‘Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa’ (CV 1). Dar de comer a quem tem fome é revelar o rosto da Verdade que liberta!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598952

Remédio para o erro

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A manifestação da glória de Deus se realiza na caminhada da humanidade | Pixabay

*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE

 

Nossa gratidão aos irmãos e irmãs, que no mesmo ideal querem caminhar conosco no compromisso da interlocução ou transmissão do Evangelho, repletos do amor de Deus, em favor das pessoas e do mundo. Na mensagem sobre a fidelidade de Deus, ao conduzir o povo de Israel na manifestação ou fenômeno único no mundo, percebe-se a esperança, através da novidade divina : a realização da humanidade, a salvação esperada. O povo passa a viver na dinâmica da fé, com a consciência de que a salvação significa, na sua concretude, a libertação, a experiência vivenciada em Israel, na sua relação com o Deus vivo, construindo sua própria história.

A história do povo de Deus, trazida para os nossos dias, considerando que, quando se erra por ignorância, distração, ou algo parecido, não se trata de pecado, de maneira alguma! Agora, quando o pecado bate à nossa porta, no ‘querer’, com clareza de consciência, convencidos de que estamos errados, no uso da própria vontade humana, colocando a nossa liberdade acima da vontade de Deus, em detrimento da irmã e do irmão, aí, sim, se constatam lapsos, equívocos ou erros : o pecado.

Se, por um lado, ‘equivocar ou errar é humano’, por outro lado, ultrapassar a realidade inclemente e não indulgente, com suas vastas consequências, precisa de um único e sólido remédio, como na afirmação de João Batista : ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’ (Jo 1, 29).

A família humana, ao habitar a face da terra, sendo essa mesma terra cultivada e não cultivada em florestas, cerrados, caatingas e matas atlânticas, sem esquecer dos mares, se resume a uma só linguagem : sua indulgente sensibilidade. Sabe-se que nessa linguagem tem-se um conjunto de ações, chegando-se ao mal e ao bem, alternando entre angústia e segurança, sofrimento e alegria.

Na precariedade da vida, no entanto, as pessoas procuram soluções, não só com a inteligência, mas mergulhados, com todo o seu ser, na consciência dessa condição humana, como obra-prima da criação; e é aí que entra a nossa fé, no contexto dessa mesma criação, em resposta à existência da criatura humana, aqui nas palavras de Santo Agostinho : ‘Fizeste-nos para ti, Senhor, e irrequieto está nosso coração, até encontrar sossego em ti’.

É Deus nos falando ao nosso coração, do nosso desejo, em buscar o Infinito. É a manifestação da glória de Deus que se realiza na caminhada da humanidade, através dos séculos, participando e não se separando da história da existência humana e do mundo, na esperança do final feliz : que, em Deus, tudo seja reconciliado. Amém!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598979

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Os lobos em pele de cordeiro do pontificado de Francisco

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


Que há muitas pessoas que se aproximam do Papa Francisco por conveniência isso a gente não pode negar. Aliás, todo pontífice teve que lidar com os falsos apoiadores. A cúria romana em si é um antro de carreiristas. Portanto, não seria novidade apontarmos que dentro desse ambiente, repleto de ‘vícios de corte’, um jogo de intrigas e disputas ora se manifeste de maneira bastante explícita, ora de maneira velada.

No pontificado de Bento XVI, por exemplo, citamos o caso do cardeal Bertone. No de Francisco, por sua vez, o de Georg Gänswein, ex-secretário pessoal de Papa Ratzinger, e do cardeal australiano Georg Pell, que até sua morte, ao menos publicamente, nunca havia se oposto abertamente ao pontífice argentino.

Que Francisco não é bem quisto por muitos grupos da Cúria Romana, isso a gente já sabe. A questão está em analisar quem realmente está do lado dele e até que ponto existe uma adesão sincera a seu projeto de reforma. Ou seja, a questão agora está em checar por onde andam os inimigos que dão tapinha nas costas do Papa. E há muitos desses, que inclusive ocupam cargos-chave dentro da cúria.

As próprias nomeações de padres para a Secretaria de Estado que, no passado, eram abertamente contrários à linha de governo do papa atual, impressionam.

Nesse sentido, não entendemos se é uma estratégia de Francisco para que eles estejam sob sua vigilância ou se, de fato, o pontífice argentino esteja já na fase de delegar algumas pessoas para se encarregarem dessas nomeações.

Sabemos, por exemplo, que, quando o assunto é América Latina, é o cardeal Óscar Rodríguez Maradiaga, de Honduras, quem acaba exercendo um papel preponderante na hora de decidir quais latino-americanos são dignos de integrar o grupo de colaboradores do Papa em Roma.

Agora sim, sem dúvida, podemos falar de uma solidão vivida pelo Papa Francisco. As resistências à sua reforma, nos últimos anos, só se intensificaram. Além disso, muitos daqueles sobre os quais ele depositou uma certa confiança acabaram abandonando o barco. Uns por não conseguirem lidar com as disputas internas; outros por estarem apegados a um modelo de igreja que não corresponde ao ‘poliedro’ que Papa Francisco propõe.

Isso faz com que as cartas jogadas no próximo conclave ainda sejam incertas, muito embora, aparentemente, o grupo de cardeais pró-Francisco seja expressivo. O que podemos esperar, nos próximos anos, é uma oposição silenciosa, mas bastante consolidada, que fará de tudo para apagar o legado de Francisco. É esperar para ver.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1599067

sábado, 21 de janeiro de 2023

Livro: “Deus é sempre novo", a espiritualidade de Bento XVI

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Eugenio Bonanata

Para chegar ao coração e a mente do leitor como uma centelha. Este é o objetivo do livro ‘Deus é sempre novo’, recém publicado pela Libreria Editrice Vaticana. ‘É a síntese do pensamento e do trabalho de uma testemunha credível que ao longo de sua vida se colocou a serviço da Igreja’, afirma o editor do livro Luca Caruso, falando da importância de alimentar a reflexão sobre a busca do rosto de Deus.

Teologia ‘de joelhos’

Um caminho que marcou a existência de Bento XVI, como confirmam seus textos no volume. Homilias, catequeses e discursos que, segundo Caruso, mostram um elemento comum : ‘A vontade e o desejo de compartilhar este precioso tesouro que ele encontrou no estudo e na oração’. Os horizontes abertos por esta síntese espiritual de Bento XVI são infinitos.  ‘Ratzinger é o mestre da fé que se dirige ao povo de Deus’, enfatiza o editor, esperando que o livro ajude a encontrar respostas para as questões da modernidade. ‘Bento XVI fazia teologia de joelhos’, escreve o Papa Francisco no prefácio, recordando precisamente esta proximidade com a dimensão contemporânea.

Um tesouro a ser redescoberto

‘Foi como entrar numa ampla clareira’, diz Caruso sobre o trabalho de pesquisa : ‘O Magistério de Bento XVI está verdadeiramente repleto de tesouros a serem redescobertos’. Fala-se das virtudes teologais, da família, da oração, da alegria. Mas também da combinação de fé e razão como uma estrutura narrativa para recontar a força e a relevância do Evangelho. ‘Nisto’, continua Caruso, ‘ecoa o que foi dito na Encíclica Fides e ratio de João Paulo II : fé e razão como as duas asas com as quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade’.

Arte e beleza

Um passo fundamental é representado pela beleza - que se concretiza na arte - como uma forma privilegiada de encontrar Deus. O Papa Francisco também lembra isso no prefácio, recordando implicitamente outros pontífices do século XX : desde Pio XII, que em 1953 instituiu a Missa dos artistas na Basílica de Santa Maria em Montesanto em Roma, até Paulo VI, que se encontrou várias vezes com artistas na Capela Sistina, inspirando seus sucessores a celebrar esta ocasião. ‘Com Papa Bento XVI’, aponta Caruso, ‘há um convite para seguir o caminho da beleza que nos permite aproximar-nos do eterno e assim acolher a própria beleza de Deus’.

Pequenas peças no grande mosaico da história

Indicações ao alcance de todos, assim como o chamado à santidade, que diz respeito a cada batizado e nada tem a ver com super poderes e outras coisas extraordinárias. O Papa Bento XVI, explica Caruso, reiterou isto por ocasião do Dia Mundial da Juventude em Colônia, onde os Reis Magos estão enterrados. ‘Identificou precisamente os Magos como aqueles que estão à frente de uma procissão sem limites que transcende épocas e fronteiras e avança em direção ao absoluto de Deus’. Um convite dirigido a cada um de nós : ‘Ser como pequenas peças no grande mosaico da história que’, conclui Caruso, ‘será, em última análise, a face de Deus, que é uma face de misericórdia e de esperança’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-01/livro-bento-xvi-deus-e-sempre-novo-espiritualidade.html

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

ONG: mais de 360 milhões de cristãos foram 'perseguidos' no mundo em 2022

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Padre de igreja apostólica cristã em Belém, na Cisjordânia ocupada, em 18 de janeiro de 2023 | HAZEM BADER/AFP

*Artigo da redação da AFP


Mais de 360 milhões de cristãos foram ‘fortemente perseguidos e discriminados’ no mundo em 2022, e a Coreia do Norte aparece como o pior país para a profissão dessa fé, afirma um relatório divulgado pela ONG Puertas Abiertas nesta quarta-feira (18).

Esta ONG protestante publica todos os anos um ‘índice mundial’ da perseguição aos cristãos, que inclui todos os ataques, desde a ‘discreta opressão cotidiana’ até a ‘violência mais extrema’.

Entre 1º de outubro de 2021 e 30 de setembro de 2022, ‘mais de 360 milhões’ de católicos, ortodoxos, protestantes, batistas, evangélicos, pentecostais etc, de 76 países foram ‘fortemente perseguidos no mundo, ou seja, um em cada sete cristãos’, disse Patrick Victor, diretor da Puertas Abiertas França, em entrevista coletiva na terça-feira. O número foi o mesmo no ano de 2022.

No entanto, nos últimos trinta anos ‘a perseguição se ampliou’ com ‘76 países com forte perseguição contra 40’ identificados no primeiro informe da ONG em 1993, destacou Guillaume Guennec, responsável pela defesa jurídica.

Além disso, ‘a perseguição está se intensificando nos países afetados’, acrescentou.

Em 2022, 5.621 cristãos foram mortos, em comparação com 5.898 no ano anterior. A ONG também contabilizou ‘4.542 cristãos detidos’ (entre eles, 1.750 na Índia), contra 4.277 no ano anterior, e ‘5.259 cristãos sequestrados’ (dos quais 4.726 na Nigéria), contra 3.829.

O número total de igrejas fechadas, atacadas, destruídas chegou a 2.110, uma diminuição em relação a 2021, com 5.110. Com todas as perseguições, a Coreia do Norte passou a ocupar o primeiro lugar neste ranking anual, superando o Afeganistão. Em seguida vem a Somália, depois Iêmen, Eritreia, Líbia, Nigéria, Paquistão, Irã, Afeganistão e Sudão.

Na Coreia do Norte, uma lei aprovada em 2020 determina que ‘ser cristão ou ter uma Bíblia é crime punível’, detalha a ONG. ‘Muitas igrejas secretas foram descobertas, cristãos presos e enviados para campos de prisioneiros políticos e executados’, segundo Victor.

Três tendências foram observadas nos últimos 30 anos. ‘O continente africano foi marcado por um aumento do extremismo islâmico’, com 26 países sofrendo forte perseguição contra sete em 1993.

Além disso, ‘os cristãos são muitas vezes vítimas do nacionalismo religioso ou ideológico’, acrescenta a ONG, citando a China, desde 2017, ou mesmo a Índia, com uma ‘explosão de violência’ contra cristãos e muçulmanos desde 2014.

Por fim, a organização lamenta o ‘êxodo cristão’ no Oriente Médio. ‘As extorsões do grupo Estado Islâmico levaram os cristãos a fugir do Iraque e da Síria.’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598863

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Bento XVI: As surpresas de um papa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Maria Clara Bingemer,

teóloga


Talvez seja um pouco tardia esta reflexão sobre o Papa Bento XVI já mais de dez dias após sua morte.  Outras preocupações tomam o lugar do tempo do luto mais próximo do falecimento do pontífice que governou a Igreja Católica por oito anos e depois permaneceu em Roma como Papa Emérito até o último dia 31 de dezembro de 2022.  O cenário nacional fervilha com as últimas ameaças à democracia e parece não haver outro assunto.  No entanto, me parece que a figura do falecido é por demais importante para não trazer alguma reflexão sobre sua pessoa.

Por isso mesmo, porque tantas coisas importantes – positivas e críticas – foram ditas e escritas, atenho-me ao que foi essencial de meu contato com o teólogo Ratzinger, em cujos livros li e estudei durante minha graduação em Teologia, e com aquele que se tornou sucessor de João Paulo II em 2005.  

Quando foi anunciada sua eleição pelo cardeal camerlengo em 2005, confesso que tinha sentimentos não muito claros por dentro. Por um lado, compreendia que o conclave o tivesse eleito, era o colaborador mais próximo do papa polonês, o teólogo e pensador refinado, o homem culto que presidia a Pontifícia Comissão para a Doutrina da Fé.  No entanto, pude conhecer de perto igualmente sua atuação à frente desta comissão e minha impressão era de uma certa perplexidade diante de algumas punições e restrições impostas a teólogos que eu conhecia bem de perto e cuja fé profunda e o rigor teológico admirava. Os dois lados se fizeram sentir naquele momento em que a Igreja, após 26 anos do governo de João Paulo II, esperava ventos novos.

Dos oito anos em  que reinou Bento XVI lembro-me de vários momentos em que surpreendeu positivamente: a reconciliação com a Companhia de Jesus, que havia recebido intervenção do antecessor João Paulo II, coisa que tanto fizera sofrer o querido padre Arrupe; o belo texto da primeira encíclica, Deus caritas est, onde o intelectual refinado que era Bento XVI não temia dialogar inclusive com Nietzche, o filósofo tão crítico do cristianismo; a oração pungente em Auschwitz que se lançava de encontro ao silêncio de Deus. Haveria outras, muitas mais a mencionar.

Desejo destacar duas ocasiões que me parecem centrais para compreender por que vejo Bento XVI como alguém surpreendente.

A primeira foi sua vinda ao Brasil para abrir a Conferência de Aparecida, em 2007.  Havia um ambiente de desconforto e temor entre muitos que trabalhavam e participavam do evento.  A Conferência de Santo Domingo, em 1992, havia sido difícil e penosa.  O documento final quase não foi escrito e divulgado.  Graças a circunstâncias várias, entre elas o gênio e a santidade de Dom Luciano Mendes de Almeida, houve um documento com pontos positivos, mas que parecia não levar em conta o sopro profético das conferências de Medellín e Puebla, como a centralidade da opção pelos pobres. Temia-se o que poderia dizer Bento XVI. Se o Papa, no discurso de abertura, pronunciasse uma clara condenação da teologia da libertação, que tinha como centro a opção pelos pobres, seria realmente muito triste para a caminhada da Igreja latino-americana.

O Papa falou.  Declarou que a fé nos liberta do isolamento e nos conduz à comunhão com Deus e com os irmãos, implicando responsabilidade para com o outro.  E continuou. Cito literalmente pela importância que reside nesta frase que mudou completamente o panorama da V Conferência, em Aparecida : ‘Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2 Co 8, 9).’

A partir daquele momento encerravam-se as discussões sobre se a opção pelos pobres seria realmente teológica ou, ao contrário, apenas um subproduto de um marxismo mal compreendido.

A alguns não caiu bem a afirmação do Papa. Chegaram a retirar-se da conferência.   Para muitos de nós que ali estávamos foi uma lufada de ar fresco e uma injeção de ânimo. Aparecida retomou a questão dos pobres, dando-lhe a centralidade devida, e produziu um documento que voltava a trazer esperança para a Igreja do continente.

Em 2012, encontrava-me em Chicago conversando com o grande amigo e teólogo maior David Tracy.  Meio abruptamente ele me perguntou : ‘Você acha que o Papa vai renunciar?’  Surpreendida, disse que jamais havia passado por minha cabeça esta ideia.  David me explicou o porquê de suas suspeitas e sua argumentação não me convenceu.   De Chicago viajei a Roma. Fora convidada a apresentar, ao lado do Cardeal Ravasi e de outros teólogos e editores, o livro de Bento XVI sobre a Infância de Jesus.  Após a apresentação, fomos todos  cumprimentar o autor.  Bento XVI nos recebeu sorridente e alegre com o lançamento do livro.  Ao cumprimentá-lo disse-lhe, referindo-me à Jornada Mundial da Juventude que teria lugar no Rio de Janeiro, em julho de 2013 : ‘Nós o esperamos no próximo ano, no Rio.’  Ao que ele respondeu com um meio sorriso : ‘Se Deus me der saúde...’

No dia 8 de fevereiro de 2013, uma jornalista da Globo News me chamou ao telefone às 8 horas da manhã.  Era segunda feira de Carnaval.  Ouvi do outro lado a seguinte pergunta : ‘Professora, pode falar algo sobre a renúncia do Papa?’ A notícia me deixou perplexa.  Pedi uma hora para inteirar-me e liguei a televisão.  Os olhos do mundo inteiro estavam voltados para Roma e o gesto histórico da renúncia do Pontífice.

O resto é história. O papa Ratzinger explicou ao mundo as razões de sua renúncia.  À medida que o ouvia e lia, sentia crescendo em mim, juntamente com a surpresa, admiração por ele.  É muito difícil retirar-se quando se vê que chegou o momento. O papa bávaro o fez com elegância e firmeza.

Seu corajoso gesto abriu o caminho para a primavera de Francisco, iniciada pouco mais de um mês depois, em 13 de março de 2013. Este segue o caminho das surpresas, embora de forma bem diferente de seu antecessor. Que o Papa Bento descanse em paz e Francisco continue nos surpreendendo ainda por bastante tempo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598687