segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Cardeal fala do papel de comunidades monásticas no Sínodo dos Bispos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo da Redação ACI


‘Faltando pouco mais de um mês para a abertura oficial do próximo sínodo dos bispos, que terá como tema ‘Por uma Igreja sinodal : comunhão, participação e missão’, o secretário-geral do sínodo, cardeal Mario Grech, escreveu uma carta às comunidades monásticas para explicar-lhes qual será sua principal missão durante os trabalhos preparatórios.

Os trabalhos do sínodo começarão oficialmente em 9 de outubro deste ano e terminarão em 2023, também no mês de outubro, com a celebração da Assembléia Geral Ordinária, em Roma.

Em carta, o cardeal Grech disse aos membros das comunidades monásticas que eles foram eleitos para uma tarefa muito específica : a oração. ‘Há pessoas que, escolhidas entre o povo, têm a tarefa de nunca abandonar, nem de dia, nem de noite, o ministério da oração e do louvor no templo do Senhor’, disse o cardeal.

Ele pediu aos irmãos e irmãs chamados à vida monástica e contemplativa que sejam ‘custódios, para todos, do pulmão da oração’. Essa será a sua principal missão durante os trabalhos do sínodo, sem que isso prejudique outras contribuições.

Certamente, não faltará a contribuição de vocês em outros aspectos dos diversos momentos do nosso caminho sinodal, mas a sua vocação ajuda-nos, ainda que só com a sua presença, a ser uma Igreja que escuta a Palavra, capaz de deixar que o Espírito converta o seu coração, que persevera na comunhão e na oração’, afirmou o cardeal.

Não lhes peço que rezem em vez dos outros irmãos e irmãs’, acrescentou, ‘mas que estejam atentos à dimensão espiritual do caminho que empreenderemos, para poder discernir a ação de Deus na vida da Igreja universal e de cada uma das Igrejas particulares’.

A oração é o encontro dinâmico do amor no Deus Trino : na unidade multiforme que nos impulsiona ao testemunho vivo’, disse o cardeal. Segundo ele a oração está profundamente ligada a outros três termos : escuta, conversão e comunhão. Sobre a escuta, lembrou a afirmação do papa Francisco : ‘uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, consciente de que escutar é mais do que ouvir’. O cardeal disse que ‘a vida monástica e contemplativa pôs a experiência da escuta sempre no centro, a tal ponto de que, muitas vezes, as regras monásticas das diferentes tradições não foram outra coisa que compilações de expressões bíblicas e evangélicas, para afirmar que a vida monástica e contemplativa é uma encarnação da Palavra de Deus escutada, meditada e interiorizada’.

A própria hospitalidade, tão comum nas comunidades monásticas e contemplativas, é uma experiência de acolhida e escuta, que encontra sua fonte no convívio com as Escrituras, na ‘lectio divina’ e em outros enfoques espirituais à Palavra de Deus’, disse o cardeal.

O segundo lugar, a conversão, está intimamente ligado à escuta. O cardeal Grech afirmou que ‘um verdadeiro caminho sinodal não pode prescindir da vontade de se deixar converter pela escuta da Palavra e da ação do Espírito Santo em nossa vida’. ‘A vida monástica e contemplativa recorda a toda a Igreja que o convite à conversão está no próprio coração do anúncio de Jesus, que percorria as aldeias da Galileia dizendo : ‘Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo’’.

Por fim, o terceiro termo : comunhão. O cardeal afirmou que a ‘sinodalidade’ é uma garantia de unidade, como lembrou o papa : ‘O fato de o sínodo atuar sempre ‘cum Petro’ e ‘sub Petro’ não é uma limitação da liberdade, mas uma garantia de unidade’.

Para o cardeal, a vida contemplativa e monástica testemunha essa verdade e estabelece o vínculo que une a escuta e a conversão com a comunhão : ‘A finalidade da escuta e da conversão é a comunhão’.

Nas suas comunidades, sabem bem que a comunhão é também o critério último de discernimento e de verificação do caminho sinodal’, afirmou, e que ‘a comunhão eclesial é o selo de discernimento e de verificação do caminho sinodal’.

De fato, ‘a vida comunitária, própria da vida religiosa, se experimenta como comunhão, que não é o mesmo que uniformidade. Efetivamente, é o critério para verificar um autêntico caminho compartilhado em uma perspectiva de fé’.

Por fim, o cardeal Grech disse que os irmãos e irmãs chamados à vida monástica e contemplativa, ‘com sua preciosa vocação, que enriquece toda a comunidade eclesial, são custódios e testemunhas de realidades fundamentais para o processo sinodal que o Santo Padre nos convida a realizar’’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.acidigital.com/noticias/cardeal-fala-do-papel-de-comunidades-monasticas-no-sinodo-dos-bispos-48178

sábado, 28 de agosto de 2021

Um pequeno panorama sobre a Teologia Cristã Ortodoxa

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Página de um manuscrito da Biblioteca Deir al-Surian

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘A teologia cristã ortodoxa, infelizmente, é ainda pouco conhecida pela grande parcela da população cristã no Brasil, se comparada com a teologia cristã latina. Porém, ela se mostra riquíssima, tanto referente às suas formulações, quanto à sua iconografia, tendo muito a nos ensinar em nossos dias. Diante disso, no texto de hoje, gostaria de apresentar duas dimensões importantes dentro dessa teologia, bem como um conceito muito caro a ela : a dimensão apofática, a dimensão catafática e o conceito de Theosis (1).

No que tange à primeira dimensão, no pensamento oriental prevalece aquela que é chamada dimensão apofática da teologia, ou seja, segundo a definição de Evdokimov, ‘a teologia é a negação de toda definição humana’ (EVDOKIMOV, 1996, p.22). Dessa forma, para Evdokimov, não existe nome capaz de exprimir Deus de forma adequada, podendo somente se falar sobre aquilo que Deus não é e nunca aquilo que Ele é. Nesse sentido, a tônica da teologia oriental é apofática desde que ela não se desligue de sua base que é a teologia catafática.

Meyendorff, em seu livro La teologia Bizantina, nos dá uma boa visão do que seria a teologia catafática, mostrando-nos sua premissa que diz que só podemos conhecer de Deus aquilo que Dele é revelado. Uma vez que Ele sempre se revela como Pai, Filho e Espírito, esse fato não pode ser deduzido de nenhum princípio ou de forma racional (cf. MEYENDORFF, 1984, p.220). Aqui, fica-se claro que a teologia apofática e catafática são complementares. Enquanto não é possível dizer quem Deus é em sua essência (dimensão apofática), ainda assim é possível falarmos de Deus a partir daquilo que ele revelou a nós (dimensão catafática).

Algo que é importante de se ter em mente é que a teologia cristã ortodoxa sempre deu ênfase à monarquia do Pai. Tudo procede do Pai e está em estreita relação com o ele. Dessa forma, as relações da Trindade se manifestam de acordo com as propriedades pessoais de cada um e são essas propriedades que distinguem o Pai como não gerado e fonte de todas as coisas, o Filho como gerado e o Espírito na qualidade de expirado. O Pai é eternamente Pai, o Filho é coexistente ao Pai e o Espírito procede do Pai. Essas características de não gerado, gerador e expirador permanecem no campo apofático na perspectiva oriental, cabendo ao ser humano simplesmente contemplar o mistério divino.

Por último, apresentamos o lindo conceito da TheosisTheosis, ou divinização do homem querem dizer a mesma coisa. Ambas tratam da pneumatização do ser humano, do seu ser transformado pelo Espírito Santo. A Theosis representa o fim último do ser humano, que é viver a semelhança que faz com que a imagem siga em direção ao seu arquétipo, ou em outras palavras, participar da vida de Deus.

Diversos foram os padres gregos que discorreram sobre o tema da Theosis, tais como Orígenes, Clemente de Alexandria, Irineu e Atanásio, dentre vários outros que poderíamos citar, padres esses de fundamental importância para o desenvolvimento da teologia oriental. Em todos esses é clara a visão de que o homem deve ser deificado, ou seja, ter restaurada a imagem autêntica de Deus.

Contudo, mostra-se muito importante percebermos que a deificação, no pensamento oriental, não se encerra na restauração da imagem de Cristo, o que tornaria esse processo estático, mas se trata de um movimento contínuo, de um se assemelhar crescente a essa imagem, tendo o Espírito Santo um papel fundamental nesse processo. Esse pensamento segue ao longo dos séculos na teologia oriental, tendo diversos sistematizadores, tais como Máximo Confessor, Gregório Palamas e, mais recentemente, Paul Evdokimov e John Meyendorff, fazendo-nos perceber ser esse um dos pilares dessa teologia.

Logicamente, não tem como desenvolvermos todos esses temas na profundidade que merecem e muitos outros ficaram de fora, tais como a questão sacramental e a epiclese. Contudo, diante desse pequeno panorama, convidamos o leitor e a leitora a conhecer mais dessa teologia tão rica, que pode cooperar muito para uma experiência mais profunda da própria fé cristã em nossos dias. 

Nota :

1) Esse texto toma por base nosso artigo A epiclese enquanto espelho da Theosis: uma abordagem possível na teologia oriental

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1535187/2021/08/um-pequeno-panorama-sobre-a-teologia-crista-ortodoxa/

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Partilhar a vida e a fé

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo da Irmã Isabelle Valinande, 

Missionária Comboniana


‘Nasci em Kinshasa (República Democrática do Congo) e, devido ao trabalho do meu pai, passei a infância em diferentes regiões do meu país. Provenho de uma família cristã. O meu pai é engenheiro florestal e a minha mãe é enfermeira, o que nos permitiu ter uma boa educação acadêmica, moral e espiritual. Em casa éramos oito irmãos, sete meninas e um menino, que é o mais novo. O meu pai ultrapassou as barreiras culturais da nossa comunidade e educou-nos a todos com igualdade, com os mesmos direitos e deveres. Por isso, eu tive a possibilidade de ser educada e crescer profissionalmente, uma oportunidade que normalmente é reservada apenas aos homens. 

A alegria de ser missionária

Nunca pensei em ser religiosa. Era a minha irmã Fabiola, a terceira, que tinha esse desejo, mas o meu pai orientou-a e ela começou a estudar e a preparar-se profissionalmente. E, entretanto, encontrou a sua verdadeira vocação, a de ser mãe. Foi sob a influência da minha irmã que comecei a participar no grupo vocacional da minha paróquia. Lá conheci outro jovem, agora missionário comboniano, o padre Gervais Mutsopi, que me convidou para participar num encontro organizado pelas Combonianas de Butembo. 

Aquele encontro vocacional mudou-me a vida. Um missionário congolês contou-nos sobre a vida de São Daniel Comboni. A sua experiência comoveu-me e despertou-me o desejo de querer saber mais sobre aquele homem apaixonado pela África que, na altura, era um continente abandonado ao seu destino. Aquele missionário disse-nos que Comboni era o único filho sobrevivente de oito irmãos, os seus pais eram pobres, camponeses e idosos. Apesar disso, aceitou afastar-se dos seus pais para ir evangelizar a África. Em casa, disse a mim mesma : «Se Comboni aceitou deixar o mais valioso que tinha por um povo, pela África, porque não posso eu fazer o mesmo?» Foi aí que ocorreu a minha conversão, a mudança de minha vida.

Fiquei ainda três anos em Butembo a trabalhar e a estudar antes de começar a primeira fase de preparação para a vida comboniana. Fiz, depois, seis anos de formação no instituto das Missionárias Combonianas.

Missionária africana na América

Depois da minha primeira profissão religiosa, que fiz em Namugongo (Uganda), fui destinada ao México. Comecei em Guadalajara, cidade onde passei um ano a trabalhar com idosos e doentes, e também na paróquia.

Depois, em Costa Chica, no Estado de Oaxaca, dediquei dois anos ao trabalho pastoral com a juventude afro-mexicana. Foi uma bela experiência que deu sabor à minha vida missionária : aprendi com os jovens, conheci a realidade desse povo e pude abrir-me ao diferente para poder partilhar a minha vida e cultura. 

A diocese de Puerto Escondido, a que pertence a paróquia de Huaxolotitlán, não tinha agentes pastorais suficientes e contava com poucos padres. A nossa paróquia tinha mais de 32 comunidades e um único padre que não conseguia chegar a todos os lugares durante o ano; as comunidades tiveram de se organizar para celebrar a sua fé. As quatro irmãs dividimos o território da paróquia para acompanhá-las. O testemunho de fé destes povos comoveu-me profundamente.

 

A Irmã Isabelle Kahambu Valinande durante a procissão de Domingo de Ramos em Costa Chica (México) no ano de 2016


Esta foi uma realidade que me surpreendeu porque o México é um país com mais de 500 anos de evangelização. Na minha diocese, Butembo-Beni, há muitos padres e congregações religiosas. Apesar de terem transcorrido poucos anos desde a chegada do Evangelho, há agentes pastorais preparados para acompanhar as comunidades cristãs e as celebrações são muito vivas e animadas. Neste contexto, em Costa Chica tive de fazer um pouco de tudo. Aos domingos fui a diferentes comunidades para as celebrações da Palavra, algo novo que não foi fácil para mim, especialmente quando alguma pessoa falecia.

Nos povoados não podem enterrar os seus familiares sem a bênção, por isso procuram um padre, uma freira ou um catequista. Dizem que «estão mais perto de Deus» e que «a oração ou a bênção aproxima os falecidos de Deus». Têm um ritual que mistura tradições africanas e indígenas. Logo que a pessoa morre, colocam-na no chão para estar em contato com a Mãe Terra. «Da terra vêm e a ela voltam», afirmam. Quando o corpo arrefece, consideram que a Mãe Terra o recebeu. Depois colocam flores de cempasúchil [calêndula asteca] com cal no lugar e põem o falecido numa cama preparada para o velório e, posteriormente, vão para a capela e o funeral. No fim dos rituais, a comunidade reúne-se em torno da comida. As comunidades com as quais trabalhei também têm o hábito de organizar uma novena de oração, para rezar pelo eterno descanso dos falecidos.  Apreciei muito esta forma de celebrar a vida e a morte.

Finalmente, vivi na Cidade do México durante seis anos. Ali, além de estudar Ciências Religiosas, dediquei-me à animação missionária e à pastoral com as pessoas migrantes. Na Casa Mambre ajudei-as com os procedimentos administrativos e a aprendizagem da língua, especialmente aquelas que vieram de África; e no centro Cafemir colaborei no acompanhamento psicoespiritual e em terapias manuais para facilitar a integração social.

Agora estou nos Estados Unidos, onde abrimos uma comunidade no Texas, com a intenção de continuar a trabalhar com os jovens.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/actualidade/6/563/partilhar-a-vida-e-a-fe/

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A responsabilidade da pregação cristã para com o diálogo em tempos de intolerância

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Francisco Thallys Rodrigues

 

‘A base fundamental da pregação cristã é o anúncio da boa nova do Reinado de Deus, proclamado por Jesus, este que se expressa como um tempo novo para os excluídos, pobres e sofredores. O princípio fundamental da fé cristã é o amor a Deus e ao próximo vivido no cotidiano da vida. Seguir Jesus é manifestar o amor de Deus pela humanidade por meio da palavra e do testemunho. Neste contexto, denunciar as injustiças e situações de exploração deve ser parte integrante da espiritualidade dos cristãos de todos os tempos, expressos em palavras e atos. O problema é que muitas vezes a denúncia da injustiça e o anúncio da boa nova do Reino tem cedido espaço para discursos pretensamente ‘neutros’, sem posição diante das ameaças à vida, ou em outros casos tem cedido espaço para o discurso de ódio. Qual a importância da pregação cristã num contexto de dificuldade de diálogo?

Na palavra e ação de Jesus encontramos uma abertura fundamental ao próximo, independentemente de sua situação ou condição. Acolhe a todos que o procuram nas mais variadas situações não se atendo a questões culturais, religiosas ou étnicas. Isto ocorre mesmo com aqueles que claramente se opunham a ele ou procuravam matá-lo. O Reinado de Deus anunciado por Jesus não foi imposto, mas trata-se de um convite que supõe uma adesão livre e por amor. A pregação de Jesus tem por base fundamental a experiência filial com Deus, ela é acompanhada por um testemunho sincero e fecundo. Os cristãos devem reconhecer-se nesta experiência filial com o Pai que conduz a vivência da fraternidade com os irmãos e irmãs. Filiação e fraternidade tornam-se essenciais numa vida segundo o Espírito.

No decorrer dos séculos, a pregação, acompanhada do testemunho, tornou-se o eixo fundamental para o crescimento do cristianismo seja nos espaços celebrativos ou mesmo na expansão da atividade missionária. Tão grande era a importância da pregação cristã que, no contexto medieval, surgiu uma ordem (dominicanos) especialmente dedicada à pregação em vista da conversão daqueles que muitas vezes eram considerados ‘hereges’. Mesmo em nossos tempos, uma quantidade significativa de pessoas dirige-se semanalmente, ao menos, às igrejas e templos para participarem de celebrações que dedicam uma parte, ou quase sua totalidade, à pregação a partir dos textos bíblicos.

Quando se considera o momento atual, marcado pela crescente polarização em todos os setores e o crescimento do ódio, a pregação cristã tanto pode favorecer espaços de abertura e diálogo, quanto pode levar ao acirramento de ânimos, aumentando a segregação e o ódio. Quando se parte do princípio de que o respeito e a capacidade de escuta são exigências fundamentais do amor cristão, o diálogo torna-se possível. Trata-se de um processo de maturidade para reconhecer que o outro tem igual dignidade mesmo que não professe a mesma fé ou que não concorde com o que pensamos. Dentro das próprias comunidades cristãs torna-se urgente insistir em sua diversidade como expressão dos próprios dons do Espírito, tendo consciência de que o Evangelho de Jesus é ponto fundamental que nos une. Tal experiência quando asseverada nas pregações pode favorecer maior solicitude diante do próximo. Não faltam exemplos de homens e mulheres que, em cada tempo e lugar, estabeleceram diálogos, aparentemente impossíveis, tal é o caso de Francisco de Assis com o Sultão; ou Charles de Foucauld com os mulçumanos no deserto africano.

Por outro lado, a pregação cristã pode conduzir ao fechamento em si mesmo quando os pregadores estabelecem uma linha divisória entre os espirituais e os profanos ou se quiser outra linguagem, entre os batizados e os ‘do mundo’. Nesta concepção, estes últimos encontram-se destituídos de valor porque não acolheram a boa nova de Deus, não se ‘converteram’. Neste caso, o diálogo só é possível quando os ‘perdidos’ decidem entrar num processo de conversão ou mostram alguma disposição para fazê-lo. Do contrário, o diálogo torna-se impossível. O extremismo de tal posição pode levar ao cerceamento do outro, tal como aconteceu também na história, por mais de uma vez, aos judeus e, no caso brasileiro, às religiões de matriz afro. O crescente ódio dos cristãos motivados por pregações de cunho farisaico, fundamentalista e, porque não dizer elitista (no sentido de termos os salvos e os condenados), é uma enorme contradição com o Evangelho de Jesus e com a vida dos cristãos.

Neste cenário, os pregadores cristãos deveriam insistir no diálogo como elemento fundamental para a vivência do Evangelho. O diálogo supõe capacidade de abertura, reconhecimento de valor e consideração do outro como irmão e não como inimigo. O caminho parece ser insistir na necessidade de construir pontes e estabelecer diálogos, pequenos consensos que possam conduzir a uma abertura. Além disso, não se deve esquecer que o mais fundamental deverá ser o testemunho dado no cotidiano da vida que como fermento na massa transforma o mundo.

Portanto, o papel da pregação cristã neste cenário é convidar ao seguimento de Jesus que exige uma constante conversão para o serviço a Deus e aos irmãos e irmãs. Estes não podem ser compreendidos unicamente como aqueles que fazem parte da mesma confissão de fé, mas deve incluir a todos sem distinção. A pregação cristã será mais evangélica na medida em que expressar aquilo que foi o mais fundamental na vida de Jesus : o amor feito doação a todos os irmãos e irmãs a partir da experiência filial com o Pai animado pelo Espírito.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1534402/2021/08/a-responsabilidade-da-pregacao-crista-para-com-o-dialogo-em-tempos-de-intolerancia/

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Dormem as crianças do Afeganistão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Giovanna Binci


‘‘As meninas estão dormindo’, me disse ontem à noite o meu marido, aqui na Itália. Eram umas nove da noite, depois da costumeira maratona de historinhas para dormir, pulos na cama, dentes a escovar, pijamas a vestir e mais historinhas para dormir.

As crianças dormem e ai de quem acordá-las. As crianças fecham os olhos e você se pergunta por quais sonhos estarão vagando. As crianças respiram fundo e os pais entendem que, mais uma vez, uma jornada terminou.

As crianças dormem em paz e há uma mamãe e um papai felizes. As crianças puxam o lençol e se sentem no lugar mais seguro do mundo, onde bicho papão nenhum consegue alcançá-las.

Dormem as crianças do Afeganistão

Também em Cabul adormecem as crianças, mesmo à sombra dos arames farpados do aeroporto, até que, entre o susto e as lágrimas, sejam acordadas por rajadas de balas e por estrondos de decolagens.

Dormem as crianças afegãs e, nesta noite, as mães acariciarão as suas testas, perguntando-se o que vão descobrir lá fora aqueles olhinhos quando acordarem. O mundo mudou tanto da noite para o dia que, talvez, deste pesadelo não se acorde tão cedo.

A criança no avião americano : a beleza em meio à dor

As crianças do Afeganistão desabam exaustas no avião que as leva para longe, para um futuro que daqui não se vislumbra mais. Como o pequeno da foto, evacuado num cargueiro americano em 15 de agosto, com outras mais de seiscentas pessoas. A jaqueta de camuflagem militar no lugar de um ursinho de pelúcia. Dorme como as minhas filhas.

Dormem as crianças, elas que são a mais maravilhosa visão do mundo – inclusive no meio da guerra; inclusive apesar da guerra, que quer tirar o seu direito à beleza.

Esperamos que, ao menos em seu sono, eles estejam a milhões de quilômetros do sofrimento, dos gritos, daqueles que querem machucá-las. Mas elas estão longe da mãe e do pai, de casa. Da sua caminha.

Não dá mais sequer para sonhar com o amanhã : os pais tentam passar os filhos pelo arame farpado. O que fica para trás dá mais medo que a incerteza e o afastamento. As mães e os pais também sonham. E os seus sonhos são todos iguais : é por isso eu mesma sinto o seu desespero e entendo a esperança e o amor que conduzem aquelas mãos.

Foi horrível, as mulheres jogaram seus filhos pelo arame farpado do aeroporto pedindo aos soldados que os levassem. Alguns pequenos ficaram enredados no arame’, contam as legendas que traduzem as palavras de um oficial do exército afegão num dos vídeos que deram a volta ao mundo.

Diante dos muros do aeroporto de Cabul, de onde a ponte aérea humanitária transporta pedaços de uma população desintegrada pela ocupação dos talibãs, famílias de afegãos em fuga aguardam a sua vez.

As crianças estão exaustas, sete ficaram doentes aqui no sereno. Elas não dormem. Choram, estão com medo’, diz o papai Sakhi à agência Adnkronos.

Os suprimentos de água e comida diminuíram junto com as esperanças de sair do país. Os postos de controle do Taleban ao longo das ruas da capital tentam impedir os não estrangeiros de chegarem ao aeroporto.

Outra jornada muito difícil está para terminar no Afeganistão. Mais um dia de protestos e ao mesmo tempo de silêncio surreal nas ruas; de mulheres trancadas em casa; de medo, de tiros, de incerteza.

Apesar de tudo, também nesta noite, dormem as crianças do Afeganistão.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://pt.aleteia.org/2021/08/24/dormem-as-criancas-do-afeganistao/

sábado, 21 de agosto de 2021

A Igreja Católica no Afeganistão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Capela onde os católicos que vivem no Afeganistão se reúnem para a missa (Embaixada da Itália no Afeganistão)
 

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Tente imaginar um país onde os cristãos não são só minoria, mas não possuem sequer uma paróquia. Estamos falando do Afeganistão, país em que a comunidade católica conta com cerca de 100 fiéis, incluindo os sacerdotes e freiras que lá atuam.

O pequeno grupo consegue se reunir graças à capela da embaixada italiana no país, a única autorizada pelo governo local. A Itália foi a primeira nação do mundo a reconhecer a independência do Afeganistão, em 1919. Por conta disso, o país europeu recebeu essa concessão especial.

Na falta de uma diocese, como nesse caso, a Igreja Católica estrutura a chamada missão sui iuris. Como o catolicismo ainda não é radicado no país, essa é a primeira etapa antes da criação de uma diocese. São os missionários a assumir a tarefa de implantar a Igreja no lugar.

Desde 1931, a pedido do papa Pio X, os barnabitas assumem essa responsabilidade. E não estão sozinhos : contam com o apoio, atualmente, de membros de várias congregações religiosas. A partir dessa união de esforços, freiras e padres de vários institutos administram a Escola da Paz, uma iniciativa que atende cerca de 2,5 mil crianças, e a Pro-bambini di Kabul, que assiste crianças com necessidades especiais.

O responsável pela pequena comunidade de Cabul é o padre barnabita italiano Giovanni Scalese, de 66 anos. Segundo as últimas informações, divulgadas por membros da sua congregação, o religioso permanece na embaixada da Itália no país, que está vazia após o retorno do corpo diplomático para Roma. Scalese disse que só deixará o local quando todos os religiosos e as crianças atendidas pelas obras assistenciais da missão deixarem o Afeganistão em segurança.

Após o Talebã ter tomado a cidade de Cabul, no último domingo (15), religiosos católicos também entraram na lista das tristes estatísticas. Jesuítas e Missionárias da Caridade - a congregação de Madre Teresa de Calcutá -, que coordenam algumas iniciativas sociais da missão, se uniram à multidão de afegãos que lotam o aeroporto da capital. Todos estão na expectativa de embarcar para a Índia, onde muitas dessas pessoas têm encontrado refúgio. Por conta disso, o país está emitindo vistos de emergência para atender a demanda.

Mas a rotina dos católicos afegãos vai além dessa dificuldade de manter uma comunidade pequena. Por se tratar de um país confessional, onde o Islã é religião de estado, a prática de proselitismo por parte de outras confissões de fé não é permitida. A primeira-dama do país até a invasão do Talebã, Rula Ghani, que nasceu no Líbano e é cristã, usa a hijab em respeito aos cidadãos do país e não manifesta sua crença em público.

Com os últimos acontecimentos, há famílias inteiras de católicos que, desde a invasão, estão trancadas dentro de casa. Estima-se que, além dos números que são divulgados, há cerca de oito mil cristãos que praticam a própria fé às escondidas.

O cristianismo chegou ao Afeganistão no século 4, mas não se manteve por causa das invasões muçulmanas da Idade Média (século 7). As comunidades de Balkh, Harat, Farat e Kandahar deixaram de existir. É por isso que católicos e evangélicos que vivem no país precisam praticamente começar do zero. Agora, ninguém sabe dizer qual será o futuro dessa missão e o que será feito pelos cristãos que não têm para onde ir.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1534728/2021/08/a-igreja-catolica-no-afeganistao/

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Os que se foram ficam

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo d0 Padre Johan Konings, SJ

‘‘Vita mutatur, non tollitur’ diz a liturgia das exéquias : ‘A vida é transformada, não tirada’. Neste tempo de muitas despedidas inesperadas, prematuras, às vezes chegando multiplicadas na mesma família, essas palavras devem ser mais do que um consolo barato. São Paulo as formulou de outra maneira : ‘Semeia-se um corpo material, ressuscita um corpo espiritual’ ... ‘nem todos morreremos, mas seremos todos transformados’... ‘os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados’ (1 Coríntios 15,44.51.52). 

A mesma coisa que nossa fé chama a ressurreição de Cristo acontece a todos os que de alguma forma, seja pela fé professa, seja pela caridade vivida, são semelhantes a ele. Não é uma realidade física, ainda que o credo fala em ‘ressurreição da carne’ – carne, corpo, corpo e alma são expressões que tem o sentido bíblico de pessoa humana individuada, identificada, mas não necessariamente física. Por isso Paulo falou em ‘corpo espiritual’. Mas é uma realidade. O espiritual não é menos real que o natural. Por isso, se acreditamos que o Ressuscitado está realmente presente, podemos acreditar também que os que nos deixaram ‘em Cristo’ (no sentido amplo que indiquei acima) estão realmente presentes. Mas de outro modo do que estávamos acostumados. Não tirados, mas transformados. 

O primeiro sinal dessa presença é a memória inapagável, o sentimento que cresce com o tempo se tiver como base uma experiência de amor, de retidão, de generosidade, de justiça. Ou mesmo, de busca talvez não bem concluída, mas que testemunha um desejo insaciável do mistério do amor infinito. Tudo isso não escapa à nossa percepção, mas há muito mais que não percebemos tão diretamente. É como se os amados estivessem presentes na ‘nuvem’, não no sentido de sumidos do mundo, mas como arquivos guardado na nuvem da internet, acessível em qualquer lugar, pelo menos, se tivermos a senha. E essa senha é a nossa fé. Ela abre o acesso aos que desde sua presença física entraram nessa presença duradoura. Duradoura, e mais rica que antes. Porque não mais exposta a quedas de força...

Mas achamos que o fisicamente ausente não está aí. Isso, porque não entendemos o que Jesus disse a Maria Madalena : ‘Não me toques’, ou ‘não me segures, eu ainda não subi...’ (João 20,17). O modo certo para que essa nova presença se torne real para nós é largar a presença terrena. E então se realiza o que João descreve como a memória trazida pelo Espírito e a habitação em e entre nós graças à guarda do mandamento do amor (João 14,23).

Uma amiga que perdeu o seu irmão na pandemia reclamou com Deus : ‘Eu pedi tanto e você não me ouviu!’ – ‘Como? Eu lhe ouvi! O que falta?’ – ‘Quero-o em casa’ – ‘Ele está em casa.’ – ‘Aqui na minha casa!’ – ‘Ah... você se expressou mal’... Depois a jovem me confiou : ‘Nunca falei tanto com ele quanto agora’. Isso é real.

Esta reflexão não é um tratado sobre a vida pós-morte, mas uma reflexão sobre o significado dessa vida para os que ficam. Só para dizer que essa percepção da presença é real, não ilusória. É importante crer que o não materialmente verificável ‘é’ e ‘tem sentido’. Sentido vital. Aliás, o que é materialmente verificável não se crê mas se constata.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1534636/2021/08/os-que-se-foram-ficam/

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Teologia do medo e teologia com medo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Hoje em dia ainda se fazem muito comuns uma teologia do medo e uma teologia com medo. A primeira é muito presente em ambientes fundamentalistas. Trata-se daquele tipo de teologia que usa o medo para manter as pessoas reunidas sob determinada liderança. Nesse tipo de discurso o que se faz mais presente são as famosas listas do que se pode e do que não se pode ser feito, dando mais ênfase, logicamente, àquelas que não se pode fazer por serem consideradas como carimbo de entrada no inferno. Para sustentar tais considerações, tomam-se versículos bíblicos tirados de seus contextos e fazem todo um corpo doutrinal em cima deles.

Uma vez que a partir de um texto isolado qualquer doutrina pode ser construída, a lógica é tomada como o grilhão que prende as pessoas a esse corpo doutrinal. Afinal, uma vez se aceitando a premissa teológica colocada por determinada liderança, tudo que se segue logicamente dela deixa qualquer pessoa obrigada a admitir que aquela doutrina deve ser obedecida como vontade divina. Não é de se espantar, portanto, que a teologia do medo seja muito útil a pastores(as) charlatães na contemporaneidade. O medo e a lógica criada que o fomenta sempre foram instrumentos fortes para dominação de massas e não é diferente em alguns ambientes que se dizem cristãos.

Por outro lado, vemos também um outro tipo de teologia que é a teologia com medo. Essa, por sua vez, é percebida quando encontramos uma atitude teológica que se fecha sobre si mesma por ter medo de encarar os problemas que o mundo contemporâneo traz. Esse tipo de fazer teológico ainda se faz muito presente na vida de muitos teólogos e teólogas da atualidade. No lugar de estarem atentos e atentas às novas demandas que o mundo hodierno lança à teologia, preferem se esconder nas fórmulas prontas e já consolidadas, por medo de receberem algum tipo de sanção ou, até mesmo, serem considerados(as) hereges por parte da liderança à qual estão subordinados(as).

Mesmo que haja teólogos e teólogas conservadoras que fazem teologia nesse viés e buscam responder questões contemporâneas com as velhas chaves do passado, isso não quer dizer que sejam medrosos(as). Muitas vezes, em tais teólogos e teólogas se encontram muita coragem e honestidade teológica para, a partir de uma leitura conservadora, propor respostas, ainda que prontas, para as questões de nosso tempo. Que sejam boas respostas, daí é outro problema que não é objeto deste artigo.

Neste texto, refiro-me aos teólogos e teólogas progressistas que, mesmo tendo boas ideias e respostas novas, têm medo de expô-las por causa das diversas sanções que podem receber por parte de seus(as) superiores(as). Nesse caso, é a própria estrutura a responsável por sustentar e até mesmo fomentar tais teologias, que são feitas por pessoas com medo de serem descobertas ou de terem que prestar contas diante de algum concílio ou algo do gênero.

Nesses cenários, é importantíssimo que a teologia se torne cada vez mais pública e feita por pessoas de diversos ambientes. A necessidade de um saber teológico que seja feito de fora dos lugares já consolidados é fundamental para que um novo frescor possa soprar nas antigas estruturas teológicas. Elas que, muitas vezes, por serem já consolidadas, tornaram-se como muralhas que, intentando proteger determinada cidade, na verdade, impedem que ela veja que há muito mais coisas do lado de fora que podem ser úteis para a melhoria de sua própria condição.

No lugar de uma teologia do medo não se deve entrar uma teologia com medo, mas, em substituição a essas duas, deve ser possível uma teologia amorosa e pública que olhe tanto para fora quanto para dentro do ambiente em que é feita. E, a partir das questões que são postas por esses dois lados, proponha novas respostas que tragam refrigério para as pessoas, tanto de dentro dessas estruturas, como para as que não pertencem a ela.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1534139/2021/08/teologia-do-medo-e-teologia-com-medo/

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O ministério presbiteral em nossos tempos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O padre é como um maestro que coordena os diferentes sons presentes na comunidade na busca pela mais bela melodia
 

*Artigo do Padre Francisco Thallys Rodrigues


‘O ministério ordenado, especialmente, o presbiterato, sofreu uma série de modificações ao longo do tempo e do espaço. Em cada época, situação e momento assumiu diferentes posições que se expressaram em maior ou menor fidelidade ao ministério das primeiras comunidades cristãs. Em nosso tempo, a figura do presbítero torna-se cada vez mais plural e complexa de modo que qualquer análise deve levar em consideração variáveis inexistentes em outros tempos.

Nas primeiras comunidades cristãs, a figura do presbítero nasce a partir da necessidade de condução e coordenação dentro do espaço das comunidades. Não é o único serviço e nem o mais importante, mas um entre outros que possibilitam a continuidade da tradição de Jesus. Vale recordar, inclusive, que ele não tem relação com o sacerdócio do Antigo Testamento, isto é, o presbítero não é uma nova versão do sacerdote do AT que por sua vez anuncia a boa nova de Jesus.

No processo de expansão e consolidação do que chamamos cristandade, o presbítero passou por uma série de modificações a partir das necessidades daquele momento histórico. Terminou-se por ‘incluir’ uma série de adereços ao ministério, tornando-o por vezes mais ligado ao sacerdócio do AT do que ao próprio ministério presbiteral no NT. Neste processo de avanços e recuos, o Concílio Vaticano II representa uma tentativa de síntese entre as diversas compreensões do ministério em fidelidade as primeiras comunidades e a tradição eclesial.

Mesmo assim, pouco mais de 50 anos do concílio, algumas tarefas e desafios apresentam-se no tempo. E a história como campo aberto de possibilidades nos oferece sempre novas alternativas. Neste cenário torna-se necessário ter clareza dos desafios que se apresentam aos presbíteros. Apresento a seguir alguns pontos de atenção na vivência do ministério presbiteral.

Pluralidade na vivência do ministério do presbítero – Desde suas origens a figura do presbítero está marcada pela diversidade assumida nos diferentes contextos. O problema surge quando a pretensão da diversidade abre espaços para formas anacrônicas de vivência ministerial que não condizem com as exigências do tempo presente, ressuscitando ‘práticas e posturas’ de tempos de cristandade que não mais existem. Apela-se a tradição da Igreja, mas ignora-se a tradição das primeiras comunidades e do próprio Concílio Vaticano II. Qual papel deve ocupar o presbítero em nosso tempo?

Risco de um personalismo exacerbado e fragilidade das relações – Sempre existiu presbíteros que se destacaram por seu carisma, capacidade de vivência do evangelho em resposta aos problemas do mundo presente. Entretanto, verifica-se cada vez uma tendência a entender o ministério como algo ‘próprio’, pessoal e não como uma missão confiada em vista dos irmãos e irmãs. Os laços de comunhão e fraternidade entre os presbíteros e o bispo tornam-se cada vez mais frágeis e problemáticos. Neste sentido, vale questionar : entende que o sacramento da ordem está a serviço do sacramento do batismo? Qual o tipo de promoção vocacional informal realizamos em nossas paróquias, espaços e mídias?

Risco do clericalismo e dos gurus – Quando se exalta demasiadamente a figura do padre, relegando a comunidade um papel de subordinação ou enfocando os ‘pretensos poderes’ da ‘unção sacerdotal’ o resultado é a clericalização do ministro ordenado e dos demais membros da comunidade. O papa Francisco tem alertado para os perigos que o clericalismo traz para a vida da comunidade na medida em que mina a vivência do Evangelho. A sinodalidade é expressão da busca pela comunhão no caminho. Quando se exalta ou se formam gurus, sejam eles cantores ou pregadores, tende-se a esquecer o papel e a importância da comunidade e de seus ministérios.

Desgastes próprios de nosso tempo – O ministério presbiteral sofre os desgastes e estresses próprios e nossos tempos. O comprometimento dos presbíteros com as comunidades, a vivência do Evangelho no espírito da Igreja em saída, não isenta os padres, especialmente os mais jovens, de sofrerem os desgastes psicossomáticos que atinge a população : é um misto de serviço-doação, expectativa versus realidade na vivência ministerial, problemas administrativos, atendimento sacramental, conflitos em nível relacional e constante cobrança. Os jovens tornam-se padres num mundo com uma multiplicidade de ofertas e possibilidades, vindos, muitas vezes, de um ambiente familiar marcado por inúmeros dramas e conflitos, necessitados de referências que possam acompanhar e colaborar no exercício de sua missão. Diante disso, como favorecer um equilíbrio no tempo e no espaço? Como estabelecer relações saudáveis entre os padres jovens e aqueles mais experientes?

O Vaticano II insistiu numa eclesiologia de comunhão na qual o presbítero entende seu ministério como serviço na comunidade, nem único e nem exclusivo. O padre é, na imagem usada por Taborda, como um maestro que coordena os diferentes sons presentes na comunidade na busca pela mais bela melodia. A diversidade não é um problema para a vivência do ministério desde que se tenha presente a eclesiologia de comunhão tal cara ao Novo Testamento, as primeiras comunidades cristãs, acentuada no Concílio Vaticano II e enfocada no ministério do papa Francisco. A tarefa que se impõe é animar todos os batizados no caminho da sinodalidade a partir de uma eclesiologia de comunhão que valorize todos os ministérios, inclusive o do presbítero.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://draft.blogger.com/blog/post/edit/7497682198020775264/7848639346154351876

domingo, 15 de agosto de 2021

Em uma atitude constante de discernimento

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ


‘Passam os dias, os meses, viramos o ano e seguimos enfrentando as variantes de uma epidemia que insiste em permanecer entre nós. Vencidos muitas vezes pelo cansaço, dominados por sentimentos de impotência, lutamos contra o desânimo, atormentados pela tentação de encontrar respostas fáceis e rápidas. Contudo, o caminho a ser trilhado e a complexidade da situação que enfrentamos pedem paciência e resiliência. Um terceiro passo se nos impõe : prosseguir com a busca de respostas, sem nos contentar com imediatismos apressados.

Não podemos rezar sobre a pandemia sem ter presente diante de nossos olhos os rostos daqueles que sucumbiram, das famílias destroçadas pela dor. Ainda que isso nos custe e incomode, a oração cristã autêntica pressupõe uma relação viva com o Senhor, um ‘face a face’, de coração a coração. O que caracteriza a oração cristã em relação a outras formas de oração é essa dimensão de alteridade. Dom Luciano dizia que a oração é ‘vivência consciente da reciprocidade afetiva(1). A oração é o clima natural do discernimento(2). Importa, pois, ‘povoar’ nossa oração, não rezamos isolados do mundo.

Discernir com o olhar fixo em Jesus : Antes de mais nada, o Senhor deve ocupar o centro da nossa atenção na oração. O discernimento não só não deixa de lado a contemplação, mas ainda se alimenta dela, e a contemplação se faz com um caráter de discernimento (essa é uma das notas que caracteriza a contemplação inaciana frente a outros tipos de oração contemplativa). A mútua interação de contemplação e discernimento evita, além do mais, que este se converta em um ensimesmado dar volta em torno de nós mesmos. Qualquer decisão que tomemos, será movida pelo desejo de fazer algo por Cristo, respondendo existencialmente à tríplice interpelação dos Exercícios : ‘Que fiz, que faço, que farei por Cristo?’ (EE 53, no colóquio diante do Crucificado, que é a primeira vez que Cristo é mencionado nos Exercícios).

Igualmente, no exercício essencial, fundamental e fundacional para a espiritualidade inaciana que é o ‘Apelo do Rei Temporal’ (EE 91-98), Inácio nos convida a fazer uma oferta cheia de afeto e dizer : ‘Eu quero e desejo e é minha determinação deliberada imitar-vos…’ (EE 98). Para crescer nessa comunhão com o Senhor, que é nosso desejo mais profundo, contemplação e discernimento, discernimento e contemplação, são indissociáveis… como são indissociáveis em uma pessoa autêntica seus sentimentos e atitudes mais profundas e os fatos de sua vida cotidiana. O discernimento nos Exercícios tem um caráter marcadamente cristológico(3) : enamorados de Cristo, em equipe com Ele e em diálogo com Ele(4) : é assim que temos que levar adiante nosso discernimento durante o tempo da Eleição.

No discernimento espiritual confluem três apelos do Evangelho : o apelo ao amor como dinâmica de fundo e motor da vida; o apelo à atenção com respeito à passagem e à presença constante de Deus na nossa vida humana; o apelo à vigilância com respeito às interferências que, desde fora ou desde dentro, nos podem tentar e afastar do caminho que o Espírito de Deus nos assinala. O discernimento evangélico é um movimento do amor. Do amor que deseja responder ao Amor. Como amar mais? Como amar em concreto, nas circunstâncias em que me encontro? Qual é para mim em cada âmbito da minha vida a decisão mais coerente com o amor(5)? Eis a matéria da nossa oração durante o tempo da eleição!

O duplo discernimento : O primeiro discernimento deve assegurar se a moção causada é por ação do Espírito ou, ao contrário, o resultado de forças e potências naturais que atuam na pessoa. O segundo discernimento, que é o discernimento espiritual propriamente dito, trata de discernir as consolações que provêm do bom ou do mal espírito. Contudo, o segundo discernimento só pode ser feito depois de passar pelo primeiro. Portanto, é preciso fazer, em primeiro lugar, uma reflexão sobre os pensamentos, desejos e sentimentos que provêm de mim e são anteriores aos que vêm de fora(6).

Na nossa oração, observemos a presença dos movimentos interiores (consolações e desolações). Eles são o eco positivo ou negativo da atitude que o sujeito mantém com relação às mais profundas exigências do seu ser. Manifestam os afetos ocultos que favorecem ou atrapalham o dinamismo existencial básico do homem orientado para Deus. Quando nos deixamos mover pelo Espírito de Deus esse dinamismo se encontraria favorecido positivamente, produzindo a consolação espiritual. Quando o coração está tomado pelos afetos desordenados contrários ao bom espírito, este pode produzir efeitos de tristeza ou aparente desolação(7). Nesta etapa específica, o discernimento é focado em descobrir onde estamos sendo enganados pelo mau espírito quando buscamos a Vontade de Deus. O exercitante é chamado aqui a discernir onde se dão as falsas consolações (Cf. EE 332)(8).

O discernimento evangélico é um movimento do amor. Do amor que deseja responder ao Amor. Como amar mais? Como amar em concreto, nas circunstâncias sociais e pessoais nas quais estou? Qual é para mim em cada âmbito de minha vida a decisão mais coerente com o amor? É o amor que busca a máxima fineza e a máxima entrega : ‘Que fiz por Cristo, que faço por Cristo e que farei por Cristo?’ (EE 53). Sabendo que a minha resposta que mais me identifique com o Amor de Deus será minha máxima plenitude, porque Deus quer minha plenitude e felicidade ‘com maior superabundância do que pedimos ou entendemos(9).

Paulo reza pelos cristãos de Filipos para que o amor deles ‘siga crescendo em conhecimento perfeito e em todo discernimento’ (Fl 1,9). O discernimento se vive em um movimento de tensão para o melhor, em um impulso que leva a crescer e aprofundar no amor (10).’ 

Notas :

(1)- Apud Aracy Cardoso, Caminho de oração, São Paulo: Paulinas 1978,30.
(2)
- Luís González-Quevedo, Discernimento espiritual – As Regras Inacianas, São Paulo: Loyola 2013, 16.
(3)- Darío Mollá Llácer, El discernimiento, realidad humana y espiritual, Manresa 82 (2010) 9-10.
(4)- Cf. Teresa de Jesús Plaza, El discernimiento espiritual como actitud permanente, Manresa 82 (2010) 44-48.
(5)- Darío Molá Llácer, El discernimiento, realidad humana y espiritual, Manresa 82 (2010)
(6)- Krzysztof Dyrek, El concepto de moción desde la psicología, Manresa 91 (2019) 132.
(7)- Josef Vives, Vida cristiana y discernimiento, EIDES 40 (2004) 28.
(8)- Antonio T. Guillén, Los engaños en el discernimiento, Manresa 82 (2010) 19.
(9)- Deliberação dos primeiros padres. Original latim em Monumenta Historica Societatis Iesu vol. 63: Constitutiones I, Roma 1934, 1-7.
(10)- Josef Vives, Vida cristiana y discernimiento, EIDES 40 (2004) 17.

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1533348/2021/08/em-uma-atitude-constante-de-discernimento/