domingo, 28 de abril de 2019

O papado e o poder

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Papa Francisco não somente resignifica o papado, mas evoca a autoridade espiritual do mesmo que foi perdida ao longo dos séculos.
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé



As alianças entre o romano pontífice e os soberanos, representaram, ao longo dos séculos, a tentativa desse líder religioso de garantir prestígio e proteção para o seu território - legitimamente conquistado na visão dos contemporâneos medievais. Ademais, é importante saber diferenciar o papa medieval do papa renascentista, este último consolidado como príncipe do estado pontifício com as prerrogativas de um soberano europeu: o líder de um dos cinco principados italianos.

O famoso episódio do ‘soco de Anagni’, ocorrido em 1303 - quando Bonifácio VIII levara um golpe do chefe das tropas enviadas por Filipe IV (o Belo) à cidade de Anagni, na Itália, foi a resposta dada ao pontífice que tentou reafirmar a sua hegemonia diante do rei francês através da bula Unam Sanctam. Essa, sem dúvida, foi uma das maiores humilhações públicas vividas por um romano pontífice. De acordo com historiadores, esse ‘choque diplomático’ foi um dos episódios que impulsionou a transferência do sucessor de Bonifácio VIII a Avinhão, no Sul da França, justamente para ‘consertar’ essa ruptura entre o papado e o reino mais poderoso da época. Para não citar o famoso Cisma do Ocidente, fruto de uma crise clerical que colocara a autoridade do concílio ecumênico acima da autoridade do sucessor de Pedro entre os séculos XIV e XV.

Além disso, atribuem à idade média - considerada a época da consolidação do universalismo cristão - o surgimento de um líder religioso implacável, o maior proprietário de terras do período e um soberano respeitado por todos. O que, nem de longe, aconteceu, já que foi só no renascimento que o líder máximo da Igreja Católica foi capaz disputar com os demais estados em formação, apesar de ser proprietário de um complexo territorial nanico, se comparado aos demais.

Na idade áurea do papado medieval, o domínio temporal não é protagonista, bem como é quase completamente ausente nas grandes discussões sobre as fontes do direito e do poder, seja na elaboração das grandes coleções canonistas, seja na vida cotidiana das instituições. O olhar se volta mais ao horizonte universal, às relações com o império e com as unidades estatais emergentes’, disse o historiador italiano Paolo Prodi, autor do livro Il sovrano pontefice.

No livro, o estudioso também explica que o estado pontifício -, que começa a formar-se e a assumir uma autonomia territorial e política dentro do quadro político europeu somente em meados do século XV -, foi, sem dúvida, o protótipo do estado moderno.

A Igreja romana introduziu no Ocidente a primeira hierarquia de tribunais com leis escritas e procedimentos uniformes; racionalizou o sistema de imposição das taxas; criou o primeiro ‘ministério das relações exteriores’, o primeiro corpo diplomático e o primeiro exército mercenário estável. [...] Os estados também herdam do papado a auctoritas docendi, tornando-se protagonistas totais além do raio de ação tradicional’, afirmou o historiador.

O papado de Pio IX foi o último suspiro para manter a figura do papa-rei : a proclamação do dogma da infalibilidade papal acontece após a queda do estado pontifício, em 1870. Com os altos e baixos, o papado ainda é uma das instituições com maior credibilidade no mundo, contanto com 266 sumos pontífices ao longo de sua história.

 É importante suscitar esse tipo de debate em um período no qual Papa Francisco não somente resignifica o papado, mas evoca a autoridade espiritual do mesmo que foi perdida ao longo dos séculos. Com uma estratégia diplomática ímpar, Francisco - que em sua primeira aparição pública preferiu utilizar o título ‘bispo de Roma’ - baixa a guarda não visando enfraquecer o papado, mas para fazer sobressair a sua liderança enquanto agente conciliador : a principal missão do pontífice desde que o Concílio Vaticano II lançou-se em diálogo com o mundo.’


Fonte :

sábado, 27 de abril de 2019

Entenda melhor o que é o Domingo da Misericórdia dentro do Tempo Pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 POPE PAINTING
*Artigo da Redação da Aleteia



‘Os cinquenta dias entre o Domingo da Ressurreição e o Domingo de Pentecostes devem ser celebrados com alegria e júbilo, como se se tratasse de um só e único dia festivo, como um grande Domingo’ (Normas Universais do Ano Litúrgico, nº 22).

O Tempo Pascal

O Tempo Pascal começou na Vigília Pascal, com a Ressurreição de Cristo, e é celebrado durante sete semanas, até a vinda do Espírito Santo no Domingo de Pentecostes (que significa, em grego, ‘cinquenta dias’).

Esse tempo litúrgico de imensa força e significado é uma profunda celebração da Páscoa de Cristo, que passa da morte à vida – a palavra ‘Páscoa’, aliás, significa precisamente ‘passagem’, conforme o sentido literal do termo na tradição judaica.

O Tempo Pascal é também a Páscoa da Igreja, Corpo de Cristo, que passa para a Vida Nova do Senhor e no Senhor. É um tempo que prolonga a alegria inigualável da Ressurreição e aguarda, ao final destes cinquenta dias, o dom do Espírito Santo na festa de Pentecostes. Um testemunho de Tertuliano, ainda no século II, já nos conta que, neste período, não se jejua, mas se vive em prolongada alegria.

A Oitava da Páscoa

A primeira das sete semanas deste tempo litúrgico é a assim chamada ‘Oitava da Páscoa’, a ser encerrada com o ‘Domingo da Oitava da Páscoa’. O termo oitava’ se refere ao oitavo dia após a festa de referência – neste caso é a Páscoa, mas também existem a Oitava de Pentecostes, da Epifania, de Corpus Christi, de Natal, da Ascensão e do Sagrado Coração de Jesus, que são as ‘oitavas privilegiadas’, além de outras oitavas consideradas ‘comuns’ (como a da Imaculada Conceição e a da solenidade de São José, entre outras) ou ‘simples’ (como a de Santo Estêvão e a dos Santos Inocentes, por exemplo). Todo o período compreendido entre a festa principal e seu oitavo dia é considerado como uma só celebração prolongada.

O Domingo da Oitava da Páscoa

Trata-se do domingo que encerra a oitava da Páscoa, ou seja, é o segundo domingo do Tempo Pascal, sendo que o primeiro foi o próprio Domingo da Páscoa, a grande solenidade da Ressurreição de Cristo.

O ‘Domingo da Oitava da Páscoa’ também costumava ser chamado de Domingo ‘in Álbis’ (ou seja, domingo ‘vestido de branco’), já que, nesse dia, os neófitos (novos batizados) depunham a túnica branca do batismo.

Popularmente, também já foi chamado de ‘Pascoela’, ou ‘pequena Páscoa’, e, ainda, de ‘Domingo do Quasimodo’, devido às duas primeiras palavras em latim (‘quasi modo’) cantadas no introito.

Um nome adicional e repleto de amor: o Domingo da Misericórdia!

Desde o ano 2000, este mesmo segundo domingo do Tempo Pascal recebe mais um nome : o de ‘Domingo da Divina Misericórdia’, conforme a disposição de São João Paulo II após a canonização de Santa Faustina Kowalska.

É nesse dia que chega ao fim a Novena à Divina Misericórdia, iniciada na Sexta-Feira Santa (saiba mais).

E depois, o que virá?

Depois ainda teremos, dentro deste riquíssimo tempo litúrgico, a festa da Ascensão do Senhor – que é celebrada no sétimo domingo de Páscoa e não mais necessariamente aos quarenta dias após a Ressurreição, porque o sentido da celebração é mais teológico do que cronológico.

Por fim, o período pascal se encerra com a vinda do Espírito Santo, em Pentecostes.

Características deste período

A unidade desta Cinquentena que é o Tempo Pascal se destaca no Círio Pascal, que permanece aceso em todas as celebrações até o Domingo de Pentecostes para expressar o mistério pascal comunicado aos discípulos de Jesus.

É com esta mesma intenção que se organizam as leituras da Palavra de Deus nos oito domingos do Tempo Pascal : a primeira leitura é sempre dos Atos dos Apóstolos, o livro que conta a história da Igreja primitiva e da sua difusão da Páscoa do Senhor. A segunda leitura muda conforme os ciclos, podendo ser da primeira Carta de São Pedro, da primeira Carta de São João e do livro do Apocalipse.’


Fonte :

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Quem destruiu Notre-Dame?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé



E em meio a essa ‘lacração’ de análises marginais, até o escritor Victor Hugo - deísta, diga-se de passagem -, foi transformado em profeta. Em seu romance Notre-Dame de Paris, publicado em 1831, o escritor francês, ao descrever o suposto presságio de um incêndio, o fez simplesmente para denunciar os problemas na estrutura desse patrimônio histórico tão importante não só para os franceses, mas para a história do Ocidente. É tanto, que mais à frente, ele acrescentara :

Sem dúvida, é ainda hoje um majestoso e sublime edifício. Porém, é incrível que um edifício que foi tão bem preservado com o passar dos anos - e diante do qual é difícil não suspirar - seja tão desrespeitado pelas degradações; mutilações que o tempo e os homens simultaneamente fizeram a esse monumento venerável’, ressaltou.

E os homens continuam a mutilar os símbolos cristãos quando os transformam em cavalo de batalha de guerras ideológicas. O caráter humanizador do cristianismo, mais uma vez, foi negligenciado pela precipitação de seus adeptos, através de um discurso raso, infantil e sem fundamento : a tendência é apontar culpados, não gerar uma reflexão genuína. Não deram espaço nem mesmo para refletir sobre o que representavam as catedrais na idade média e como tais construções nos remetem para o divino - e para o próximo. Dá-se mais importância ao discurso de vitimização que à divulgação da beleza, do patrimônio e da história (sem anacronismos, obviamente).

Notre-Dame, o gótico, a ‘idade das luzes’

A primeira coisa que devemos levar em consideração é que Notre-Dame foi construída para atender a demanda de uma cidade que estava em crescimento. A cidade de Paris, no século XII - que acabara de ser transformada em capital do reino de França por Filipe I algumas décadas antes - já era o principal o centro econômico e cultural do país, o que obrigou as autoridades eclesiásticas a construir um edifício que pudesse comportar o maior número de pessoas possível.

A catedral começou a ser construída na fase de consolidação do estilo gótico, que apesar de ser considerado um modelo arquitetônico de origem francesa, representa o ‘período das luzes’ que caracterizou os duzentos anos posteriores ao ano 1000 em toda a Europa. A construção das catedrais acompanha o desenvolvimento de técnicas inovadoras e linhas de espiritualidade que contradizem a interpretação errônea de que toda a idade média tenha sido um a ‘era das trevas’ no tocante à cultura e ao conhecimento. O gótico, em sua concepção inicial - cujos primeiros elementos se observam na abadia de Cluny - surgiu, entre os monges, como uma arte de ‘contraconduta’ : o homem medieval dessa fase, cuja relação com o tempo é marcada pela visão escatológica, vê na sobriedade - que motivou, primordialmente, esse estilo de construção - um meio para se chegar a Deus. Não por acaso, Cluny, São Francisco e as ordens mendicantes como um todo sejam frutos de todo esse movimento ‘revolucionário’ que questionou os excessos e o acúmulo de riquezas.

Partindo dessa premissa, a reconstrução de Notre-Dame -, já financiada por doações milionárias que chegam aos montes -, deveria nos fazer pensar que, além do templo físico, é hora de reconstruirmos o nosso cristianismo : este que negligenciamos com a nossa dureza de coração e com as nossas instrumentalizações. A crise de fé na Europa, tema que tomou conta dos espaços virtuais esses dias, é também culpa nossa, se pensarmos a todas as vezes que demos mais importância ao aspecto material que à essência da doutrina que professamos. E os europeus, como ninguém, testemunharam, muitas vezes, como a Igreja tantas vezes se rendera ao poder em vez de seguir, com fidelidade, a sua missão.

Não fomos os responsáveis diretos pelo incêndio que destruiu o teto de Notre-Dame, mas muitas vezes destruímos o que ela representou uma época : no essencial é que Deus se manifesta.’

Fonte :

terça-feira, 23 de abril de 2019

O que a Páscoa nos ensina

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Os cristãos devem ruminar sobre o mistério pascal, iluminando a própria vida pela libertação anunciada e oferecida por Jesus, o cordeiro de Deus, na sua morte e ressurreição.
*Artigo de Tânia da Silva Mayer,
teóloga



O primeiro ponto que retomamos é a responsabilidade sobre a morte de Jesus. Os evangelhos afirmam que as autoridades judaicas procuravam uma maneira de matá-lo (cf. Jo 7,30). E isso se dava em decorrência dos ensinamentos públicos de Jesus aos seus seguidores e às multidões (cf. Lc 4,29). A pregação e a postura de Jesus eram desconfortáveis para as lideranças religiosas porque não constituíam um conjunto de normas, doutrinas ou ritos, mas exercício radical de amor ao próximo e a Deus. Essa vivência antecipada da Lei de Moisés libertava a própria Lei das amarras conservadoras da religião, o que colocava em questão o poder dos líderes religiosos e o modo como conduziam a vida de fé dos adeptos ao judaísmo. Não sem razões, Jesus é categórico ao afirmar a responsabilidade maior que os sumos sacerdotes judeus carregam por entrega-lo às autoridades romanas para ser crucificado. No tribunal de Pilatos, não isentando a culpa deste, ele afirma : ‘quem a ti me entregou tem maior pecado’ (Jo 19,11). Diante do exposto, é preciso recordar sempre que as religiões, embora falem de divindades e proponham transcendências, podem se tornar sistemas articulados de repressão, condenação, tortura e morte, sobretudo daquelas pessoas que escancaram suas arbitrariedades e desconformidades com a mensagem que a motivou nas origens. Também deveríamos nos perguntar hoje se nós, os cristãos e as cristãs, estaríamos no grupo dos que pedem a morte de Jesus ou das mulheres que o seguem até o fim.

E por falar nas mulheres, que lição elas nos deixam pela postura que cultivaram durantes esses acontecimentos. Os evangelistas são precisos ao indicar a fuga e o abandono, a traição e a negação dos discípulos quando o Mestre é preso pelos judeus. Eles também não se esquivam de nos contar que as mulheres que haviam seguido Jesus permaneceram com ele acompanhando distantes tudo; ora secando o rosto ensanguentado com uma toalha, ora chorando a dor e a injustiça, ora intervindas em sua defesa, ora firmes aos pés da cruz, ora preparando perfumes para a limpeza do corpo morto de Jesus. E para mostrar que tudo isso lhes dizia respeito, testemunham a pedra movida da entrada do túmulo, escutam a palavra mais forte que o grito das multidões cheias de ódio : ‘Não está aqui, ressuscitou!’ e rompem com o silêncio da injustiça e da morte : ‘Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros’ (Lc 24,9). No tempo de Jesus as mulheres eram consideradas menores e menos importantes que os homens. Deus as escolhe para serem testemunhas fiéis de tudo. Elas não arredam o pé e levam essa missão até o fim. Ainda hoje nós mulheres sofremos muitas exclusões e segregações, inclusive dentro das religiões. Deus nos ensina que não deveria ser assim. Nossa força, a força de todas nós mulheres juntas anima nossa esperança e reaviva a certeza de que estamos do lado certo da história : precisamente, aquele que não exclui, não segrega e não mata.

E por falar em morte e nos sinais que ela insiste em marcar nas realidades todas do mundo, podemos dizer que ela alcançou um tríplice significado em Jesus Cristo. E os padres antigos não se autocensuraram ao dizer que uma Pessoa da Trindade morreu na cruz. O fato é que a morte de Jesus é morte da sua existência que confirma a precariedade da nossa humanidade finita. Também essa morte é morte planejada (por inveja?), tramada nos corações corrompidos pelo ódio e pela maldade : trata-se de um assassinato. Símbolo da injustiça e da idolatria dos homens, interrupção de uma vida que jamais deveria acabar assim. Mas a morte de Jesus é também doação : ‘Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente’ (Jo 10,18). Só é capaz de dar a vida livremente quem é capaz de amar, de amar até o fim (cf. Jo 13,1). E o amor é mais forte que a morte. Ele é capaz de vencer as expectativas do nada e produzir frutos. Precisamente, o amor é a realidade capaz de incluir, de reunir e formar vida comum. E a Páscoa de Jesus é evento de puro amor porque supera a morte e inclui todas as pessoas numa dinâmica de vida nunca antes ambicionada : plena e abundante.

Nosso mundo segue marcado pela dor, pelo ódio e pela violência. Mas a Páscoa de Jesus ensina que essas realidades precárias não têm força diante da alegria, da bondade e da paz. Por isso devemos acreditar que a mentira vai perder para a verdade, que a ganância vai perder para a solidariedade, que o ódio vai perder para o amor e a bondade e que a violência vai perder para a paz. Crer que todas essas transformações são possíveis é o salto que precisamos dar mesmo quando o tempo é de trevas. Que nossos rostos abatidos e desanimados sejam transfigurados pelo testemunho cristão que atravessa os séculos : a vida é mais forte, outro mundo é possível, haverá ressurreição.’


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segunda-feira, 22 de abril de 2019

Paixão de Cristo em Imagens: a história da Via Sacra


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 As representações da Via Crucis são presentes em todas as Igrejas do mundo.
*Artigo de Josette Saint-Martin
Tradução : Ramón Lara


A origem da Via Sacra funde-se com a peregrinação dos primeiros cristãos a Jerusalém. O mais antigo testemunho conhecido é o de Éteria (1), um nobre da Galícia, Espanha, que, no século IV, visitou os lugares santos e participou de liturgias locais. Quatro períodos marcaram a evolução dessa devoção.



O século XV marca o início da iconografia da 'Via Sacra'

A partir do século XV, um ponto de viragem surgiu com o desenvolvimento da devoção às ‘quedas da paixão’ ou, na Alemanha e nos Países Baixos, ‘quedas sob a cruz’. Além disso, na Alemanha e em Roma, as ‘quedas de Cristo’ são veneradas, às vezes, seguindo um caminho marcado de colunas erguidas e levando a uma Igreja.

Muitos Calvários florescem na Europa, caminhos devocionais que constituem a forma primitiva da Via Sacra. Se há uma queda, há uma parada e ao mesmo tempo aparece a devoção às Estações de Cristo cujo número varia de seis a dezoito em certos casos. A diversidade também prevalece também no caminho proposto, que pode começar com a despedida de Jesus de sua mãe, no Jardim das Oliveiras ou, em outros casos, com a aparição de Jesus diante de Pilatos. A iconografia da Via Sacra começa a tomar forma neste momento. Adam Kraft erigiu entre 1477 e 1508, em Nuremberg, a pedido de um burguês em retorno de Jerusalém, sete estações terminando com uma dedicada à Nossa Senhora da Piedade. Por outro lado, em sua peregrinação espiritual, a carmelita flamenga Jan Pascha(2) menciona catorze estações.

No século XVI, o comerciante de tecidos Romanet Boffin, que morava em parte do que era o Império Romano, descobriu a Via Sacra de sete estações de Freiburg e decidiu erguer um similar em sua cidade. No século XVII, na França, por outro lado, encontramos um dos lugares com mais devoção às estações da Via Sacra, Mont-Valérien, com suas capelas marcando 11 estações.


Enquanto as Estações da Cruz ainda existem em uma estrutura de doze paradas, uma nova proposta com catorze começou a ganhar terreno no século XVIII. O trabalho do cientista holandês Andrichomius(3), baseado na Terra Santa, contribuiu grandemente para a harmonização do número delas. Com o apoio de Clemente XII, que em 1731 fixou o número de catorze, esta fórmula das Estações da Cruz foi difundida nas igrejas paroquiais e os conventos franciscanos a adotaram. Um dos seus grandes promotores foi São Leonardo de Port Maurice, falecido em 1751, que estabeleceu uma estação em cada lugar onde pregava em missão, sendo a mais famosa as Estações da Cruz do Coliseu, abençoada em 1750.

Uma prática que se espalha na França no século XIX

No século XIX, a prática se espalhou sob a Restauração, quando os missionários investem no campo da pastoral em uma população muito descristianizada após a Revolução Francesa. É neste momento que o caminho que começa com o julgamento e termina com a sepultura de Cristo, é introduzido na França, através de padres, imigrantes da Itália na época da Revolução, e que depois voltaram para a França.


As representações figurativas se cruzam na história e são o resultante, por um lado, de peregrinações à Terra Santa e, por outro lado, de imitações popular destas peregrinações, mas também da harmonização e equilíbrio realizado por estudiosos. Os Mistérios rezados no coro da igreja como o Mysterium resurrectionnis de Jesus Cristo, também contribuíram para familiarizar as pessoas e artistas nessas imagens que catequizavam visualmente os espectadores da Idade Média sobre a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Assim, a evolução das representações de cenas da Paixão de Cristo seguiu a sensibilidade cristã e a Cruz permanece hoje como uma apresentação estruturada em torno de dois polos : A meditação sobre a Paixão e os passos de Jesus acompanhado por um meio visual diretamente acessível que joga com a sensibilidade e a fé, a memória e a consciência, do povo fiel ao amor de Cristo.’


(1) - Hervé Savon, « Égérie, Journal de voyage (Itinéraire) », Introduction, texte critique, traduction, notes, index et cartes par Maraval (Pierre) in Revue belge de philologie et d'histoire, tome 65, fasc. 1, 1987.
(2) - Jan Pascha, Pérégrination spirituelle, Louvain, Vincent et Abel, 1563, p.630.
(3) - Adrichem (van) Christiaan ou Andrichomius, Theatrum Terrae Sanctae et biblicarum historiarum cum tabulis geographicis aere expressis, Cologne, In Officina Birckmannica, 1613.


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sábado, 20 de abril de 2019

A cruz: de maldição a símbolo da nova vida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Na cruz, mostra-se que somente um Deus que pode sofrer é um Deus que também pode amar.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


Num primeiro momento, o choro e a tristeza se mostram como marca registrada da crucificação. Os discípulos e discípulas que o acompanhavam durante tanto tempo, veem-se diante de um suposto fim de caminhada. Mesmo que tivessem ouvido que ele ressuscitaria posteriormente, os evangelhos mesmos deixam claro que isso não era compreendido por esses discípulos e discípulas. O próprio medo que tiveram depois da morte de Jesus mostra que sua esperança na ressurreição não estava, assim, tão firme. Mais adiante na história cristã, Paulo, refletindo sobre a questão da cruz, à luz da ressurreição, em sua carta aos Gálatas (Gl 3,13), diz que aquele que foi morto se fez maldição por nós, uma vez que, de acordo com a lei, seria ‘maldito todo aquele que fosse pendurado no madeiro’ (cf. Dt 21,23).

Contudo, ler a cruz à luz da ressurreição, ao invés de trazer a tristeza e a desesperança, trouxe para os cristãos e cristãs, já no primeiro século, uma nova visão. A cruz não representaria mais somente a morte de um justo, mas também, o símbolo máximo do amor de Deus, que se entrega sem ressalvas para que a humanidade possa ter vida. O símbolo da maldição torna-se ressignificado como símbolo da salvação. Ali se mostra o amor verdadeiro que ‘dá a vida pelos seus amigos’, ao mesmo tempo em que chama o próprio cristianismo que se diz seguidor de Jesus à responsabilidade para com toda pessoa que sofre.

A cruz, no cristianismo, passa a ser compreendida como lugar de entrega e lugar em que se compreende o que vem a ser o dogma da encarnação. Como já dissemos em outros textos, encarnar-se é sempre assumir a carne do outro, suas dores, angústias, anseios, a fim de mostrar, por meio da abertura ao próximo, que Deus ainda se importa com a humanidade.

Dessa forma, a cruz pode ser vista como corolário da própria encarnação. Na cruz, mostra-se que somente um Deus que pode sofrer é um Deus que também pode amar, uma vez que todo amor é também sofrimento em prol daquela pessoa ou causa a que se ama. A cruz, assim, mostra-se no cristianismo como sinal de amor doador que gera a vida. Na cruz, esse evento trinitário por excelência, Pai, Filho e Espírito se fazem presente de maneira como são, ou seja, em amor que está disposto a se entregar para que a plenitude da vida possa se fazer presente àqueles e àquelas a quem ama.

Ao mesmo tempo, essa cruz também se mostra como imperativo cristão, na medida em que implica comprometimento com as pessoas que sofrem nesse mundo, uma vez que Jesus na cruz é o representante de todo ser humano. Ele morreu por mim e por todos e todas que estavam condenados em seus pecados. A cruz, assim, representa a entrada do santo no profano, de maneira que toda a criação deve ser considerada lugar da presença do próprio Deus. A entrega em favor de todo o cosmos é a entrega em favor de cada integrante desse cosmos : a criação, as pessoas, os animais e todo ser vivente.

Essa é a ressignificação feita pelo cristianismo. No lugar da maldição, bênção; no lugar da morte, a distribuição da vida; no lugar em que se condenava, o rosto do amor perfeito que se abre em direção a tudo que existe.

Celebrar a Semana Santa é, então, rememorar e ressignificar dia a dia esse evento, vivê-lo em cada passo e em cada atitude, a fim de mostrar que a morte não tem mais a última palavra sobre o cosmos. Antes, a vida que brota da cruz se mostra como vida abundante desejada a todos e todas.’


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quinta-feira, 18 de abril de 2019

Tríduo Pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Imagem relacionada
*Artigo do Padre Vitor Galdino Feller


A Igreja entende por Tríduo Pascal os três dias em que se celebra a Páscoa, isto é, a passagem de Cristo, da morte para a vida, da cruz para a glória. Por isso, já se celebra a Páscoa quando se celebra a morte. Pois não há ressurreição sem morte, não há alegria sem sofrimento. A Páscoa (do hebraico pessach) envolve três momentos : o ponto inicial – a morte; o ponto intermediário – a sepultura; o ponto final – a ressurreição. O Tríduo Pascal começa na celebração da Missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira santa à noite, e termina com o Ofício das Vésperas, no Domingo de Páscoa à tarde. Para entender que há três dias nesse espaço, é preciso contar os dias do mesmo modo que os judeus : de um pôr-do-sol a outro. Assim, temos : o primeiro dia, que vai de Quinta à noite até Sexta no final da tarde: é o dia da morte; o segundo dia, de Sexta à noite até Sábado no final da tarde: é o dia da sepultura, da ausência; o terceiro dia, de Sábado à noite até Domingo no final da tarde : é o dia da ressurreição. Portanto, não são três dias preparatórios e um dia de celebração. Mas, três dias de celebração da Páscoa, em três momentos significativos : a morte, a ausência, a ressurreição!

O primeiro dia : a morte

Não existe ressurreição sem morte. O Cristo vivo, glorioso, ressuscitado, não é um fantasma, uma idéia, uma teoria. É alguém vivo, concreto. É aquele que morreu, que amou até o fim, que foi fiel e obediente ao Pai no projeto de um Reino de vida para todos, a começar com aqueles que são excluídos. O ressuscitado é o crucificado. Por isso, já se celebra a Páscoa, quando se faz memória da morte de Jesus. Também porque aquele que morre não é uma vítima qualquer. Mas é o Senhor da vida, o Senhor que dá a vida.

O primeiro dia começa com a Missa da Ceia do Senhor. A Quaresma vai até Quinta-feira santa à tarde. À noite, começa a Páscoa, com a celebração desses momentos tão significativos do final da vida de Jesus : a ceia de despedida, o lava-pés, as três instituições, do mandamento novo do amor e dos sacramentos da Eucaristia e do Sacerdócio. Celebra-se a entrega de Jesus, sua humilhação e rebaixamento. Pois não há verdadeiro amor sem humildade, sem doação e entrega de si. No ritual desses momentos celebramos a morte de Jesus na forma de entrega, como de um Amigo que se deixa em sacramento de partilha, um Mestre que continua na pequenez do pão comido e do vinho bebido, um Cordeiro que se deixa levar ao matadouro, um Salvador que se deixa trair.

Esse primeiro dia continua pela noite afora, com a memória da traição de Judas, da agonia no Horto, da prisão, da condenação diante do Sinédrio e de Pilatos. E termina na tarde de Sexta-feira, com a Celebração da Paixão do Senhor, quando se recorda a crucifixão, as últimas palavras e o último suspiro de Jesus, quando ele já nos entrega o Espírito Santo. Faz-se a leitura do Servo Sofredor, lê-se o Evangelho de sua Paixão e Morte, adora-se a sua Cruz, recebe-se o sacramento de seu Sacrifício redentor.

Nesse dia, além da Missa da Ceia e da Celebração da Paixão, não há nenhuma celebração litúrgica : missas, batismos, casamentos etc. As manifestações da religiosidade popular, como vias-sacras, caminhadas com a cruz, etc., expressam e dramatizam, na oração e no silêncio, a dor pela morte do Senhor.

O segundo dia : a ausência

A passagem da morte para a vida implica uma ausência. No segundo dia do Tríduo Pascal, que vai de Sexta à noite até Sábado no final da tarde, a Igreja celebra a sepultura de Jesus, a ausência de seu Amigo, a ida do Senhor à mansão dos mortos. É dia de silêncio e recolhimento, para recordar a quênose máxima do Senhor, isto é, seu rebaixamento e humilhação até a morte.

Nesse dia, também não há nenhuma celebração litúrgica : missas, batismos, casamentos etc. As igrejas permanecem fechadas, em sinal de luto. Na noite de Sexta-feira, quando começa esse segundo dia, a religiosidade popular costuma expressar a dor cristã, através da Procissão do Senhor morto e do Encontro com Nossa Senhora das Dores. É um modo simples e profundo de acompanhar o Filho de Deus em sua ida à mansão dos mortos, e sua Mãe Desolada na alegria contida pela vitória de Deus sobre o maior inimigo do ser humano, a morte!

O terceiro dia : a ressurreição

Com a celebração da Vigília Pascal, na noite de Sábado santo, começa o terceiro dia, o dia da glória, da luz, da vida, da ressurreição. O Senhor vence o poder da morte. Ele ressuscita glorioso sobre o poder do mal. Ele paga o mal com o bem, o ódio com o amor, a vingança com o perdão. Com isso, propõe uma reviravolta em nosso modo de pensar e agir. Chama-nos a fazer, também nós, a passagem: do pecado para a graça, do egoísmo para a comunhão, da indiferença para a solidariedade, da escravidão dos vícios para a liberdade da virtude cristã.

Com a Missa da Vigília Pascal, na noite de Sábado, e as missas do Domingo de Páscoa, a Igreja celebra a vida em abundância que jorra do sacrifício redentor de Cristo. Na Liturgia da Luz, com a bênção do Fogo Novo e a procissão do Círio Pascal, caminhamos nas trevas seguindo o Cristo, a nuvem luminosa de nossa salvação. Na Liturgia da Palavra, ouvimos as leituras da história da salvação, como alguém que do final do túnel olha para trás e vê que todo o passado ganha uma nova compreensão. Na Liturgia Batismal, festejamos nosso batismo, quando morremos para o pecado e ressuscitamos para a vida nova de filhos de Deus. Na Liturgia Eucarística, fazemos memória do mistério pascal, isto é, da morte e da ressurreição do Senhor.

Depois, durante todo o ano, em cada domingo, em cada missa e em qualquer outro sacramento, voltamos sempre ao Tríduo Pascal. E gritamos vitoriosos : ‘O Senhor morreu, o Senhor ressuscitou, o Senhor vem!’’


Fonte :

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Via da misericórdia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG



Esse caminho está na contramão da perversidade e da indiferença. Envolvendo corações e mentes, esses males marcam os tempos atuais com os frutos da insanidade e da ignorância, insensíveis às muitas possibilidades para os avanços humanitários, sociais e políticos. A misericórdia é, assim, remédio indispensável, lição inigualável.

Quando um coração é forjado pela misericórdia, torna-se base para uma mente límpida, orientada para a fraternidade solidária, repleta de uma luz que inspira a inteligência e a sabedoria, qualidades indispensáveis em qualquer momento da história. Afinal, a desastrosa percepção dos mais diferentes processos é um tipo de cegueira que causa confusões, leva a decisões equivocadas, à falta de senso crítico sobre as próprias atitudes.

Percorrer a via da misericórdia é necessário treinamento para se conquistar a competente compreensão a respeito de si e do outro. Permite reconhecer a vida de cada pessoa como dom. É, pois, atitude fundamental para se administrar, com equilíbrio, a própria vida. Caminho que consolida a justiça, pois conduz ao compromisso com a verdade, o bem comum, a honestidade. Quem se aproxima do amor misericordioso de Deus, revelado em Jesus Cristo, desenvolve o gosto pela honestidade, não alimenta qualquer tipo de orgulho ou ilusória concepção sobre si.

Sem a via da misericórdia, tudo se enfraquece. A religiosidade deixa de contribuir para que a sociedade alcance nova etapa de seu desenvolvimento. As famílias, que deveriam ser ambiente para muitos aprendizados, ficam desfiguradas. Buscar a misericórdia não é, pois, um passeio sem propósito. É experiência renovadora, a partir do encontro com Jesus Cristo, o rosto misericordioso de Deus-Pai. Um acontecimento capaz de corrigir muitos descompassos, a exemplo do costume de se alegrar, perversamente, com o fracasso dos outros. As lições de Jesus Cristo salvam a humanidade também de males que afligem a alma, tornando-a suscetível a sofridas depressões.  Quem segue o Mestre, rosto da misericórdia divina, não desiste de viver, pois passa a reconhecer a própria existência como dom. Cultiva especial apreço à vida de todos, acima de qualquer interesse egoísta que possa levar a disputas insanas.

Nesse horizonte, compreende-se a oportunidade singular oferecida na Semana Santa: buscar a misericórdia seguindo os passos do Mestre, na sua paixão, morte e ressurreição, a partir das celebrações e da escuta da Palavra de Deus. A Semana Santa condensa lições essenciais que, se aprendidas por todos, permitem o surgimento de uma humanidade nova, solidária. Jesus é único e seus ensinamentos são a verdadeira sabedoria. Todos aproveitem a chance de fixar o olhar em Cristo, para percorrer com Ele a via da misericórdia. Assim, cada pessoa tem a oportunidade de unir-se a Deus, abrir o próprio coração para o amor, que transforma, produz sabedoria, permite discernimentos e escolhas acertadas.

Os atos de Jesus são permeados de compaixão, que não pode ser confundida com fraqueza. Trata-se de corajosa fidelidade à verdade e ao bem de todos.  Acolher suas palavras, silenciar ante seus sofrimentos e sua morte expiatória, refletindo sobre os preciosos ensinamentos reunidos na Bíblia, a exemplo dos que estão concentrados no Sermão da Montanha, é passo importante para percorrer a via da misericórdia junto com Cristo. A humanidade precisa, com urgência, trilhar esse caminho. Seja, pois, compromisso de todos, percorrer a via da misericórdia para aproximar-se de Deus e aprender com o seu amor.’


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